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A Ordem dos Conhecimentos no Nascimento do Capitalismo

In análise, conhecimentos universitários, desenvolvimento, divulgação científica, ensino superior, história, history, pesquisa, sociologia, sociologia do conhecimento on July 21, 2016 at 4:27 pm

O estudo sociológico do sistema cognitivo das sociedades globais no nascimento do capitalismo

Resumo dos resultados da pesquisa de Georges Gurvitch (1894-1965) divulgados em: “Los Marcos Sociales Del Conocimiento”( Les Cadres sociaux de la connaissance).

 

Por

Jacob (J.) Lumier

 

Sumário

Despotismo esclarecido. 1

O papel do saber como fato social 1

O fim do regime feudal 1

Características das sociedades no nascimento do capitalismo. 1

O sistema cognitivo e as classes de conhecimento. 1

Marx e o maquinismo. 1

O conhecimento do mundo exterior 1

o conhecimento técnico. 1

Os aspectos do conhecimento político. 1

O senso comum.. 1

O conhecimento de outro e dos Nós-outros. 1

Os intelectuais. 1

Notas. 1

 

 

 

Despotismo esclarecido

No estudo sociológico do sistema cognitivo das sociedades globais que dão à luz o capitalismo o traço marcante é o despertar do Estado na forma da monarquia absoluta participando ativamente do desenvolvimento do capitalismo nascente e, nessa e por essa atividade, tratando todos os problemas políticos sob seu aspecto econômico.  Daí que os historiadores e os economistas caracterizam a organização política dessa sociedade como “despotismo esclarecido”.

Todavia, além dessa vinculação ao “Estado ressuscitado”, o caráter particular desse tipo de sociedade inclui os começos do maquinismo, as primeiras fases da industrialização, a transformação do trabalho em mercadoria, a aparição das classes sociais propriamente ditas (estrutura de classes) e, do ponto de vista da tipologia qualitativa e descontinuista [i], certa diminuição do desacordo entre a estrutura global e o fenômeno social total subjacente.

 

O papel do saber como fato social

 

Em conseqüência, não se pode minimizar o papel do saber como fato social nesse e para esse tipo de estrutura, devendo-se acentuar a reciprocidade de perspectivas que aqui se configura entre experiência e conhecimento.

Como já tivemos a ocasião de notar, Gurvitch assinala que frequentemente não é possível ir além das explicações por correlações funcionais e buscar o máximo de coerência do processus de reestruturação como fundado numa causalidade singular deixando o fato social do saber como epifenômeno.

A causalidade singular somente é aplicada quando se está perante um caso de desacordo preciso de quadro social e saber, como nas análises de Karl Marx em que o saber da Economia Política clássica está em desacordo com o quadro da sociedade de classes ao qual pertence.

Nesses casos, se poderá estabelecer uma determinada mudança social como a causa particular de que a estrutura é o efeito, polarização esta que, aliás, muitos tentaram fazer apressadamente para este tipo de sociedade que dá à luz o capitalismo, atribuindo ao advento do maquinismo o papel de causa singular da mudança estrutural, o que excluiria o alcance ou a relevância do saber como fato social para a reestruturação desse tipo global [ii].

 

O fim do regime feudal

Ao falar de diminuição do desacordo entre a estrutura global e o fenômeno social total subjacente, Gurvitch tem em vista uma comparação com as sociedades feudais, em cujo tipo nota-se um desacordo cuja intensidade é um fato novo, a que se conjuga um “pluralismo excepcional” da estrutura em si.

A explicação aqui assenta o fato singular produzido ao fim do regime feudal, quando tem lugar a aliança dos monarcas feudais com as cidades francas ou abertas que compraram sua liberdade ao Estado territorial reanimando-o. Assim é a mudança social levando à reanimação do Estado recuperando forças com a referida aliança que constitui o elemento máximo de coerência da teoria para as sociedades feudais, restando, então, o saber como fato social em estado preponderantemente espontâneo e difuso, sem que seja feito valer.

 

Características das sociedades no nascimento do capitalismo

 

Com efeito, tirado do seu sono secular por essa aliança singular, o Estado toma a forma da monarquia absoluta como dizíamos, constituindo na análise gurvitcheana um traço característico das sociedades globais que dão à luz o capitalismo.   Na Europa Ocidental, são os séculos XVII e XVIII os que correspondem a esse tipo de sociedade, já iniciada durante a segunda metade do século XVI, sobretudo na Grã-Bretanha.

Segundo a descrição de Gurvitch, excluindo a equivocada atribuição do papel de causa singular para o advento do maquinismo e resgatando o alcance ou a relevância do saber como fato social para a reestruturação desse tipo de sociedade global que dá à luz o capitalismo, nota-se: (1) – o predomínio do Estado territorial monárquico de grande envergadura, que atribui ao monarca o poder absoluto, e que se aliou com a burguesia das cidades e com a nobreza ligada à burocracia, dita nobreza de toga; 2) – o Estado apóia aos plebeus burgueses, aos capitalistas industriais das manufaturas, aos comerciantes de envergadura internacional e, muito particularmente, aos banqueiros, quem, enriquecidos depois da descoberta do Novo Mundo, tornaram-se seus credores; 3) – e os apóia contra a nobreza de espada, contra os operários e os camponeses, substituindo assim a antiga hierarquia das dependências feudais por uma nova.

Quanto aos níveis em profundidade da realidade social, nota-se em primeiro lugar duas classes de modelos: os modelos idênticos às regras jurídicas, tomados como regulamentação minuciosa feita de cima para baixo, e os modelos técnicos, estes nascidos das fábricas, exatamente como um aspecto do transtorno da vida econômica, ambos inovadores; em segundo lugar, nota-se incluindo todo o mundo dos produtos, a base morfológico-demográfica como estando ligada à necessidade de mão de obra e ao problema de seu recrutamento; e em terceiro lugar, nota-se os aparelhos organizados de toda a classe, cuja burocratização começa;

Nota-se igualmente que: (a) – a enorme impulsão da divisão do trabalho técnico, superando muito a divisão do trabalho social, sendo combinada ao maquinismo, tem por conseqüência uma produtividade sem precedentes em quantidade e em qualidade; (b) – a acumulação de riquezas, acelerada pelo descobrimento do Novo Mundo, alcança em tempo record grandes proporções agravando os contrastes entre a pobreza e a opulência.

Assiste-se em particular à vitória do natural sobre o sobrenatural, da razão sobre toda a crença; bem como ao crescimento do individualismo em todos os campos, e ao nascimento da idéia do “progresso da consciência”, sendo a reter que a expressão mais completa da civilização e da mentalidade própria dessa sociedade no seu apogeu é a “época das luzes”, que faz o homem confiar no seu êxito e no das suas empresas técnicas e indústrias.

Quanto ao mais, já repetimos que não se pode minimizar o papel do saber como fato social para este tipo de estrutura e de sociedades globais que dão à luz o capitalismo. A diminuição do desacordo entre a estrutura global e o fenômeno social total subjacente favorece na teoria sociológica a prevalência das correlações funcionais sobre a causalidade singular.

 

Sistema cognitivo e classes de conhecimento

 

Desta forma, decompondo o sistema cognitivo desse tipo de sociedade, Gurvitch assinala que o primeiro lugar na ordem dos conhecimentos é compartilhado pelo conhecimento filosófico e o conhecimento científico, que se completam mais do que competem.

Se nas sociedades feudais e no curso para a forma da monarquia absoluta, ocultando grande desacordo da estrutura no conjunto (pluralismo excepcional da estrutura), o saber como fato social não é feito valer, restando difuso, por contra nas sociedades que dão à luz o capitalismo a preeminência das correlações funcionais faz ver a maior valoração do saber, cujo papel é de alta eficácia para o equilíbrio da estrutura no conjunto.

Com efeito, gurvitch insiste a respeito deste papel significativo do saber como fato social, traçando de inicio um esboço histórico do salto prodigioso da ciência desde a renascença, cujos expoentes, como se sabe, são os seguintes: Copérnico (1473-1543), Kepler (1571-1630), Galileu (1564-1642), nos conhecimentos astronômicos; Newton (1643-1727) inventa o cálculo infinitesimal no mesmo momento em que Leibniz (1646-1716) também o faz de outra forma, ambos fundadores da física mecânica; a química moderna nasce com Lavoisier (1743-1794); as ciências do homem se desenvolvem dividindo-se em muitos ramos, seguintes: a economia política é criada por Adam Smith e David Ricardo e, com outra forma, pelos fisiocratas; a ciência política se afirma com Hobbes, Spinoza, Locke, Montesquieu, Rousseau, os enciclopedistas, Condocert, e Destut de Tracy (Montesquieu já pressente o advento da sociologia).

Nota-se, igualmente, a reforma do ensino, cada vez mais laico, a acelerar o desenvolvimento do conhecimento científico, sobretudo a partir de 1529, com a fundação do Collège de France.  Todos os grandes filósofos participam das discussões científicas (com alguma reserva, pascal e Malebranche) já que a laicização do saber filosófico, cada vez mais independente da teologia, favorece sua tendência a fazer das ciências a base de suas reflexões.  Nota-se, entretanto, que o contrário não se verifica e os cientistas mostram pouco interesse pelo saber filosófico como tal.  Mesmo assim, o prestígio do conhecimento filosófico está em que é o melhor colocado para defender a ciência contra a teologia e, além disso, são os filósofos quem amiúde emitem hipóteses verdadeiramente científicas, como Descartes e Leibniz.

Nesta descrição proporcionada pela análise sociológica de Gurvitch, o saber filosófico acolhe mais o racional sobre o místico, excetuando a Pascal, um pouco a Malebranche e a Spinoza, místico da racionalidade; da mesma maneira, acolhe mais o adequado sobre o simbólico e ainda favorece a combinação do conceitual e do empírico, do especulativo e do positivo e, finalmente, o predomínio da forma individual sobre a forma coletiva, esta última, por sua vez, muito relegada, aqui, no saber filosófico.

O conhecimento científico, por sua vez, tem a acentuação do elemento racional como exclusiva sua; aqui, o conceitual predomina sobre o empírico e a forma coletiva é preponderante; nota-se a formação de equilíbrio do positivo e do especulativo, assim como do simbólico e do adequado.

 

Marx e o maquinismo

 

Karl Marx tivera razão ao insistir no primeiro tomo de O Capital (cf.tomo I, 4ªseção, caps. XIV e XV) que não são as invenções técnicas as que tiveram por resultado a profusão de fábricas, mas, pelo contrário, foi a divisão do trabalho técnico nas grandes fábricas cada vez mais numerosas que criou a necessidade de técnicas mecanizadas e provocou assim a introdução das máquinas, tal como confirmado pelo estudo das técnicas industriais dos séculos XVII e XVIII.

 

O conhecimento do mundo exterior

 

Quanto ao segundo lugar no sistema cognitivo dessas sociedades que dão à luz o capitalismo, corresponde ao conhecimento perceptivo do mundo exterior, com as seguintes características: (1) – a rápida promoção desse conhecimento (1a) – deve-se à criação dos novos meios de comunicação que acompanham a extensão do comércio em escala mundial, favorecendo o conhecimento dos oceanos e de continentes até então desconhecidos; (1b) – além disso, o que também permitiu comunicações relativamente rápidas foi o aumento e o melhoramento dos caminhos que cruzam os países ocidentais favorecendo a maior circulação das diligências.

(2) – Todavia, a análise de Gurvitch tem por mais relevante as novas percepções e conceituações das amplitudes e dos tempos em que se encontra imbricado o mundo exterior: 2.1) – nota-se uma competição entre os tempos “adiantado a respeito de si” e o “tempo atrasado”, correspondendo a uma estrutura de uma só vez inovadora e anacrônica, competição esta que anuncia um tempo em que o passado, o presente e o porvir irão entrar em conflito rapidamente, numa situação explosiva que favorecerá o porvir, com o “tempo surpresa” ameaçando quebras nas poderosas organizações da superfície;

2.2) – essa competição entre o tempo adiantado e o tempo atrasado aplica-se igualmente ao fenômeno social total global subjacente à estrutura, de tal sorte que encontramos, por um lado, que o conhecimento do mundo exterior, a vida econômica, as técnicas industriais, o comércio internacional, o saber filosófico, a burguesia e sua ideologia estão essencialmente adiantados em relação à estrutura, enquanto que, por outro lado, a nobreza, o clero, a vida agrícola, o campesinato estão atrasados a respeito da mesma.  A própria monarquia absoluta está adiantada a respeito de suas iniciativas e atrasada quanto a sua organização e suas conseqüências.

2.3) – Desta forma Gurvitch avalia que a quebra do Antigo Regime foi muito mais espetacular do que as revoluções inglesa e holandesa ou do que as guerras religiosas e civis, incluindo nesta lista a guerra da independência nos Estados Unidos; e que esta quebra do antigo regime não se apagará jamais da memória coletiva das sociedades que virão.

2.4) – Temos, então, que esses tempos e amplitudes em que se encontra imbricado o mundo exterior, embora rico em incógnitas e em possibilidades novas, se fazem particularmente mensuráveis com o lema da classe burguesa que toma consciência da sua existência: “tempo é dinheiro”, a que se junta: “todos os caminhos conduzem ao ouro, ou, pelo menos, ao dinheiro”.

Quer dizer, todas as amplitudes são apreciadas menos pelo sistema métrico e mais pelo tempo necessário para percorrê-las, decorrendo desta quantificação que o mundo exterior se torna um objeto de estudo científico.

Em maneira idêntica, desse modo de apreciar as amplitudes pelo tempo necessário para percorrê-las decorre a posição de relevo alcançada conjuntamente pelo conhecimento perceptivo do mundo exterior e pelo saber científico no sistema cognitivo do tipo de sociedades que dão à luz o capitalismo.

Aliás, essa posição de relevo alcançada conjuntamente é muito mais significante aqui do que em muitos outros tipos de sociedade, ocultando o fato de que o saber científico prepara o salto que na etapa seguinte do capitalismo o levará ao primeiro lugar.

 

o conhecimento técnico

 

No terceiro lugar desse sistema cognitivo vem o conhecimento técnico, que deu um salto considerável, e isto não só na indústria (ramos dos têxteis e da metalurgia), mas na navegação e na arte militar.

Reitera Gurvitch como já o notamos que o aperfeiçoamento do conhecimento técnico levando ao maquinismo se encontra em relação direta não com as aquisições da ciência, mas com as melhoras de ordem prática, o que já fora assinalado por Adam Smith e por Karl Marx, apesar de suas diferenças intelectuais.

Neste tipo de estrutura e de sociedades globais que dão à luz o capitalismo observam-se ainda como retardados a respeito das técnicas, não só o movimento demográfico, mas a organização da economia, que é prejudicada pelos vestígios das corporações de ofícios (vestígios pré-capitalistas), assim como as invenções e suas aplicações não seguem uma curva de avanço regular.

 

Os aspectos do conhecimento político

 

Por sua vez, o conhecimento político, tanto implícito ou espontâneo quanto explícito ou formulado, ocupa o quarto lugar desse sistema cognitivo, ainda que possa parecer surpreendente essa colocação tão baixa em face do meio fértil em intrigas constituído pelos grupos privilegiados no Antigo regime.

Há que distinguir três aspectos seguintes:

1º) – o conhecimento político implícito está evidentemente estendido na corte em função de várias rivalidades seguintes: (a) – rivalidade da nobreza de espada e da nobreza de toga; (b) – de toda a nobreza e da burguesia em ascensão; (c) – rivalidade entre as diferentes frações da burguesia: a industrial, a comercial, a financeira;

2º) – esse conhecimento político espontâneo se encontra ausente no meio das classes populares representadas pelos operários das fábricas e pelo “campesinato”. Derrotados pelas mudanças de estruturas que nada lhes traz de benefício essas classes populares permanecem não sabendo o que fazer ou que tática adotar numa situação que, em geral, lhes é muito desfavorável.  Aliás, a respeito disso, Gurvitch nos lembra que a consciência de classe e a ideologia dos operários e dos camponeses não se formarão antes do século XIX, e muito depois das grandes comoções da Revolução francesa.

3º) – Na medida em que se mantém, o Antigo Regime necessita de uma política que não leva geralmente em conta os grupos de interesse, por privilegiados que sejam.  Quer dizer, as disputas políticas e, conseqüentemente, o conhecimento político das pessoas são de importância secundária para o absolutismo.

Por sua vez, esses grupos de interesses (os que têm futuro e os mais adiantados e clarividentes) encontram uma compensação na elaboração das doutrinas políticas, cujo esquema tirado da análise gurvitcheana é o seguinte:

(a) – na Inglaterra, Thomas Morus (“Utopia”, 1516) e Francis Bacon (“Nova Atlântida”, inconclusa), durante a renascença; posteriormente, nos séculos XVII e XVIII, os escritos de Hobbes e Locke correspondem, nessa análise sociológica, às aspirações da burguesia ascendente como quadro social do conhecimento, que, finalmente, só então triunfará;

(b) – na França: os fisiocratas, os enciclopedistas, Turgot, J.J.Rousseau terão influência desde o começo e durante a revolução, e suas doutrinas tratam tanto do fim ideal quanto da tática a empregar para alcançá-lo, tipificando o conhecimento político formulado ou elaborado, não-espontâneo ou não-implícito;

(c) – na Holanda: o “Tratado Político” (1675-1677) de Spinoza faz pressentir segundo Gurvitch certos elementos do pensamento de Rousseau;

Nota-se que nas doutrinas políticas (e nas ideologias em que se inspiram) apesar do predomínio da forma racional “o simbólico, o especulativo, o conceitual, e o individual são sempre muito acentuados”, mesmo naquelas doutrinas mais preocupadas pela racionalidade, pelo empirismo, pela objetividade, pela adequação.  Já no conhecimento político espontâneo, a forma racional se combina à forma empírica, estando igualados em importância o positivo e o individual.

 

O senso comum

 

Quanto à sociologia do conhecimento de senso comum, aqui, neste tipo de sociedades globais dando à luz o capitalismo, conhecimento situado em penúltimo lugar, está marcado pela grande multiplicidade dos meios que lhe servem de quadro social de referência.

Quer dizer, o conhecimento de senso comum neste tipo de estrutura e de sociedades globais que dão à luz o capitalismo está consideravelmente confundido pelo seguinte: por um ambiente tão novo e imprevisto; pelo advento do começo do capitalismo e do maquinismo; pelo descobrimento do Novo Mundo; pela política absolutista de nivelação dos interesses; pelo debilitamento da igreja; pela afluência das grandes massas da população às cidades, etc.

Assim, esse conhecimento de senso comum se encontra disperso em vários meios, seguintes: (a) – entre os cortesãos, os representantes da nobreza de espada e os da nobreza de toga; (b) – nos diferentes grupos da burguesia, no novo exército profissional, entre os marinheiros, etc., ou ainda, entre os operários da fábrica.

Seu refúgio será, então, a vida rural e os círculos restritos da família doméstica conjugal.  Gurvitch nos lembra a observação de Descartes de que o senso comum é “a mais compartilhada” das faculdades, avaliando que o mestre do racionalismo moderno resistia desta maneira à tentação de negar a existência mesma dessa classe de conhecimento, “provavelmente pressionado pelas contradições crescentes entre os diversos beneficiários do conhecimento de senso comum”.

Enfim, nota-se a disputa entre a forma mística e a forma racional desse conhecimento de senso comum, em particular no clero e no campesinato (“paysannerie”).

 

O conhecimento de outro e dos Nós-outros

 

No último lugar desse sistema cognitivo das sociedades globais que dão à luz o capitalismo vem o conhecimento de outro e dos Nós-outros que: 1) – como o conhecimento de senso comum, também se encontra em grande dispersão pelos diferentes meios relacionados com a atualização da sociabilidade das massas, com a política de nivelação do absolutismo e com a desintegração dos grupos herdados da sociedade feudal, estando em nítida regressão a identificação do conhecimento dos Nós-outros ao “espírito de corpo”.

2) – Todavia, Gurvitch observa que se nota um novo conhecimento de outro, servindo de compensação parcial para o rebaixamento desse mesmo conhecimento de outro como de indivíduos concretos, lembrando-nos que tanto na classe proletária nascente como na classe burguesa ascendente, ambas penetradas da ideologia de competição e de produção econômica, o conhecimento de outro é quase nulo.

Nosso autor acrescenta que, nesse novo conhecimento de outro, se trata de uma tendência para universalizar a pessoa humana que se relaciona a Rousseau, com sua teoria da vontade geral idêntica em todos, e a Kant, este, com seu conceito de “Consciência Transcendental” e de “Razão Prática”, que chega à afirmação da “mesma dignidade moral” em todos os homens [iii].

Quer dizer, tem-se um conceito geral do outro fora de toda a concreção, de toda a individualização efetiva, acentuando-se as formas racional, conceitual, especulativa e simbólica, com tendência frustrada a reunir o coletivo e o individual no geral ou no universal.

Os intelectuais

Para encerrar, Gurvitch nota que as sedes de intelectuais encarregados de manter esse sistema cognitivo, desenvolvê-lo e difundi-lo se enriqueceu com a adição de novos grupos e novos membros, destacando-se junto aos filósofos, aos estudiosos, aos docentes a entrada dos representantes das “belas letras”, dos escritores, dos doutrinários políticos e por fim dos inventores de técnicas novas.

 

***

 

 

Notas

[i] Ultrapassando o nominalismo e o individualismo limitando o pensamento probabilitário do criador da tipologia qualitativa, Max Weber, que terminou por aplicá-la no vazio do culturalismo abstrato, a pesquisa de Gurvitch tem orientação dialética, sendo voltada para acentuar o caráter intermediário dos tipos sociológicos que “representam quadros de referência dinâmicos adaptados aos fenômenos sociais totais e chamados a promover a explicação em sociologia”.  Daí decorre a importância em distinguir (a) – entre generalização, singularização e sistematização, bem como (b) – entre repetição e descontinuidade, sem falar na distinção (c) – entre explicação e compreensão, pois estas distinções e critérios dos tipos sociológicos só podem ser utilizados numa orientação de teoria dinâmica. Ver Gurvitch, Georges (1894-1965) et al.: “Tratado de Sociologia – vol.1 e vol. 2″, 2ªedição corrigida.

 

[ii] Como se sabe, o aperfeiçoamento do conhecimento técnico levando ao maquinismo se encontra em relação direta não com as aquisições da ciência, mas com as melhoras de ordem prática – como já fora assinalado por Adam Smith e Karl Marx, apesar de suas diferenças.  Quer dizer, Karl Marx tivera razão ao insistir no primeiro tomo de “O Capital” de que não são as invenções técnicas as que tiveram por resultado a profusão de fábricas, mas, pelo contrário, foi a divisão do trabalho técnico nas grandes fábricas cada vez mais numerosas a que criou a necessidade de técnicas mecanizadas e provocou assim a introdução das máquinas, tal como confirmado pelo estudo das técnicas industriais dos séculos XVII e XVIII.

 

[iii] Em sociologia, o interesse pelo homem como indivíduo específico e diferente de seus semelhantes é reconhecido.  A individualidade concreta tem sua dignidade moral reconhecida na Declaração dos Direitos Sociais. Ver: Gurvitch, Georges: “La Déclaration des Droits Sociaux”.

 

Los Derechos Humanos y el Paradigma del Compartir

In cidadania, comunicação social, conhecimentos universitários, Democracia, desenvolvimento, direitos humanos, ensino superior, sociologia on March 22, 2016 at 3:22 pm

Fragmentos del libro Sociología y Derechos Humanos: Introducción

Por Jacob (J.) Lumier

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Este artículo se ensere en una pesquisa sobre la teoría sociológica de los conjuntos prácticos como capaz de subsidiar la educación en DDHH.

 

El preconcepto contra el alcance estructural de los cambios de comportamiento

 

El cambio en la industria cultural y en el copyright por las redes del compartir entre usuarios individuales hace ver (1) el hecho de que la principal fuerza productiva y la principal fuente de rentas [Internet e informática] pasan progresivamente en el dominio público; (2) correlativamente, favorece la derrumbada del preconcepto de que los cambios de comportamiento no alterarían la estructura de la sociedad.

Vale decir, se nota la transformación en el estándar del consumo, que incorpora una dirección para allá de la mercaderizacción [i] de las relaciones sociales, una tendencia para su emancipación delante de la oferta mercantil, lo que implica un relajamiento de la apropiación del consumo por el capital.

 

Por el lado de la sociedad democrática, pero en paralelo con esa tendencia, y en la medida en que tiene base en los cambios de comportamiento, notase el avance de los DDHH, no únicamente por la transformación en el estándar del consumo, sino que por enlace al paradigma del compartir.

 

No que el paradigma del compartir por si solo sea suficiente para derribar el preconcepto de que los cambios de comportamiento serían desproveídos de alcance en la estructura de la sociedad. Ese paradigma señala cuales son los cambios de comportamiento que tienen repercusión, como la participación en las redes de Internet. Combinado al advenimiento de la sociedad en redes de información, con su virtualidad real [[ii]], el paradigma del compartir es un nuevo hecho sociológico de gran alcance que causó mucho debate.

Pero lo que está en la base del preconcepto contra el alcance estructural de los cambios de comportamiento es el desprecio por la efectividad del psiquismo colectivo, incluso la comunicación social, delante de las infraestructuras, frecuentemente considerado aquel como una manifestación periférica.

Ciertas orientaciones usuales, preservan el concepto de institución como praxis y cosa, pero desconsideran la autonomía de los actos colectivos delante de los estándares de reproducción del sistema.

Por el contrario, los actos colectivos (incluso las intuiciones, los juicios, las reflexiones, las evaluaciones, como focos del psiquismo colectivo) no se dejan reducir a su objectivación en las obras de civilización (incluso la moral, el derecho, el conocimiento, la educación, el arte), comprendidas en su eficacia sociológica como reglamentaciones sociales.

Por ese mismo atajo, los llamados estructuralismos de inspiración lingüística proyectan la falsa suposición de una estructura lógica en la base de las sociedades y solo reconocen los cambios de posiciones jerárquicas relativas.

La consecuencia operativa de ese desvío es, como lo ha enseñado Georges Gurvitch, la dificultad para entrever los conflictos reales entre los aparatos organizados, las estructuras propiamente dichas y, en fin, la vida espontánea de los grupos.

 

Se sabe que el foco de la cultura del compartir ha sido el modelo de red en que, tomadas de dos en dos, las computadoras son los proveedores de recursos y los consumidores, a diferencia del modelo cliente-servidor, donde el servidor alimenta toda la red y los clientes sólo consumen. Es un modelo bien conocido por compartir archivos. Sin embargo las redes P2P se utilizan para otras áreas, como el almacenamiento, y están distribuidos en los medios académicos y científicos y las telecomunicaciones, por ejemplo. Además, computadoras y servidores de Web compartidos e interconectados a través de Internet se utilizan en la computación en nube (en inglés, el cloud computing). El almacenamiento de datos se lleva a cabo en los servicios que se pueden acceder desde cualquier parte del mundo, en cualquier momento y sin necesidad de instalar software o almacenar datos. El acceso a los programas, servicios y archivos remotos es a través de Internet – de ahí la alusión a la nube.

 

Hoy en día, el intercambio de información se generalizó con los sitios de redes sociales y, más allá, en muchos cooperativismos, incluidas las reuniones para comunicar presencialmente artículos literarios y escritos de opinión, profundizando la práctica de la libertad intelectual y de expresión que han marcado la historia social. En ese sentido, será válido conjeturar que la cultura de los derechos humanos transite en el paradigma del compartir [[iii]].

La economía compartida (a veces también llamada como la red de economía de igual a igual, peer-to-peer, economía colaborativa, consumo colaborativo) es un sistema socio-económico en torno a la distribución de los recursos humanos y físicos. Incluye la creación compartida, producción, distribución, comercio y consumo de bienes y servicios por parte de las diferentes personas y organizaciones.

Estos sistemas pueden adoptar una variedad de formas, a menudo tomando ventaja de la tecnología de información para empoderar a individuos, corporaciones, organizaciones no lucrativas y gobierno con información que permite la distribución, el intercambio y la reutilización del exceso de capacidad en los bienes y servicios.

La hipótesis común es que cuando la información sobre bienes es compartida, el valor de estos bienes puede aumentar, para los negocios, para los individuos y para la comunidad. (Hay muchos libros sobre este tema).

 

Históricamente, la noción de cultura presupone el intercambio. En sociología se sabe que, en la matriz original de la vida social, se desarrollan las permutas no competitivas, el don (dádiva), como la práctica de intercambio de regalos: el “doy para usted dar” (“do ut des“, principio de reciprocidad). En este sentido, la disposición para compartir es la actitud básica de la sociabilidad, como fusión parcial de las prerrogativas de unos con las obligaciones de otros – una actitud colectiva presente en todas las sociedades y formas de cultura humana en sentido amplio.

La aplicación del término paradigma del compartir, a su vez, cuenta con un marco muy específico de referencia que no debe confundirse al principio sociológico general de reciprocidad. Se trata de un conjunto de conductas y prácticas que viene reforzado por el impacto de las  tecnologías de información y comunicación -Tics, hecho ese que genera una configuración de valores combinados en las redes de información como nueva forma de participación en una sociedad democrática, un paradigma de amplio provecho para la educación en derechos humanos. Ciertamente podríamos decir que una cultura de derechos humanos en este temprano siglo XXI será desarrollada como una aplicación específica del paradigma de compartir.

 

La exigencia del compartir

La exigencia de compartir información en la educación en derechos humanos

Las líneas del Programa Mundial para la Educación en Derechos Humanos (World Programme for Human Rights Education – WPHRE), que es impulsado por la Oficina del Alto Comisionado para los Derechos Humanos de las Naciones Unidas, define como saben dos campos de aplicación, siguientes:

  1. estrategias de acción para fortalecer la implementación de la educación en derechos humanos en los sistemas de enseñanza primaria y secundaria y en la formación superior;
  2. las estrategias de acción para fortalecer la formación en derechos humanos para los profesores y educadores, funcionarios públicos, policías y militares.

El WPHRE busca promover el diálogo, la cooperación, las redes de intercambio de información entre los pertinentes segmentos de la sociedad civil. Admite que la educación en derechos humanos puede mejorarse mediante una serie de acciones destinadas a conectar los derechos humanos y las partes interesadas en la educación.

En la educación superior, los grupos profesionales y las revistas pueden ser institucionalizados a fin de fomentar los intercambios científicos sostenidos. Boletines, sitios web y otras plataformas electrónicas, tales como grupos de discusión en línea pueden alentar a los educadores a compartir información y experiencias.

 

Por supuesto, para mantener la prevalencia de una cultura de permuta se habla no sólo de una imagen de la gente en la mesa que comparten su refección.

 

El Compartir es la práctica social sistémica por excelencia y, por esa razón, mucho exigida en la construcción de derechos humanos – DDHH, que se refuerza en la medida en que los procedimientos, los métodos, los parámetros son compartidos y armonizados en conjuntos ( aquí se nota la demanda por una teoría sociológica de los conjuntos prácticos).

 

 

Conclusiones

En la medida en que el derecho de saber es un requisito para la libertad de pensamiento y de conciencia, así como la libertad de pensamiento y la libertad de expresión forman las condiciones necesarias para la libertad de acceso a la información, pueden decir que la educación en derechos humanos se desarrolla básicamente en  libertad de expresión y reunión.

 

Una vez desmontada la falsa creencia de que los cambios de comportamiento serian desproveídos de alcance en la estructura de la sociedad, se puede verificar que es realmente exagerado el intento de reducir el desafío de la universalización de los derechos humanos a la cuestión ideológica sobre el papel del Estado. Universalizar los derechos humanos implica no sólo reconocer la autonomía relativa de los simbolismos sociales, incluso los cambios de comportamiento y la efectividad del psiquismo colectivo, sino que, por vía de eses escalones, implica igualmente promover la eficacia de una cultura de los derechos humanos articulada al paradigma del compartir, arriba señalado, cualesquiera   que sean los parámetros de la aplicación de los DDHH y cualesquiera que sean las legislaciones y los estados que las adoptan.

***

 

Notas

[i] La mercaderizacción es un concepto con largo empleo en la crítica de la sociedad. En este trabajo es utilizado para designar el control capitalista en ámbito de la psicología colectiva, como mercaderizacción de las relaciones humanas, pero deben tener cuenta que hay una tendencia para la mercaderizacción de la sociedad: “La mercaderizacción de la sociedad es la universalización de la excepción mercantil (la excepción por la cual la oferta y la demanda no se corresponden sino bajo una “asimetrización” por la que uno u otro polo sale perdiendo).” (…) Cf: Jorge Iacobson: “El marketing como ideología”. Internet, Revista “Bajo Control” (25/11/2010)  http://bajocontrol.over-blog.es/article-el-marketing-como-ideologia-61689499.html  (verificado en 2 de Abril 2013).

[ii] En 2001, ya encontramos la buena formulación de la virtualidad real en torno a la afirmación de lo que hace Internet es procesar la virtualidad y transformarla en nuestra realidad: “La especificidad de Internet  es que constituye la base material y tecnológica de la sociedad red, es la infraestructura tecnológica y el medio organizativo que permite el desarrollo de una serie de nuevas formas de relación social que no tienen su origen  en Internet, que son fruto de una serie de cambios históricos pero que no podrían desarrollarse sin Internet.

Esa sociedad red es la sociedad que yo analizo como una sociedad cuya estructura social está construida en torno a redes de información a partir de la tecnología de información microelectrónica estructurada en Internet. Pero Internet en ese sentido no es simplemente una tecnología; es el medio de comunicación que constituye la forma organizativa de nuestras sociedades, es el equivalente a lo que fue la factoría. Internet es el corazón de un

nuevo paradigma socio-técnico que constituye en realidad la base material de nuestras vidas y de nuestras formas de relación, de trabajo y de comunicación. Lo que hace Internet es procesar la virtualidad y transformarla en nuestra realidad, constituyendo la sociedad red, que es la sociedad en que vivimos”. Ver: Castells, Manuel:“Internet y la Sociedad Red”.

[iii] Hoy en día ejercen como saben la economía compartida (a veces también llamada como la red de economía de igual a igual, peer-to-peer, economía colaborativa, consumo colaborativo). Es un sistema socio-económico en torno a la distribución de los recursos humanos y físicos. Incluye la creación compartida, producción, distribución, comercio y consumo de bienes y servicios por parte de las diferentes personas y organizaciones. Estos sistemas pueden adoptar una variedad de formas, a menudo tomando ventaja de la tecnología de información para empoderar a individuos, corporaciones, organizaciones no lucrativas y gobierno con información que permite la distribución, el intercambio y la reutilización del exceso de capacidad en los bienes y servicios. La hipótesis común es que cuando la información sobre bienes es compartida, el valor de estos bienes puede aumentar, para los negocios, para los individuos y para la comunidad. (Hay muchos libros sobre este tema).

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A crítica aos preconceitos filosóficos e sua implicação na teoria sociológica

In análise, conhecimentos universitários, crítica da cultura, dialectics, ensino superior, epistemologia, história, leitura, metodologia científica, pesquisa, século vinte, sociologia, sociologia, sociologia do conhecimento, twentieth century on March 3, 2016 at 5:01 pm

A crítica aos preconceitos filosóficos e sua implicação na teoria sociológica, por Jacob (J.) Lumier

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O presente artigo deveria fazer parte do e-book “Cultura e Consciência Coletiva-2” http://www.oei.es/salactsi/CulturaConsci_06_09.pdf . Deve ser lido como parte integrante de uma série de escritos de teoria sociológica cujos links seguem no fim desta postagem.

Trata-se de situar algumas linhas básicas de pesquisa sobre os obstáculos da explicação em sociologia e, por essa via, descrever o debate suscitado em torno ao problema do círculo hermenêutico, como matéria de interesse para o estudo da sociologia do conhecimento e da metodologia científica.

Esse problema do Círculo Hermenêutico foi situado e comentado pelo autor do presente artigo em E-book publicado na OEI em 2007, antes que o referido problema tivesse ampla divulgação na Internet por outros autores de língua portuguesa. Cf Lumier, Jacob (J.):”Leitura da Teoria de Comunicação Social Desde O Ponto de Vista da Sociologia do Conhecimento”- as tecnologias da informação, as sociedades e a perspectivação sociológica do conhecimento, E-book Monográfico, 338 págs. Julho, 2007, bibliografia e índices remissivo e analítico eletrônico. (com Anexos). Link: http://www.oei.es/salactsi/lumniertexto.pdf , cf. págs. 82 sq.

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Sumário

A crítica aos preconceitos filosóficos e sua implicação na teoria sociológica.. 1

Parte 01.. 1

Karl Popper e o Problema do Círculo Hermenêutico. 1

As teorias historiográficas e as tendências subjetivistas e céticas. 3

A Crítica desenvolvida por Dilthey. 4

Escritos conexos. 5

Notas. 6

 

 

 

Parte 01

 

         Que a sociologia é contra os preconceitos filosóficos inconscientes não há muita novidade nisso. Sabe-se que, apesar de seu culturalismo abstrato, Max Weber insistiu que o cientista social se esforçasse por distinguir os juízos de valor dos juízos científicos. Exigência de objetividade que fora explicada bastante claramente no que Max Scheler e Karl Mannheim chamaram sociologia do conhecimento, a qual, em seus respectivos comentários, Daharendorf qualifica, por sua vez, como “método para a autopurificação dos cientistas sociais[i].

 

Karl Popper e o Problema do Círculo Hermenêutico

 

É claro que essa exigência de objetividade como autopurificação marca a condição mesma de um conhecimento científico, e assimila a ideia de Bacon da pureza do intelecto, isto é, a ideia de purificar o intelecto, purgá-lo de preconceito, conforme a versão de Karl Popper[ii].

Em defesa de sua teoria dinâmica do mundo dos produtos, na referência do qual situa o estudo das teorias e argumentos científicos, esse último autor faz a crítica da influência do psicologismo e, nesse marco, nota que deveria ser lembrado que Husserl e muitos pensadores ainda mais recentes consideravam uma teoria científica como uma hipótese científica que foi demonstrada verdadeira, e que a tese do caráter conjectural das teorias científicas era ainda vastamente execrada como absurda, quando o próprio Karl Popper tentara propagá-la a partir de 1930 (cf. ib. p.348 sq).

Em prosseguimento, Popper expõe uma tentativa de ilustrar, em conexão com o problema da compreensão histórica, a suposta superioridade de seu método, centrado no esforço de reconstruir criticamente as situações de problema, em detrimento do que chamou método psicológico, tido como voltado para reviver intuitivamente alguma experiência pessoal, o qual discutirá em cotejo com R.G. Collingwood[iii], mas em crítica contra Dilthey.

Desta forma, podem observar os dois conjuntos de argumentos que Popper aventa para esclarecer sobre o problema do círculo hermenêutico.

Inicialmente, considera tratar-se de um debate que foi encaminhado por Dilthey, mas supostamente de forma inadequada, já que, segundo Popper, fora desenvolvido em vista de “livrar-se da subjetividade por temer a arbitrariedade[iv].

Quer dizer, o problema do círculo hermenêutico teria surgido para Dilthey no marco da “necessidade de transcender as tendências subjetivistas e céticas em historiografia” (ib.p.352). É o problema de que o todo, seja de um texto, de um livro, da obra de um filósofo, de um período, só pode ser compreendido se compreendermos as partes constituintes, enquanto estas partes, por sua vez, só podem ser compreendidas se compreendermos o todo (ib.ibidem).

Popper não só sugere haver em Dilthey um desconhecimento da formulação anterior desse problema por Bacon, mas destaca ser essa formulação anterior que deve ser levada em conta, seguinte: “de todas as palavras temos de extrair o sentido de cuja luz cada palavra isolada deve ser interpretada”; e frisa que (1)- a palavra ‘interpretada’, nessa proposição de Bacon, significa ‘lida simplesmente’; e (2)- que a mesma ideia de transcender as tendências subjetivistas e céticas mediante o preceito de confrontar o sentido de “todas as palavras” a “cada palavra isolada” está encontrável em Galileu, lá onde, “a fim de compreender Aristóteles”, deve-se ter “todos os ditos dele sempre diante da mente”.

 

As teorias historiográficas e as tendências subjetivistas e céticas

 

Mas não é tudo. Para melhor ilustrar seu método, Popper retorna a Bacon em vista de avaliar a distinção entre “interpretatio naturae” e “anticipationis mentis”, confrontando-a ao uso que supõe ter sido aquele feito por Dilthey.

Com efeito, Popper valoriza a ideia de Bacon da pureza e de purificar o intelecto, e considera que se trata de purgar o intelecto de preconceitos. Sugere que, adequadamente entendida, essa significação equivaleria a purgar o intelecto de teorias historiográficas ou representações de experiências passadas, livrá-lo de “anticipationis mentis”.

Popper inclui, desta forma, as teorias historiográficas ou representações de experiências passadas no âmbito das tendências subjetivistas e céticas, e as situa como características do sentido moderno de “interpretação”, que, segundo ele, é o sentido que Dilthey houvera usado equivocadamente, ao ter traduzido o sentido do “simplesmente lido” por esse sentido moderno, metafórico.

Aparentemente Popper quer estabelecer que a crítica por Dilthey à historiografia e a filosofia da história se volta contra o próprio. Quer dizer, a crítica elaborada por Dilthey não se colocaria acima das tendências subjetivistas e céticas.

 

A Crítica desenvolvida por Dilthey

 

Há, porém, aspectos mais sutis e nuances significativas a respeito da orientação crítica de Dilthey que Popper não levou em conta, e que valem como refutação a essa tentativa de identifica-lo ao ceticismo.

Com efeito, na “ Introducción a las Ciencias del Espíritu”, sua mais importante obra, Dilthey nos diz que “todas as fórmulas de Hegel, Schleiermacher ou Comte, com que pretendem expressar a lei dos povos, pertencem ao pensar natural que precede a análise, e que é precisamente metafísico”. Esses pretensiosos conceitos gerais da filosofia da história não são outra coisa que as notiones universales, cuja origem natural fora descrita magistralmente por Spinoza, quem assinalou também seus fatais efeitos sobre o pensamento científico [v].

Todavia, é certo que o posicionamento intuicionista de Dilthey é abstrato, posto que não adota a explicação. No seu dizer: “o conhecimento do todo da realidade histórico-social (…) se verifica sucessivamente em um nexo de verdades que descansa em uma autognosis epistemológica (…)” (ib. p.112).

Nada obstante, embora adote desta forma a compreensão, Dilthey deixa claro sua consciência das limitações dessa autognosis epistemológica, e assim se afasta decididamente da pretensão subjetivista de chegar a um conhecimento conclusivo por esta via, ou seja, rejeita a pretensão de que a compreensão substitua a explicação.

Isto não quer dizer que a possibilidade da explicação esteja excluída na orientação de Dilthey. Pelo contrário. Comprometido com a busca de uma metodologia científica, esse pensador rejeita igualmente excluir a possibilidade da explicação e, por essa postura crítica, consegue limitar o aspecto cético de sua orientação, isto é, a atribuição de valor positivo exclusivamente à compreensão, restringindo seu alcance ao que há de previsível em relação à possibilidade da explicação. Posicionamento esse facilmente perceptível no desdobramento de sua análise sobre o conhecimento do todo da realidade histórico-social, a saber que “(…) nessa conexão de verdades se chega a conhecer a relação entre fatos, lei e regra por meio da autognosis”. Quer dizer, a compreensão encontra uma abertura para seu caminhar até a explicação.

A análise de Dilthey também nos mostra quanto distante estamos de toda a possibilidade previsível de uma teoria geral do curso histórico, por mais modestos que sejam os termos em que se fala dela. A história universal, na medida em que não é algo sobre-humano, formaria a conclusão desse todo das ciências do espírito. (ib. p.112) E ainda lemos: “a ciência unicamente se pode aproximar a encontrar princípios claros de explicação por meio da análise e valendo-se de uma pluralidade de razões explicativas” (ib.ibidem).

Em suma, o fato de Dilthey não adotar fundamentalmente a explicação não faz dele obrigatoriamente um subjetivista cético, tanto mais que ele repele inequivocamente e se afirma crítico dos preconceitos filosóficos, como conceitos gerais cultivados na filosofia da história, e não somente reconhece o valor epistemológico das razões explicativas, mas sustenta que a análise fundada na autognosis epistemológica ou, simplesmente, fundada na compreensão, se revela o único meio capaz de encontrar os princípios de explicação – embora fundada na intuição, o campo da análise compreensiva não é completamente estranho à objetividade da possível explicação determinística.

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Continua na Parte 02

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Escritos conexos

http://www.oei.es/salactsi/CulturaConsci_06_09.pdf

 

O presente artigo é parte integrante da série de escritos cujos links seguem abaixo.

https://leiturasociologica.wordpress.com/2014/11/03/culturalismo-e-sociologia/

 

https://leiturasociologica.wordpress.com/2014/11/10/cultura-e-objetividade-segunda-parte-wilhelm-dilthey/

 

https://leiturasociologica.wordpress.com/2014/10/29/cultura-e-objetividade-_-primeira-parte-max-weber/

 

https://leiturasociologica.wordpress.com/2014/10/23/cultura-e-objetividade/

 

https://leiturasociologica.wordpress.com/2013/04/30/vontade-de-valor-vontade-de-verdade-ideias-de-valor-em-sociologia/

 

https://leiturasociologica.wordpress.com/a-utopia-do-saber-desencarnado-a-critica-da-ideologia-e-a-sociologia-do-conhecimento/

 

https://leiturasociologica.wordpress.com/a-dialetica-sociologica-o-relativismo-cientifico-e-o-ceticismo-de-sartre-aspectos-criticos-de-um-debate-atual-do-seculo-xx/

 

https://leiturasociologica.wordpress.com/sartre-e-a-sociologia-diferencial/

 

https://leiturasociologica.wordpress.com/2008/09/15/resumo-para-a-dialetica-sociologica-o-relativismo-cientifico-e-o-ceticismo-de-sartre-aspectos-de-um-debate-atual-do-seculo-vinte/

 

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Notas

[i] DAHARENDORF, Ralf: “Ensaios de Teoria da Sociedade”, trad. Regina Morel, revisão e notas Evaristo de MORAES FILHO, Rio de Janeiro, Zahar-Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), 1974, 335pp. (1ªedição em Inglês, Stanford, EUA, 1968), p.273].

[ii] POPPER, Karl: ‘Conhecimento Objetivo: Uma abordagem evolucionária’, tradução Milton Amado, São Paulo/Belo Horizonte, EDUSP/editora Itatiaia, 1975, 394pp, traduzido da edição inglesa corrigida de 1973 (1ªedição em Inglês : Londres, Oxford University Press, 1972), pág. 353.

[iii] COLLINGWOOD, R.G.: “A Ideia de História”, trad. Alberto Freire, Lisboa, Ed. Presença, 1972, 401pp. (1ªedição em Inglês, 1946), pp.343 a 401.

[iv] POPPER, Karl : ‘Conhecimento Objetivo : uma abordagem evolucionária, op. cit. Pág. 171.

[v] DILTHEY, Wilhelm: “Introducción a las Ciencias del Espíritu: em la que se trata de fundamentar el estudio de la sociedad y de la historia”, tradução e prólogo por Eugenio ÍMAZ , México, Fondo de Cultura Económica, 1944, 485pp. (1ªedição em Alemão, 1883), pág.113.

Cultura e Função Simbólica: Observações sobre as análises filosófica e sociológica

In dialectics, history, laicidad, portuguese blogs, sociologia, twentieth century on November 17, 2014 at 10:27 am

 

Web sitio Leituras do século vinte

Cultura e Função Simbólica

Observações sobre as análises filosófica e sociológica

Artigo de sociologia

Por

Jacob (J.) Lumier

 

Websitio Leituras do Século XX

http://www.leiturasjlumierautor.pro.br

 

Rio de Janeiro, Novembro 2014

 

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Cultura e Função Simbólica: Observações sobre as análises filosófica e sociológica de Jacob (J.) Lumier está licenciado com uma Licença Creative Commons – Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Baseado no trabalho disponível em http://www.oei.es/cienciayuniversidad/spip.php?article388.
Podem estar disponíveis autorizações adicionais às concedidas no âmbito desta licença em http://www.leiturasjlumierautor.pro.br.

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 Resumo:

A compreensão da variabilidade suscita as análises filosófica e sociológica. Um símbolo humano genuíno se caracteriza não por sua uniformidade, mas por sua variabilidade: não é rígido ou inflexível, mas móvel. A função simbólica é inseparável do homem tomado coletiva ou individualmente, de tal sorte que os Eu, Nós-outros, grupos, classes sociais, sociedades globais são construtores inconscientes ou conscientes dos símbolos variados.

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  Apresentação

 Originariamente a esfera simbólica surge ligada às crenças no sobrenatural, religioso ou não. O conhecimento de que a maior parte dos símbolos adquiriu um caráter completamente racional, não tendo mais o aspecto místico original da esfera simbólica, foi conquistado por etapas nos tipos mais recentes de sociedade.

  • Sem embargo, é exagero sustentar que, do fato desse caráter racional adquirido através dos tipos de sociedade, torna-se válida a conclusão de que os símbolos se tornaram simples signos, simples indicativos da ação ou do comportamento: é exagerada a hipótese da “preponderância total dos signos”, com a consequente redução na intensidade do caráter que tem o símbolo de instrumento impulsionando para a participação direta no significado.
  • Nessa hipótese exagerada, acredita-se que os sistemas simbólicos engendram o sentido e o consenso em torno do sentido por meio de alguma lógica e se deixa de lado a pesquisa sociológica fundamental do sentido da esfera simbólica ela própria, como setor da realidade social, pesquisa indispensável para pôr em perspectiva o coeficiente humano e existencial do conhecimento, sem o que o problema da função simbólica resta superficial.
  • Para uma sociologia diferencial, é insuficiente concluir a análise na afirmação de que os sistemas simbólicos estão propensos por sua própria estrutura a servirem simultaneamente a funções de inclusão e exclusão, de associação e dissociação, de integração e distinção – às quais são atribuídas um alcance político. Isso não basta.
  • Certamente, o critério da linguagem como fato é reconhecido, mas, ao invés de acentuar como imprescindível e indispensável para a comunicação o fato sociológico da união prévia, o todo existente que torna possível a apreensão dos significados, tomam a linguagem como fato em si, por ela própria, sem condição prévia, em uma abordagem fora de lugar.
  • Nenhuma comunicação pode ter lugar fora do psiquismo coletivo, isso é básico, muito menos com criaturas lógicas, seres imaginados não-humanos. Toda a língua pressupõe um todo, uma união prévia viabilizando as significações.
  • Aliás, a apreensão da união prévia é reconhecida por sociólogos notáveis. Admitem que a sociedade tem necessidade não apenas de um “conformismo moral”, mas também de um mínimo de “conformismo lógico”, sem o qual não poderia subsistir. O primado é para a produção do sentido, que Durkheim vincularia a um entendimento entre os homens, a uma concepção homogênea do tempo, do espaço, da causa, do número, etc., como base prévia de todo o acordo viabilizando a vida em comum.

 

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Sumário

Resumo. 4

Apresentação. 5

PRIMEIRA PARTE.. 8

A análise filosófica da função simbólica.. 8

Uma função de síntesis filosófica. 9

A rede simbólica. 11

Inteligência e imaginação simbólicas. 12

Função simbólica da linguagem.. 13

A função do pensamento simbólico. 14

Distinção entre realidade e possibilidade. 15

A arte e o descobrimento da realidade. 16

Universo de discurso independente. 18

SEGUNDA PARTE.. 21

A análise sociológica da esfera simbólica do mundo humano.. 21

A afinidade de realidade social e esfera simbólica. 21

A Classificação dos símbolos sociais. 23

Pluralismo da função simbólica. 24

O signo no símbolo. 25

Instrumento de participação. 27

Uma compreensão ampliada da função simbólica. 28

Notas de Fim.. 29o


Baixe grátis a versão pdf deste artigo teclando aqui  Cultura e Função Simbólica


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PRIMEIRA PARTE

A análise filosófica da função simbólica

A Função simbólica examinada como um vínculo geral do mundo da cultura.

 

A análise filosófica vem a ser orientada por um processus de simplificação da interpretação alegórica, em vista de descobrir um só objeto ou um só motivo simples que contenha e compreenda todos os demais.

 

Como se sabe, sendo um nível da realidade social, o mundo da cultura pode ser estudado sob seu aspecto simbólico, não só em sociologia, mas em filosofia.

Já vimos que a noção de cultura se refere ao mundo dos valores e ideais e que em sua autonomia relativa é estudado na sociologia das obras de civilização.

Já vimos igualmente que podemos utilizar a expressão sociologia da cultura para designar o ramo mais geral de estudo sociológico dos sinais, símbolos, ideias, valores e ideais, incluindo o estudo das suas diferenciações, combinações, hierarquias variáveis em função dos tipos sociais diversificados.

Entretanto, na análise filosófica a função que se toma em consideração se afirma em referência outra que não primordialmente os tipos construídos em sociologia.

Não predomina a missão voltada para pôr em relevo as correlações específicas entre as obras de civilização e os quadros sociais, visando explicar a eficácia do direito, do conhecimento, da moral, da arte, da religião, da educação como setores diferenciados na colagem da estruturação da realidade social.

Uma função de síntesis filosófica

Antes disso, o que se busca na análise filosófica será no dizer de Ernst Cassirer não uma unidade de efeitos, mas uma unidade do processus criador.

Todavia, o ponto de partida especulativo não aparece orientado como em sociologia, por uma conjectura apenas descritiva e não significante.

A busca do processus criador em análise filosófica compreende uma intenção afirmativa ou até confirmativa, admitindo-se que, se o termo humanidade tem alguma significação apesar das diferenças e oposições entre as formas simbólicas, estas são chamadas a atender um fim comum, de tal sorte que será possível fazê-las convergir em um foco comum de pensamento.

  • Desta maneira, embora sob o aspecto interpretativo individual e conceitualista não seja exagerado comparar a análise filosófica ao culturalismo, devemos comentá-la sob outro aspecto, pelo enfoque do realismo, que põe em perspectiva a união prévia que a linguagem humana pressupõe, fazendo notar a vertente fenomenológica da análise filosófica.

Com efeito, em relação à realidade social, a análise filosófica acentua a autonomia da esfera da cultura referindo-a antes ao pensamento sob as seguintes orientações: (a) – em sentido especulativo, como intenção para algo não inteiramente idêntico, e (b) – notadamente como atividade penetrada e envolvida na subjetividade individual (aspiração aos valores).

Daí que a função tomada em consideração seja uma função de síntesis filosófica, chamada a incluir a função simbólica e tomada como constitutiva da função geral do mundo da cultura, de tal sorte que permita tratar o mito, a religião, a arte, a linguagem e até a ciência como variações de um mesmo tema [i].

Deste ponto de vista, a análise filosófica vem a ser orientada por um processus de simplificação da interpretação alegórica [ii], em vista de descobrir um só objeto ou um só motivo simples que contenha e compreenda todos os demais.

 

O homem não pode mais enfrentar-se com a realidade em modo imediato, mas, por efeito desse elemento intermédio que é sua descoberta, a realidade física lhe aparece envolta em formas lingüísticas, em imagens artísticas, em símbolos míticos ou religiosos, de tal sorte que não pode ver nem conhecer coisa alguma senão através da interposição desse meio artificial.

 

No dizer de Cassirer o sistema das atividades humanas se resolve na obra do homem, cujo círculo de humanidade encontra na linguagem, no mito, religião, arte, ciência e na história os elementos constitutivos: tal é a concepção de filosofia do homem que orienta previamente a análise filosófica da função simbólica, tomada como um vínculo geral do mundo da cultura.

O sistema simbólico se define na referência do mundo humano e na análise das respostas humanas, tomadas em relação a certos motores representados como estímulos externos.

O esquema da análise filosófica é feito em comparação ao processus de adaptação dos organismos biológicos ao seu ambiente.

Se cada organismo se acha coordenado ao seu ambiente é porque há cooperação e equilíbrio dos sistemas de recebimento dos estímulos externos e de reação ante os mesmos.

Sem embargo, no tocante ao mundo humano há uma diferença específica posta na descoberta de um novo método para adaptar-se ao seu ambiente, método diferencial este que aparece como intermediário entre a recepção dos estímulos externos e a reação ante os mesmos e que, todavia, transforma a totalidade da vida humana, constituindo desse modo uma nova dimensão da realidade.

Quer dizer, na realidade do mundo humano a resposta é demorada, é interrompida e retardada por um processus lento e complexo de pensamento intermediado.

Cassirer entende essa diferença específica das respostas humanas como reversão da ordem natural: o homem já não pode escapar desse universo simbólico, desse processo lento e complicado de pensamento a transformar a totalidade da vida humana.

Dito com outras palavras, o homem não pode mais enfrentar-se com a realidade em modo imediato, mas, por efeito desse elemento intermédio que é sua descoberta, a realidade física lhe aparece envolta em formas linguísticas, em imagens artísticas, em símbolos míticos ou religiosos, de tal sorte que não pode ver nem conhecer coisa alguma senão através da interposição desse meio artificial.

 

A rede simbólica

O critério do progresso no pensamento e na experiência se descobre na configuração de uma rede simbólica, que se reforça e se torna mais refinada em função do próprio progresso no pensamento e na experiência.

  • Todavia, além da descoberta, Cassirer não se formula a questão de saber como esse meio artificial vem a ser um meio interposto entre a recepção dos estímulos externos e a reação ante os mesmos, mas aprecia tão somente o efeito dessa interposição descoberta, que é afirmação do universo simbólico: a configuração de uma rede simbólica, que se reforça e se torna mais refinada em função do progresso no pensamento e na experiência, aliás, é o critério mesmo desse progresso. Daí sua diferença especifica.

Onde há progresso no pensamento, há reforço dessa rede simbólica tecendo a linguagem, a arte, o mito e a religião sem se confundir a esses, em conjunto ou separadamente.

A rede simbólica é, pois, a trama complexa da experiência humana, trama formada exatamente pela linguagem, a arte, o mito, a religião. Desta sorte, se afirma que a realidade física parece retroceder na mesma proporção em que avança a atividade simbólica do homem.

Todavia, em face dessa análise Cassirer sublinha que a racionalidade é um traço inerente a todas as atividades humanas, seu imperativo ético fundamental, que pode ser observado na mitologia, na linguagem, na religião pelo que estas se afirmam como formas da vida cultural humana em toda a sua riqueza e diversidade, isto é, se afirmam como formas simbólicas nas quais se compreendem os caminhos da civilização.

Inteligência e imaginação simbólicas

Deste modo, visando esclarecer a configuração do simbolismo da linguagem humana, a análise filosófica busca estabelecer o conceito de inteligência e imaginação simbólicas.

Toma como ponto de partida a distinção entre signos e símbolos. Raciocina à maneira clássica por contraste com a suposição usual de um mundo de natureza animal a partir da seguinte imagem: se, na “conduta animal” há um complexo sistema de signos e sinais, constata-se uma distância imensa destes fenômenos à inteligência da linguagem simbólica e humana.

Quer dizer, os famosos experimentos do behaviorista Pavlov e todos os fenômenos descritos comumente como reflexos condicionados não só estão muito longe como estão em oposição ao caráter essencial do pensamento simbólico humano.

Sinais e símbolos correspondem a dois universos diferentes do discurso: um sinal é uma parte do mundo físico do ser, enquanto um símbolo é uma parte do mundo humano do sentido.

Os sinais são operadores, os símbolos são designadores. Mesmo sendo entendidos e utilizados como tais, os sinais possuem uma espécie de ser físico ou substancial, os símbolos possuem unicamente um valor funcional.

Para esclarecer sobre a transição, na psyché individual, de uma imaginação e inteligência práticas para uma inteligência e imaginação simbólicas, Cassirer nota a ultrapassagem dos métodos usuais de observação psicológica, sublinhando que a visão do caráter geral e da importância extraordinária dessa transição se alcança observando a realização da própria natureza.

Quer dizer, o fato de uma criatura aprender a combinar certa coisa ou evento com certo signo do alfabeto manual, ou que se tenha estabelecido uma associação fixa entre essas coisas e certas impressões tácteis, ainda que se repitam e ampliem, não implicam a inteligência do que é e do que significa a linguagem humana.

 

 Função simbólica da linguagem

 Um símbolo humano genuíno se caracteriza não por sua uniformidade, mas por sua variabilidade: não é rígido ou inflexível, mas móvel.

 

  • Segundo Cassirer, para chegar à inteligência da linguagem humana a criatura tem que fazer um descobrimento novo muito mais importante do que a mera associação entre certas coisas e certas impressões tácteis. Tem que compreender que cada coisa tem um nome, que a função simbólica não se acha restrita a casos particulares, mas constitui um princípio de aplicabilidade universal que abrange todo o campo do pensamento humano.

Essa compreensão do simbolismo da linguagem humana pode se produzir como um choque súbito favorecido pela natureza. Quer dizer, o princípio do simbolismo constitui a chave que dá acesso ao mundo especificamente humano, o mundo da cultura, e uma vez que o homem se acha em posse dessa chave está assegurado o progresso ulterior. Por isso, o progresso no pensamento não pode ser obstruído nem impossibilitado por lacuna alguma do material sensível.

Desde o ponto de vista da análise filosófica a cultura deriva seu caráter específico e seu valor intelectual e moral não do material que a compõe, não de impressões sensíveis originais, mas de sua forma, de sua estrutura arquitetônica a qual pode ser expressa com qualquer material sensível. O livre desenvolvimento do pensamento simbólico e da expressão simbólica não se acha obstruído pelo mero emprego de signos tácteis em lugar dos signos verbais. No reino da linguagem, sua função simbólica geral é a que vivifica os signos materiais e os faz falar. Sem esse princípio vivificador o mundo humano seria surdo e mudo.

Ao lado da aplicabilidade universal devida ao fato de que cada coisa tem um nome, a outra característica da função simbólica é o caráter extremamente variável dos símbolos, que podem expressar o mesmo sentido em idiomas diferentes, assim como – nos limites de um mesmo idioma – uma mesma ideia ou pensamento pode ser expressa em termos diferentes. Um símbolo humano genuíno se caracteriza não por sua uniformidade, mas por sua variabilidade: não é rígido ou inflexível, mas móvel. O dar-se conta dessa mobilidade é uma conquista tardia no desenvolvimento intelectual e cultural do homem e será afirmado no pensamento reflexivo.

 

A função do pensamento simbólico

A moderna teoria da Gestalt já mostrou como o processo perceptivo mais simples implica elementos estruturais fundamentais que antecipam a capacidade do homem para isolar relações ou considerá-las em sentido abstrato.

  • Do ponto de vista da dependência em que se acha o pensamento relacional para com o pensamento simbólico, se chega a compreender que não seria correto dizer que o mero dar-se conta de relações já pressupõe um ato intelectual, um ato de pensamento lógico ou abstrato. Segundo Cassirer o dar-se conta de relações é uma precaução necessária até nos atos elementares da percepção: sem um sistema complexo de símbolos o pensamento relacional não se produziria e muito menos alcançaria seu desenvolvimento.

A moderna teoria da Gestalt já mostrou como o processo perceptivo mais simples implica elementos estruturais fundamentais, inclusive certos níveis ou configurações das quais as estruturas espaciais ou óticas foram demonstradas em etapas relativamente inferiores da vida animal. Daí se entende que no homem se tenha desenvolvido uma capacidade para isolar relações ou considerá-las em sentido abstrato.

Quer dizer, para captar esse sentido abstrato das relações, o homem já não depende de dados sensíveis concretos, dados visuais, auditivos, tácteis, mas considera essas relações em si mesmas: na geometria se estudam relações espaciais universais de que a linguagem humana como rede simbólica é o passo preliminar.

A natureza da linguagem liga-se, pois, à reflexão ou pensamento reflexivo, como capacidade que consiste em destacar de toda a massa indiscriminada do curso dos fenômenos sensíveis fluentes certos elementos fixos, por efeito de isolá-los e concentrar a atenção sobre eles.

Bem entendido, esse pensamento reflexivo depende do pensamento simbólico, compreende o dar-se conta da variabilidade e da mobilidade das relações, inclusive o dar-se conta da função simbólica da linguagem.

  • Cassirer visa mostrar com a distinção de três níveis em sua análise – o pensamento relacional, o pensamento simbólico, o pensamento reflexivo – que a conduta humana como um todo é interligada ao simbolismo da linguagem, de tal sorte que, no campo da psicopatologia da linguagem, os que perdem o uso da palavra – isto é, perdem a captação dos universais – tornam-se incapacitados para a solução de problemas que exigem qualquer atividade especificamente teórica ou reflexiva, se aferram aos fatos imediatos e são incapazes de executar tarefas que exigem a compreensão do abstrato.

 

Distinção entre realidade e possibilidade

O pensamento simbólico consiste na capacidade de dotar o homem com uma nova faculdade: a de reajustar constantemente seu universo humano.

Na observação do progresso ulterior da cultura, Cassirer nota a independência da função do pensamento simbólico no aprofundamento da distinção entre realidade e possibilidade.

Essa distinção não denota nenhum caráter das coisas em si mesmas e se aplica unicamente ao nosso conhecimento.

O bom exemplo é o método hipotético empregado por Galileu para o estudo dos fenômenos naturais, já que esse mesmo método por arrazoamentos hipotéticos e condicionais pode ser encontrado em Rousseau.

Quer dizer, a distinção entre realidade e possibilidade que caracteriza os grandes filósofos éticos se impõe nas ciências da natureza e define as matemáticas como uma teoria de símbolos.

Os fatos da ciência implicam sempre um elemento teórico ou simbólico, foram hipotéticos antes de chegarem a ser observáveis.

Cassirer sublinha que o caráter utópico das descrições dos filósofos éticos como Rousseau constitui uma construção simbólica que o filósofo se propõe descrever e trazer à realidade como um inesperado futuro da humanidade.

Sua conclusão assina ao pensamento simbólico a capacidade de dotar o homem com uma nova faculdade: a de reajustar constantemente seu universo humano.

As teorias éticas revelam esse caráter do pensamento simbólico na medida em que o mundo ético nunca é dado, mas sempre se acha fazendo-se.

O pensamento ético jamais pode limitar-se a aceitar o dado.

Segundo Cassirer, é esse pensamento simbólico que supera a inércia natural do homem e lhe dota com uma nova faculdade, na qual se trata de dar lugar ao possível como o oposto à aceitação passiva do estado atual dos assuntos humanos, do qual o método hipotético é devedor.

 

A arte e o descobrimento da realidade

Em sua análise da arte, Cassirer destaca a aplicação dessa compreensão do pensamento simbólico como dotando o homem da nova capacidade para reajustar constantemente seu mundo humano: a arte não é mera reprodução de uma realidade dada e acabada. É uma via para o descobrimento da realidade. Se a linguagem e a ciência determinam nossos conceitos do mundo exterior não passam de abreviaturas da realidade, enquanto a arte é intensificação da realidade, uma concreção.

Na contemplação de uma grande obra de arte não sentimos separação entre o mundo subjetivo e o objetivo; não vivemos na realidade plena e habitual das coisas físicas, nem tampouco vivemos por completo em uma esfera individual. Para além dessas duas esferas, detectamos um novo reino, ao qual se referem tais formas plásticas, musicais ou poéticas. Estas por sua vez possuem uma verdadeira universalidade, uma comunicabilidade universal, de tal sorte que passamos a ver a realidade em tal forma particular.

A arte desprende um poder construtivo na estruturação de nosso universo humano. Toda a obra de arte possui uma estrutura intuitiva, um caráter de racionalidade, ou seja: antes de comporem analogias com as esferas do inconsciente, cada elemento singular deve ser sentido como parte de um todo compreensivo.

Mais do que representativas e objetivas, ou expressivas e subjetivas, as formas artísticas – plásticas, musicais ou poéticas – são formas simbólicas e nos introduzem uma nova realidade na qual se vê a manifestação de uma interpretação, que o artista alcança não através de conceitos, mas das formas sensíveis.

O artista é um descobridor das formas da natureza: alcança a percepção das formas puras e estruturas visuais, introduzindo em um reino outro que não o da análise de objetos sensíveis e seus efeitos.

A arte é um descobrimento verdadeiro e genuíno. Em sua descrição da experiência estética, definida como um estado psíquico diferente da frieza de nosso juízo teórico e do prosaísmo de nosso juízo moral, Cassirer assinala o seguinte: (a) – a imaginação do artista nos mostra as formas das coisas em sua verdadeira figura, fazendo-as visíveis e reconhecíveis; (b) – ao selecionar um determinado aspecto da realidade, o artista não inventa arbitrariamente, mas (c) – seu procedimento é de objetivação: uma vez que assumimos sua perspectiva, somos levados a olhar o mundo com seus olhos, tudo se passando como se jamais houvéssemos visto o mundo com essa luz peculiar; (d) – essa luz é algo mais do que um vislumbre momentâneo: em virtude da obra de arte tornou-se uma luz duradoura e permanente.

 

Universo de discurso independente

Portanto, na análise filosófica a arte constitui um universo de discurso independente, no qual se afirma a imaginação artística. Esta, por sua vez, se relaciona à linguagem simbólica do mito e da poesia predominante nos povos primitivos, que falavam fabulando e escreviam hieróglifos, como na chamada idade heroica dos gregos, para quem o mito era uma alegoria viva.

A imaginação artística não se confunde nem à capacidade inventiva nem ao poder personificador, mas é a capacidade para produzir puras formas sensíveis cujo resultado é o descobrimento de um mundo novo de formas poéticas, musicais ou plásticas.

Observando a definição de beleza como forma vivente, Cassirer assinala que houve quem considerasse a busca por essas formas viventes como o primeiro passo indispensável que conduz à experiência da liberdade.

Lembra-nos de Schiller, no centro do romantismo alemão, cuja definição de contemplação ou reflexão estética afirma nesta última a primeira atitude liberal do homem diante do universo. No seu dizer: enquanto o desejo se apropria de seu objeto, a reflexão coloca o objeto do desejo à distância e o converte em ideal, salvando-o das garras da paixão. Tal seria a atitude – liberal, consciente, e reflexiva – tida como demarcadora da fronteira entre o lúdico e a arte.

Sem embargo, esse colocar à distância como característica da obra de arte suscita a problemática da teoria estética referente à racionalidade peculiar da arte, isto é, a racionalidade da forma simbólica. Admitindo que esse colocar à distância não implica a desumanização da arte, Cassirer sustenta que viver no reino das formas não significa uma evasão dos assuntos da vida, mas, pelo contrário, significa a realização de uma das energias mais altas da vida mesma.

A arte desprende um poder construtivo na estruturação de nosso universo humano posto que toda a obra de arte possui uma estrutura intuitiva, um caráter de racionalidade, ou seja: antes de comporem analogias com as esferas do inconsciente, cada elemento singular deve ser sentido como parte de um todo compreensivo.  

Segundo Cassirer há que distinguir essa racionalidade peculiar à arte daquela outra racionalidade das coisas ou dos acontecimentos. A definição de arte como linguagem simbólica nos proporciona o gênero comum, mas não a diferença específica. A arte pode infringir as leis da probabilidade, pode nos proporcionar a visão mais grotesca e extravagante e assim mesmo possuir sua racionalidade peculiar, a racionalidade da forma.

Cassirer nos lembra a frase de Goethe à primeira vista paradoxal seguinte: a arte é uma segunda natureza, também misteriosa, porém mais inteligível porque se origina no entendimento – a que Cassirer acrescenta: a arte nos proporciona a ordem na apreensão das aparências visíveis, tangíveis e audíveis.

Na ciência tratamos de reduzir os fenômenos a suas primeiras causas e a leis e princípios gerais. Na arte nos encontramos absortos em sua aparência imediata e nos deleitamos dessa aparência, plenamente em toda a sua riqueza e variedade: não temos a ver com a uniformidade das leis, mas com a multiformidade e diversidade das intuições.

Observa Cassirer que a arte pode ser descrita como conhecimento cuja verdade não consiste em uma descrição ou explicação teórica, mas antes na visão simpática das coisas.

Essas duas ideias de verdade se encontram em contraste, mas não em contradição: podemos alternar nossas visões da realidade, a arte nos proporciona uma imagem mais rica, mais vívida e com coloração da realidade, facilitando-nos uma visão mais profunda em sua estrutura formal. E Cassirer conclui: a arte caracteriza a natureza do homem como não se encontrando ele limitado a uma única maneira específica de abordar a realidade, mas que pode escolher seu ponto de vista e assim passar de um aspecto das coisas a outro.

 

***

 

 

 Arte e Função Simbólica:

 SEGUNDA PARTE

 

A análise sociológica da esfera simbólica do mundo humano.

A função simbólica é inseparável do homem tomado coletiva ou individualmente, de tal sorte que os Eu, Nós-outros, grupos, classes sociais, sociedades globais são construtores inconscientes ou conscientes dos símbolos variados.

 

Neste ponto, devemos retornar ao problema do simbolismo antes de prosseguir com a análise filosófica da arte e das demais formas simbólicas que compõem o mundo da cultura.

Vimos que, em sua definição descritivo-compreensiva do pensamento simbólico como dotando o homem da nova capacidade para reajustar constantemente seu mundo humano, Cassirer afirma o ponto de vista da mobilidade e da variabilidade levando-nos a relembrar que a variabilidade é pesquisada com prioridade em sociologia.

 

 A afinidade de realidade social e esfera simbólica

Quer dizer, os símbolos são estudados em sociologia como símbolos sociais, portanto, existindo como representações que só em parte exprimem os conteúdos significados, e servem de mediadores entre os conteúdos e os agentes coletivos e individuais que os formulam e para os quais se dirigem, tal mediação consistindo em favorecer a mútua participação dos agentes nos conteúdos e desses conteúdos nos agentes. Os símbolos sociais constituem tanto uma representação incompleta, uma expressão inadequada, quanto um instrumento de participação.

Segundo Georges Gurvitch [iii], os símbolos sociais revelam velando e ao velarem revelam, na mesma maneira em que, impelindo para a participação direta no significado, travam-na.

Portanto, os símbolos constituem uma forma de comportamento diante dos obstáculos, sendo possível dizer que a função simbólica é inseparável do homem tomado coletiva ou individualmente, de tal sorte que os Eu, Nós-outros, grupos, classes sociais, sociedades globais são construtores inconscientes ou conscientes dos símbolos variados.

Na análise sociológica da esfera simbólica do mundo humano acentuam-se as seguintes constatações: (1) – a imensa variabilidade decorrente da ambiguidade fundamental do simbólico; (2) – os planos subjacentes da realidade social ela própria são dependentes do simbolismo, na medida em que, justamente, simbolizam o todo indecomponível dessa realidade seccionada; (3) – ao mesmo tempo, os símbolos sociais mais especialmente ligados às obras de civilização[iv] funcionam como argamassa de colagem, juntando as descontinuidades entre os níveis seccionados; (4) – os símbolos se apoiam em experiências coletivas e atos criadores dos Nós-outros , grupos, sociedades que (a) – constituem uniões prévias as quais, por sua vez, tornando possível a comunicação (a1) – ultrapassam a esfera simbólica tornando-a igualmente possível.

Nada obstante, cabe lembrar que em sociologia não se procede a uma redução que não seja um procedimento dialético. Constata-se que a esfera simbólica não passa de uma camada em profundidade da realidade social dentre outras.

A redução das ideias e valores e das obras de civilização ao plano do pensamento simbólico é característica da análise filosófica. Esta, as destaca da realidade social e do empirismo efetivo, visando desse modo estudá-las mediante a acentuação de sua autonomia relativa, como formas simbólicas dotadas de diferenças específicas.

Cabe, pois, à sociologia esclarecer que a mobilidade provém exatamente do caráter mediador dos símbolos, além disso: (a) – os símbolos variam em função dos sujeitos coletivos que os elaboram, ou emissores; (b) – os símbolos variam em função dos sujeitos coletivos a que se dirigem, ou receptores; (c) – os símbolos variam em função dos tipos de estruturas sociais parciais ou globais, bem como em função das conjunturas particulares, dos quadros sociais (sociedades, classes, agrupamentos particulares, formas de sociabilidade); (d) – os símbolos variam igualmente em função dos obstáculos a ultrapassar ou situações a dominar justamente pelos símbolos, etc.

Desta forma, a sociologia põe em relevo a afinidade entre o conjunto da realidade social e a esfera simbólica.

 

A Classificação dos símbolos sociais

Quer dizer, se analisarmos as características de funcionalidade dos símbolos sociais constataremos com Gurvitch que há duas maneiras de classificar os símbolos: uma, enfocando as colorações dominantes (como aspectos das mentalidades a que se ligam), distingue três gêneros de simbolismo que atendem a diferenças de graus e não a oposições nítidas, é a seguinte: (A) – símbolos sociais com dominante intelectual; (B) – símbolos sociais com dominante emotiva e (C) – símbolos sociais com dominante ativa e voluntária.

Inclui-se na categoria de símbolos sociais com dominante intelectual as representações coletivas e individuais, as medidas, as conceituações das diversas temporalidades e extensões concretas [v], as categorias lógicas, as grandezas matemáticas que evocam a noção de infinito (cálculo infinitesimal), os símbolos servindo de fundamento ao aparato conceitual de diferentes ciências; a linguagem, enfim.

Aliás, deste ponto de vista da coloração dominante, em relação à linguagem, Gurvitch remarca o caráter intermediário da mesma entre os símbolos intelectuais e os símbolos voluntários e ativos, porque a sua primeira forma consistiu em gestos e exclamações.

Na categoria de símbolos sociais com dominante emotiva incluem-se as danças e os cantos, as expressões de luto, as festas de noivado ou de carnaval, as maneiras de fazer a corte e de se declarar, as bandeiras, as condecorações, os monumentos, as imagens ideais que servem de padrões de moralidade [vi].

Finalmente, dentre a categoria de símbolos sociais com dominante ativa e voluntária encontramos os símbolos que servem de “sinais de símbolos”, isto é: os símbolos motores, os símbolos de preparação, os de chamada, os de comando, os de encorajamento, os de excitação, etc.

Quanto à outra maneira de classificar os símbolos em sociologia [vii], compreende uma oposição cujos critérios são eminentemente empíricos, a saber: (a) – símbolos conscientemente enganadores e ilusórios: os slogans, os preconceitos, as imagens ferindo a imaginação ou excitando os complexos de superioridade e de inferioridade, as falsificações, os louvores, etc. (b) – os símbolos inconscientemente irrisórios: ligados às relações entre os sexos (macho e fêmea), à libido e mais especialmente ao tipo de casamento; (c) – símbolos cuja elaboração não contém nenhuma intenção reservada enganadora: são os símbolos ligados às obras de civilização como os símbolos religiosos, os símbolos morais, os símbolos jurídicos, estéticos, do conhecimento, educativos, enfim.

 

Pluralismo da função simbólica

  • Em sociologia, dá-se relevo ao pluralismo da função simbólica: cada símbolo depende do cotejo entre a função simbólica total, por um lado e, por outro lado, uma situação de conjunto (conflitiva por inadequação) mais particularizada.

Todavia, a validade dessa noção de pluralismo da função simbólica deve ser submetida a uma precisão. É que por mais dependentes que os símbolos sejam dos diferentes aspectos da mentalidade, as distinções entre os símbolos devem-se como dissemos a diferenças de grau, de acentuação, de coloração, e não a oposições nítidas, não havendo na classificação dos três gêneros de simbolismo separação completa possível.

 

O signo no símbolo

Não obstante exercer-se como impulso para a participação direta no significado, a função simbólica guarda um aspecto de inadequação que a sociologia designa como “signo no símbolo”, verificando que os símbolos são presenças intencionalmente introduzidas e invocadas para indicar carências.

Podemos notar ainda nesta análise sociológica que as manifestações do social no mundo exterior dependem em grande parte do simbolismo, sendo este o caso das organizações, modelos – especialmente os modelos culturais – ritos, procedimentos, tradições, práticas, modos, papéis sociais.

Todavia, como assinala Gurvitch, não é necessário que todos os símbolos sejam generalizados e standardizados; não é necessário que estejam ligados a modelos mais ou menos cristalizados ou fixados de antemão: há um simbolismo singular e espontâneo que em circunstâncias particulares pode tornar-se importante, e que está próximo das condutas coletivas efervescentes, inovadoras e criadoras, da mesma maneira em que, com referência ao plano dos valores e das ideias sociais, está igualmente próximo da apreensão coletiva direta (não mediatizada por símbolos sociais).

Quer dizer esse simbolismo espontâneo e inteiramente singular está na proximidade dos atos mentais coletivos, incluindo as intuições intelectuais, emotivas, voluntárias dos Nós-outros, dos grupos, das sociedades globais.

  • Daí se compreende os símbolos como presenças intencionalmente introduzidas e invocadas para indicar carências, tornando de tal sorte reconhecida a expressão signo no símbolo, sendo a esta expressão-signo que se refere o aspecto de inadequação, que a função simbólica compartilha com o seu sentido de instrumento de participação, impulso para a participação direta no significado.
  • Cabe lembrar que ao constatar o signo no símbolo não se exagera sobre o conhecimento de que tenha sido por etapas que, nos tipos mais recentes de sociedade, a maior parte dos símbolos adquiriu um caráter completamente racional, não tendo mais o aspecto místico original da esfera simbólica [viii].
  • Vale dizer, a sociologia não tira do fato desse caráter racional adquirido através dos tipos de sociedade a conclusão de que os símbolos se tornaram simples signos, simples indicativos da ação ou do comportamento: a sociologia repele nessa hipótese exagerada da “preponderância total dos signos” [ix] a consequente redução na intensidade do caráter que tem o símbolo de instrumento impulsionando para a participação direta no significado [x].

Pelo contrário. Sustenta Gurvitch que a participação impulsionada pelos símbolos sociais pode ela própria tomar um caráter racional e natural e não levar os símbolos em modo algum a se tornarem veículos de misticidade [xi].

Tomando o exemplo de uma investigação científica em equipe onde prevalece o apelo à descoberta, o sociólogo nota que a participação consciente em diferentes níveis no ser social ou na criação coletiva intelectual não inclui o elemento místico.

Outro exemplo é a língua utilizada pela coletividade que, como sistema de símbolos, serve ao mesmo tempo de resposta antecipada às questões postas e de expressão incompleta das significações e ideias compreendidas pela coletividade, que fala tal língua e a utiliza em seu próprio pensamento.

  • Como se sabe este fato de as mentalidades e as consciências coletivas e individuais utilizarem um vasto aparelho simbólico prova o caráter social da vida mental, o caráter social do elemento psíquico, sobretudo consciente – os quais são integrados na realidade social e assim passam a esta última suas energias ou emanações subjetivas.
    • Daí poderem-se considerar as categorias lógicas, os imperativos morais, as regras do direito, como símbolos que inadequadamente e adaptados às circunstâncias exprimem as ideias lógicas e os valores morais e jurídicos profundos.

 

Instrumento de participação

Seja como for, ao parecer de teoria sociológica essa compreensão da função simbólica como mediação favorecendo a mútua participação dos agentes nos conteúdos significados e desses conteúdos nos agentes coletivos e individuais está em medida de incluir a distinção sugerida pela análise filosófica entre o real e o possível.

É o que se pode depreender da mencionada “expressão-signo no símbolo”, introduzida por Gurvitch para admitir a racionalidade sem excluir o elemento residual alegórico, todavia tornado instrumental em virtude da diferenciação em face de toda a misticidade.

Os símbolos sociais constituem como vimos tanto uma representação incompleta, uma expressão inadequada, quanto um instrumento de participação: revelam velando e ao velarem revelam, na mesma maneira em que, impelindo para a participação direta no significado, travam-na.

Incluindo a expressão-signo no símbolo para dar conta do sentido da função simbólica, sua efetividade como mediação, o sociólogo verifica certa dependência semelhante a uma “alegoria” da unidade de ação, na medida em que põe em relevo como dissemos a dependência que os planos subjacentes da realidade guardam em relação ao simbolismo ou à simbolização do todo indecomponível da realidade social seccionada.

Vale dizer, na verificação da realidade social em vias de se fazer, o procedimento sociológico admite certa afinidade com o “pensamento simbólico” estudado por Cassirer, que insiste na distinção entre o real e o possível desembocando em uma faculdade nova do homem: a mencionada capacidade de reajustar constantemente seu mundo.

Aliás, nessa distinção entre realidade e possibilidade, já sublinhamos tratar-se de uma conquista eminentemente epistemológica que segundo Cassirer se observa nos estágios mais avançados da cultura, no progresso da ciência na Renascença e nas épocas subsequentes.

Nada obstante, ao examinar os símbolos no marco prioritário do pensamento simbólico, a análise filosófica deixa de lado a presença operativa irredutível do simbolismo em afinidade oculta com a realidade social [xii], e tende a restaurar a alegoria e a interpretação alegórica por cima da explicação sociológica e em detrimento do caráter de instrumento de participação que a função simbólica adquiriu por diferenciação de toda a misticidade.  

Sem confundir-se às metamorais tradicionais de Platão, Aristóteles, Spinoza, Hegel, onde um mundo espiritual supratemporal e absoluto se realiza no mundo temporal, a análise filosófica corre o risco de restaurar uma interpretação alegórica do simbolismo como mística do progresso na racionalidade, e tende a projetar para-além da história a capacidade do homem em reajustar constantemente seu mundo.

 

 Uma compreensão ampliada da função simbólica

A possibilidade em apreender as configurações do objeto figurativo, sendo fundada no fato de que a época atual sublima todas as formas do pensamento operativo, põe em relevo a compreensão do símbolo como presença operativa, como mediação.

 

Em modo contrário à análise filosófica, observa-se na função simbólica como mediação uma compreensão ampliada, destacando a ambiguidade em dois polos como tensão constitutiva de qualquer símbolo social, a saber: (a) – signo de uma espécie particular e (b) – instrumento de participação direta no significado (e não somente interpretação) por via do que são apreendidos os conteúdos simbolizados.

Entretanto, da mesma maneira em que se admite que a participação direta nos conteúdos significados, para a qual incita o símbolo, pode tomar um caráter racional e natural, desprovido de qualquer misticidade, se admite igualmente que a ambiguidade fundamental dos símbolos nessa compreensão ampliada acentua a relativização da sua racionalidade.

Dessa ambiguidade, em primeiro momento, a análise sociológica chega inicialmente a um duplo drama da esfera simbólica em seu conjunto, levando segundo Gurvitch à constatação da confusão dos símbolos, bem como à descoberta da inversão do seu sentido ou missão.

Daí, temos os símbolos criando os conteúdos simbolizados – que então podem se tornar predominantemente imaginários – ao invés de exprimir e incitar à participação, e, por essa via, passando os símbolos a contribuir indiretamente para suscitar os obstáculos à participação nos valores e ideias como conteúdos significados.

Em segundo momento, a análise sociológica põe em relevo que, desse duplo drama se chega a constatar o pluralismo da função simbólica em que, como já vimos no seu tríplice aspecto – intelectual, emotivo, voluntário – cada símbolo encontra-se como dependendo do cotejo entre a função simbólica total e uma situação particularizada do duplo drama do conjunto.

Enfim, nesse marco da relativização da racionalidade dos símbolos, a análise constata que o simbolismo sociológico e o simbolismo psicanalítico (onírico e erótico) podem encontrar um denominador comum, com o elemento social fazendo variar o elemento libidinal enquanto que, por sua vez, no aspecto das carências, o simbolismo erótico representando ele próprio um esforço inconsciente para vencer os obstáculos à participação direta nos conteúdos significados.

 

***

 

Notas de Fim

[i] Cf. Cassirer, Ernst: “La Philosophie des Formes Simboliques (La Conscience Mythique)”, versão francesa por Jean Lacoste, Paris, Les Éditions du Minuit, 1972, 342 pp., (1ªedição em Alemão: 1925).

[ii] Ver sobre a interpretação alegórica a (Nota 01) dentre as NOTAS COMPLEMENTARES no final deste artigo.

[iii] Gurvitch, Georges et al.: “Tratado de Sociologia“, volumes 1 e 2, revisão Alberto Ferreira, Porto, Iniciativas Editoriais, 1964 (vol.1), 1968 (vol.2). (1as edições em Francês: Paris, PUF, 1957, 1960, respectivamente).

[iv] Os símbolos da linguagem, conhecimento, moralidade, arte, religião, direito, incluindo as ideias e valores que essas obras de civilização implicam (mediante redução ao plano do pensamento, a análise filosófica as estuda em sua autonomia relativa como formas simbólicas dotadas de diferenças específicas).

[v] Ver sobre a multiplicidade dos tempos sociais segundo Georges Gurvitch o seguinte ensaio: Lumier Jacob (J.): Leitura da Teoria de Comunicação Social desde o ponto de vista da Sociologia do Conhecimento (Ensaio, 338 págs.). Internet, O.E.I. / E-book / pdf, 2007, págs. 180 a 219. link: http://www.oei.es/salactsi/lumniertexto.pdf

[vi] Ver neste ensaio o capítulo 4: Introdução ao Estudo Sociológico da Variabilidade na Vida Moral.

[vii] A sociologia não é competente para considerar a oposição entre os símbolos como produtos da vida coletiva e os símbolos possuindo uma verdade em si.

[viii] Originariamente a esfera simbólica surge ligada às crenças no sobrenatural, religioso ou não.

[ix] Nessa hipótese exagerada adotada por Bourdieu, acredita-se que os sistemas simbólicos “engendram o sentido e o consenso em torno do sentidopor meio de alguma lógica e se deixa de lado a pesquisa sociológica fundamental do sentido da esfera simbólica ela própria, como setor da realidade social, pesquisa indispensável para pôr em perspectiva o coeficiente humano e existencial do conhecimento, sem o que o problema da função simbólica resta superficial. Para Bourdieu, os sistemas simbólicos estão propensos por sua própria estrutura a servirem simultaneamente a funções de inclusão e exclusão, de associação e dissociação, de integração e distinção – funções essas que este autor considera terem um alcance político. Cf. Bourdieu, Pierre: “A Economia das Trocas Simbólicas”, introdução, organização e seleção dos originais em Francês por Sérgio Miceli, São Paulo, ed. Perspectiva, 1974, 361 pp., pág.33.

[x] Em sociologia a autonomia do significado é relativa e só se afirma na dependência ao fenômeno social total de tal sorte que o avanço na racionalidade da cultura tem igualmente seu critério nessa dependência.

[xi] Já notamos esta característica racional quando Cassirer liga o progresso da cultura à diferenciação entre coisas e símbolos, com a distinção entre realidade e possibilidade tornando-se mais pronunciada.

[xii] Já assinalamos o fato de as mentalidades e as consciências coletivas e individuais utilizarem um vasto aparelho simbólico provar o caráter social da vida mental, o caráter social do elemento psíquico, sobretudo consciente – os quais são integrados na realidade social e assim passam a esta última suas energias ou emanações subjetivas. Tal a afinidade oculta do simbolismo com a realidade social.

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Culturalismo e Sociologia

In dialectics, history, sociologia, sociologia do conhecimento, twentieth century on November 3, 2014 at 6:22 pm

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Notas críticas para um estudo dos quadros sociológicos da

Sociologia da compreensão interpretativa desenvolvida por Max Weber.

Por

Jacob (J.) Lumier

 

O culturalismo abstrato ou espiritualista não se presta como orientação intelectual e metodológica para basear os critérios objetivos que permitem construir tipos sociológicos.

 

O culturalismo abstrato é uma corrente de pensamento do século XX que se caracteriza por buscar um elo da filosofia da história com a sociologia. O termo culturalismo é uma expressão utilizada por Georges Gurvitch em seu ensaio sobre “O Objeto e o Método da Sociologia[i] para examinar as orientações limitadoras da sociologia da compreensão interpretativa na obra de Max Weber, esclarecendo sobre a maneira variada como neste último se combinam o formalismo, o culturalismo e o psicologismo que não se sintetizam, mas aumentam continuamente e permanecem desligados uns dos outros.

Atribuindo ao culturalismo abstrato a falta de critérios objetivos e o caráter arbitrário da ligação entre a compreensão e a interpretação subjetiva, Gurvitch põe em relevo que tal orientação errática não se presta para construir tipos sociológicos, já que torna impossível justificar a passagem das significações internas (subjetivas) para as significações sociais e culturais, levando em consequência à dispersão dos critérios.

Por um lado, o culturalismo de Max Weber deriva de sua imensa erudição histórica e, por outro lado, decorre dos preconceitos espiritualistas que reparte com Heinrich Rickert, os quais consistem em considerar todas as ciências sociais como ciências da cultura estritamente individualizantes.

Como assinala Gurvitch, será por esse biais que se chegará a atribuir o papel de fator predominante aos modelos, regras, ideias e valores, levando o culturalismo a um beco sem saída.

 

 

Sumário

A discussão sobre o fator predominante. 1

Compreensão e explicação. 2

A confusão com a filosofia da história. 3

A concepção arbitrária da cultura. 4

Os coeficientes ideológicos. 5

Desencantamento do mundo. 5

Um centro irracional 6

Dualidade Metodológica. 7

Filosofia Existencial 7

Notas de Fim

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A discussão sobre o fator predominante

 

Aliás, a discussão a propósito deste fator predominante na realidade social nos mostra o estado limitado da sociologia do século XIX nos seguintes aspectos: (1) – em sua orientação paradoxal voltada para decompor a realidade social em fatores isolados que precisamente por estarem separados perdem o seu caráter social; (2) – em sua pretensão que visa explicar a realidade social na sua generalidade e fora de seus tipos, recorrendo-se (3) – precisamente ao fator predominante que se acreditava ser ele próprio extra-social.

Portanto, essa crença no caráter extra-social do suposto fator predominante como capaz de explicar a generalidade do social é assinalada em Max Weber, quem nega qualquer possibilidade de intuição do todo social e reconhece em boa vontade o caráter individualista e nominalista de sua concepção da realidade social.

Nota Gurvitch que foi em consequência dessa crença no suposto “fator predominante” que se chegou a falar de escolas sociológicas, cada uma reportando a realidade social assim destruída à outra realidade de outro gênero – geográfica, biológica, tecnológica, psicológica.

O preconceito espiritualista da sociologia do século XIX atribuía às ideias, aos gêneros do conhecimento, às formas do direito um papel determinante, tendo o próprio fundador da filosofia positiva e da sociologia August Comte sucumbido à tentação desse preconceito [ii].

Por sua vez, a ligação dos sociólogos do começo do século XX por cuja orientação se filiam ao preconceito espiritualista é um tanto camuflada. Assim, na Alemanha, partindo de uma analogia com as categorias e os dados sensíveis em Kant, os representantes do culturalismo abstrato dentre os sociólogos afirmam que o Direito constitui a forma enquanto a economia constitui a matéria da realidade social. Ademais fazem com que essa forma, isto é, o Direito, seja tomado como o fator predominante na vida social, pretendendo, em maneira mais ampla, que as formas sociais entendidas por analogia com a filosofia de Kant constituem o único objeto de estudo da sociologia [iii].

 

***

 

Compreensão e explicação

 

Max Weber desconheceu as teorias de consciência aberta às influências do ambiente e veio a tomar as significações práticas dos comportamentos sociais como isoladas da realidade social e sistematizadas pela teologia, pela ciência do Direito, pela filosofia.

Do ponto de vista da crítica pelo realismo sociológico, observa-se que Max Weber não quis separar completamente compreensão e explicação tendo recomendado aos sociólogos, com razão, que, procedendo por compreensão interpretativa, procurassem os sentidos dos comportamentos sociais a fim de melhor os explicar em seguida.

Todavia, a qualificação desses sentidos ou significações como “internas” é o erro que Gurvitch assinala aos adeptos da concepção de que a consciência é voltada para si própria e não aberta às influências diversas da ambiência social (Gestalt).

Aliás, foi dessa maneira que Max Weber desconheceu as teorias de consciência aberta [iv] e veio a tomar as significações práticas dos comportamentos sociais como isoladas da realidade social e sistematizadas pela teologia, pela ciência do Direito, pela filosofia – tal o papel dos fatores predominantes na vida social.

Contudo, se o seu culturalismo tem uma vertente em Heinrich Rickert não chega ao exagero deste, que negava a possibilidade da sociologia como ciência da cultura em virtude da pretensão em generalizar em um domínio onde Rickert supunha que a generalização não seria viável.

Em diferença, os tipos sociológicos ideais weberianos são intermediários entre a generalização e a individualização, e sua generalidade não equivale a uma média, nem sua individualização – que deriva das significações – tampouco é equiparável a uma não-repetição.

 

A confusão com a filosofia da história

 

Do ponto de vista do realismo sociológico, a sociologia exige o abandono das ilusões do progresso em direção a um ideal, bem como o abandono das ilusões de uma evolução social unilinear e contínua.

 

O culturalismo abstrato de Heinrich Rickert deve ser classificado dentre os falsos problemas da sociologia do século XIX, notadamente a falsa alternativa entre sociologia ou filosofia da história, incluindo as obras de todos os que seguiram a Heinrich Rickert de perto ou de longe.

A confusão com a filosofia da história é absolutamente inadmissível, haja vista a capacidade da sociologia para alcançar perfeitamente por si só a situação presente da sociedade sem precisar de outra disciplina para isso.

Mais ainda: a sociologia exige o abandono das ilusões do progresso em direção a um ideal, bem como o abandono das ilusões de uma evolução social unilinear e contínua, sendo da competência da sociologia descobrir na realidade social as diversas perspectivas possíveis e até antinômicas que são postas para uma sociedade em vias de se fazer.

As ilusões trazidas pela confusão com a filosofia da história se encontram favorecidas pela ocorrência de um erro lógico fundamental que é segundo Gurvitch a falta de distinção entre os juízos de realidade e os juízos de valor.

Desse erro decorre a confusão, pois em vez de explicar os desejos a partir da realidade social, constrói-se a realidade social em função desses desejos.

Os juízos de valor são as aspirações, os desejos e as imagens ideais do futuro e formam um dos patamares da realidade social em seu conjunto, de tal sorte que o progresso em direção a um ideal só pode intervir na análise sociológica unicamente em vista de integrar esse progresso ideal em um conjunto de fatos sociais que a análise se propõe explicar.

A sociedade está sujeita a flutuações e até aos movimentos cíclicos e o progresso retilíneo em direção a um ideal particular, tomado como um movimento constante, não pode valer mais do que para períodos determinados – em outros períodos a sociedade pode até avançar para uma direção oposta ao ideal ou orientar-se por um ideal completamente diferente.

 

A falta de distinção entre os juízos de realidade e os juízos de valor torna impossível o acesso da análise sociológica a um dado fundamental da vida social que é a variabilidade.

 

Quer dizer, a falta de distinção entre os juízos de realidade e os juízos de valor [v] torna impossível o acesso da análise sociológica a um dado fundamental da vida social que é a variabilidade. Gurvitch nos lembra que a identificação da sociologia e da filosofia da história afirma a pressuposição monista que é absolutamente irreal, pois não existe uma Sociedade com “S” maiúsculo, mas só há unicamente sociedades múltiplas, em tal sorte que o sociólogo é levado a pôr em relevo em cada sociedade a ocorrência de tendências variadas, e em cada crise o anúncio de diversas soluções possíveis.

O termo realidade social e o termo sociedade cobrem fenômenos muito diferentes segundo se trate de diferentes épocas históricas, de diferentes civilizações, de diferentes tipos sociais. Uma visão singular da sociedade e um modo próprio de interpretar sua natureza são manifestações de caráter coletivo que se encontram em cada tipo de sociedade global.

Ora, o culturalismo abstrato articula uma concepção sem nenhum contato com essas manifestações do real concreto.

Trata-se de uma orientação desdobrada da chamada filosofia crítica da história que se tentou opor à filosofia dogmática da história. Todavia, a metodologia do saber histórico veio a ser discutida sem ter sido posta em relação dialética com a metodologia do conhecimento sociológico, nem ter afirmado o reconhecimento da realidade dos fenômenos do todo social – ou fenômenos sociais totais, no dizer de Gurvitch.

 

A concepção arbitrária da cultura

 

►Daí que, no culturalismo, o objeto e a realidade histórica tiveram que brotar do próprio método histórico. Com tal desiderato, Heinrich Rickert e seus colegas de pesquisa (inclusive Max Weber) utilizaram a noção de cultura.

Ou seja, a noção de cultura veio a ser identificada a alguns fatos e alguns valores arbitrariamente escolhidos, na convicção de que cultura se opõe a natureza.

Para esses culturalistas, a distinção entre natureza e espírito deve ser aplicada positivamente à caracterização das ciências históricas. Por sua vez, estas tratam de objetos que são portadores do espírito objetivo, quer dizer, objetos que possuem um significado e um sentido não perceptível, mas compreensível para todos.

Isto se esclareceria de imediato – supõe-se no culturalismo – se pensarmos que a história é antes de tudo ciência da cultura humana.

Quer dizer, a vida cultural se apresentaria sempre como um acontecimento significativo e pleno de sentido, enquanto a natureza, por contra, se desenvolveria livre de significado e de sentido, chegando-se inclusive a censurar Dilthey exatamente por não ter desenvolvido a oposição entre natureza e espírito em uma lógica da história.

No esquema do culturalismo abstrato, Gurvitch destaca que (1) – é por meio dessa referência aos valores como método (alguns valores arbitrariamente escolhidos) que se constrói a cultura (o objeto e a realidade histórica tiveram que brotar do próprio método histórico); (2) – para o estudo da cultura assim construída em manifestações ou fatos individualizados, só se poderia aplicar unicamente o método individualizante (repelindo a tentativa de generalizar as situações particulares em tipos sociológicos concretos); (3) – desta maneira, se obteria por resultado, conjuntamente, a realidade histórica e a ciência da história.

Tal é o esquema do culturalismo abstrato em sua tentativa de reduzir toda a história a uma história da cultura, procedendo por um método sobre outro método.

***

 

A crença no caráter extra-social do fator predominante como capaz de explicar a generalidade do social funciona para equilibrar a tensão no pensamento de Max Weber sem que, todavia, isso o proteja contra os reveses em sua sociologia, como a dispersão.

 

Os coeficientes ideológicos

 

Neste ponto podemos pôr em relevo que essas análises e apreciações críticas em torno ao culturalismo abstrato podem aportar algum esclarecimento não só à história das ciências sociais no século XX, mas notadamente ao estudo sociológico dos quadros de referência da própria sociologia – a sociologia do conhecimento sociológico – que Gurvitch considera indispensável para liberar a sociologia de certos coeficientes ideológicos.

No caso em pauta, trata-se do estudo dos quadros sociológicos da sociologia da compreensão interpretativa desenvolvida por Max Weber. Essa linha de pesquisa já se encontra assinalada nos estudiosos da obra e pensamento de Max Weber que buscam selecionar as influências aceites por este pensador oriundas do seu ambiente social e intelectual mais próximo, assim como buscam descobrir a maneira pela qual tais influências se traduzem em conceitos e modelos de análise.

A sugestão de que o problema da sociologia de Max Weber se equaciona em termos sociológicos em torno ao culturalismo espiritualista, tomado como o conjunto das orientações intelectuais e metodológicas que servem de referência para a sociologia da compreensão interpretativa, parece atender em maneira bastante satisfatória a tal linha de pesquisa dos estudiosos.

Isto porque tal sugestão aporta um esclarecimento sobre as fontes na sociologia do século XIX para a procedência do formalismo, do culturalismo e do psicologismo que, frequentemente, os estudiosos observam combinando-se em maneiras variadas na sociologia de Max Weber.

►Como vimos, a análise de Gurvitch nos mostra que essas orientações para o formalismo, o culturalismo e o psicologismo nada mais significam do que ampliações da crença no caráter extra-social do fator predominante como capaz de explicar a generalidade do social.

A dificuldade maior de Max Weber surge da tensão entre, por um lado, a convicção de que o método das ciências sociais é necessariamente individualizante e por outro lado a própria possibilidade da sociologia, a qual implica em generalização. Tal o quadro do seu pensamento, que Gurvitch põe em relevo como se efetivando na base da construção dos tipos sociológicos ideais.

Por outras palavras: a crença no caráter extra-social do fator predominante como capaz de explicar a generalidade do social funciona então para equilibrar essa tensão no pensamento de Max Weber sem que, todavia, isso o proteja contra os reveses em sua sociologia, como a dispersão.

 

Desencantamento do mundo

 

Como se sabe, o contexto mais amplo em que se produziu a sociologia da compreensão interpretativa é marcado não só pela atmosfera humanista dos salões intelectuais, mas pela influência dos neokantianos, que predominaram nas universidades alemães à época do liberalismo, entre 1870 e 1914, acentuando a erudição no ensino e a importância dos conceitos reguladores e das regras como princípios na teoria do conhecimento.

Além disso, nota-se também o choque de duas estruturas de trabalho intelectual contemplando no dizer de C. Wright Mills a interpretação conservadora de ideias pelos acadêmicos, por um lado e, por outro lado, a produção intelectual de socialistas não-acadêmicos (Kautsky, Bernstein, Mehering), dualidade esta que criava uma tensão intelectual singular e desafiadora.

Em comentário que corrobora a crítica por Gurvitch, Wright Mills observa a confusão em Max Weber da filosofia da história e da sociologia. A racionalização não só é um princípio, mas é o elemento mais geral na filosofia da história de Max Weber, sendo medida pelo desencantamento do mundo, em relação a que Wright Mills situa a contribuição de Max Weber à sociologia o conhecimento, ao mesmo tempo em que registra tratar-se da concepção errática de um progresso unilinear na direção da perfeição moral.

Mas não é tudo. Em relação ao psicologismo, Wright Mills nota que a noção de cultura europeia em Max Weber afirma igualmente o progresso ideal, porém admitindo ambiguidades, e que as racionalizações progressivas são objetos de análises psicológicas quando ali se trata de explicar os sistemas religiosos.

Sublinha igualmente Wright Mills o nominalismo cuidadoso do método de Max Weber e a influência da imagem (romântica) do indivíduo monumentalizado (Carlyle) para a concepção weberiana do líder carismático.

Um centro irracional: a personalidade

 

Nesse individualismo nominalista, se a unidade final das análises weberianas é posta pelas motivações compreensíveis do indivíduo isolado, não será de espantar que essa análise estanque ou fique suspensa diante do conceito de personalidade.

Com efeito, a personalidade ali não passa de um centro de criatividade profundamente irracional, um processus não analisado cuja concretização em uma noção derivada do romantismo como a monumentalização do indivíduo Max Weber se empenha em rejeitar (em que pese a influência efetiva de Carlyle).

  • Esse individualismo e nominalismo podem ser notados diretamente na seguinte passagem selecionada por Wright Mills de “Ensaios sobre a Teoria da Ciência” de Max Weber (Ver a edição francesa: Paris, Plon): “A sociologia interpretativa considera o indivíduo (Einzelindividuum) e seu ato como a unidade básica, como seu átomo (…). O indivíduo é também o limite superior e o único portador de conduta significativa (…). Conceitos tais como: Estado, associação, feudalismo e outros semelhantes designam certas categorias da interação humana. Daí ser tarefa da sociologia reduzir esses conceitos à ação compreensível, isto é, sem exceção, aos atos dos indivíduos participantes[vi].

Para W. Mills, o problema da compreensão foi formulado por Wilhelm Dilthey e Max Weber o incorporou em suas análises por ele mesmo denominadas como sociologia interpretativa ou compreensiva.

O problema dos tipos sociológicos atenderia, pois, a uma abordagem nominalista e estabeleceria uma escala de racionalidade e irracionalidade, em que a psicologia da motivação cede lugar a um recurso tipológico.

 

Dualidade Metodológica

 

  • Wright Mills sustenta a ocorrência de uma dualidade envolvendo as reflexões metodológicas e as análises de Max Weber. Por um lado, houvera o propósito metodológico de limitar a compreensão e interpretação do significado às intenções subjetivas do agente social, mas em sua obra real, por outro lado, Max Weber teria admitido que os resultados das interações em modo algum se mostrariam sempre idênticos ao que o agente pretendia fazer.

Apesar de todas essas observações direcionadas para uma sociologia do conhecimento sociológico, Wright Mills não percebe, porém, a importância da utilização de fatores isolados na sociologia interpretativa weberiana.

Ou seja, a utilização de fatores isolados na sociologia de Max Weber é constatada sim por Wright Mills. Todavia, por falta de uma crítica da sociologia do século XIX, esse autor ali não percebe o influxo da crença no caráter extra-social do fator predominante como capaz de explicar a generalidade do social, nem o alcance desta crença, específica aos sociólogos do século XIX, para a análise sociológica dos quadros intelectuais da sociologia de Max Weber.

 

Filosofia Existencial

 

►Em maneira semelhante a Wright Mills, outros autores estudiosos também se restringem a assinalar uma correlação entre um contexto de choque de duas estruturas de trabalho intelectual por um lado, e por outro lado a dualidade entre metodologia e análise na obra de Max Weber. Lamentavelmente, não desenvolvem orientação proveitosa em sociologia do conhecimento sociológico aplicável a este pensador.

Assim Raymond Aron tece suas observações críticas no âmbito desse duplo dualismo de influências intelectuais e de metodologia/análise e, embora admita a influência de Heinrich Rickert, também se apraz em contemplar o irracional em Max Weber.

Mais precisamente: tendo descoberto uma orientação de caráter existencial ou até existencialista na filosofia implícita de Max Weber, Raymond Aron limitou sua contribuição a uma forte argumentação contra a redução do pensamento weberiano ao nihilismo – tese sustentada pelo filósofo da cultura política Leo Strauss.

Nesse marco de crítica filosófica, e em certo modo inesperado para um sociólogo, nos sugere Raymond Aron que o problema da compreensão tal como desenvolvido em Max Weber deve ser referido preferencialmente não a Dilthey, mas ao pensamento metapsicológico do psiquiatra e filósofo kierkegaardiano Karl Jaspers.

Quer dizer, deve-se dar preferência ao psicologismo ou à limitação de Max Weber ao psicologismo, fazendo prevalecer o âmbito não romântico do problema daquele centro de criatividade profundamente irracional, que como vimos Wright Mills acentuou a respeito da orientação de Max Weber para o conceito de personalidade.

Desse modo, em um dos seus primeiros ensaios marcantes intitulado “Introduction à la Philosophie de l’Histoire” (Paris, Gallimard) Raymond Aron sublinha a separação radical do fato e dos valores em Max Weber, desdobrando alguns comentários críticos a respeito do paradoxo em se ignorar nos seres do passado a vontade de valor ou de verdade, paradoxo este limitando em consequência o alcance da orientação de Max Weber para a compreensão da conduta individual unicamente na referência das ideias de valor [vii] .

Sustenta esse estudioso que se essa concepção excluindo a vontade de valor ou de verdade fosse admitida, não se teria o critério para diferenciar entre uma obra de filosofia como a “Crítica da Razão Pura”, de E. Kant, e o que Raymond Aron chama as imaginações delirantes de um paranoico, já que ambas seriam colocadas no mesmo plano [viii].

Seja como for, esse estudioso não chega a observar em tal exorbitância do método nominalista o desvio ideológico (biais) pelo qual se infiltra no pensamento de Max Weber a crença específica que acometia os sociólogos do século XIX e que deve ser posta de lado como prejudicial, pela qual se reduz como vimos a realidade social aos fatores predominantes, a saber: a crença no caráter extra-social do fator predominante como capaz de explicar a generalidade do social.

Assim, em seu monumental ensaio posterior sobre “Les Étapes de La Pensée Sociologique[ix] , Raymond Aron se limitará a confirmar que a orientação de Max Weber deve ser referida a uma filosofia existencial, nada acrescentando de interesse para a análise dos quadros sociológicos da sociologia da compreensão interpretativa desenvolvida por Max Weber. Desta sorte, embora acentue a vinculação da sociologia interpretativa aos limites do século XIX, o que prevalece é a mencionada conclusão de Gurvitch, de que a crença no caráter extra-social do fator predominante como capaz de explicar a generalidade do social funciona para equilibrar a tensão no pensamento de Max Weber, sem que, todavia, isso o proteja contra os reveses em sua sociologia, tais que a dispersão.

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Este artigo “Culturalismo e Sociologia: Notas críticas para um estudo dos quadros sociológicos da Sociologia da compreensão interpretativa desenvolvida por Max Weber” é um  trecho do eBook CULTURA E CONSCIÊNCIA COLETIVA: Leituras Saint-simonianas de Teoria Sociológica – Nova Formatação, elaborado e modificado em 2007 – 2009,  publicado na Web da OEI

Editado pelo Websitio Produção Leituras do Século XX – PLSV: Literatura Digital http://www.leiturasjlumierautor.pro.br

© 2007 Jacob (J.) Lumier

Veja também Cultura e Objetividade: Primeira Parte: Max Weber
 
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 Baixe aqui a versão pdf deste artigo Culturalismo e Sociologia
 
 
Notas de Fim

 

[i] Ver Gurvitch, Georges: “Objeto e Método da Sociologia”, in Gurvitch et al.: “Tratado de Sociologia-vol.1“, trad. Ana Guerra, revisão: Alberto Ferreira, Porto, Iniciativas Editoriais, 1964, pp.15 a 50, 2ªedição corrigida (1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1957). Ver também do mesmo autor e nessa mesma obra coletiva: “Breve Esboço da História da Sociologia”, trad. Rui Cabeçadas, pp.51 a 98. Ver também do mesmo autor: “A Vocação Actual da Sociologia – vol. I: na senda da sociologia diferencial”, tradução da 4ª edição francesa de 1968 por Orlando Daniel, Lisboa, Cosmos, 1979, 587pp. (1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1950).

[ii] Comte viu no conhecimento teológico, no conhecimento metafísico, no conhecimento positivo os fatores decisivos do desenvolvimento da sociedade.

[iii] No culturalismo abstrato as formas sociais são aparentadas em sua primazia às enteléquias aristotélicas, como causas ao mesmo tempo finais e eficientes. Cabe notar que Gurvitch estuda na referência da “escola espiritualista” os sociólogos alemães R. Stammler, por um lado, e por outro lado Simmel, Vierkandt, e Von Wiese.

[iv] As teorias de consciência aberta foram desenvolvidas por Bergson, por Husserl, por Bachelard e promovidas nos meios sociológicos por Gurvitch como levando à constatação da imanência recíproca do individual e do coletivo. Ver Gurvitch, Georges (1894-1965): “Dialectique et Sociologie”, Flammarion, Paris 1962, 312 pp., Col. Science.

[v] Não confundir com a “separação radical do fato e dos valores”, que alguns autores assinalam na base da redução das condutas individuais às ideias de valor, tal como preconiza Max Weber, decorrendo dessa redução a mencionada falta de distinção entre os juízos de realidade e os juízos de valor.

[vi] Wrigth Mills, C. E Gerth, Hans – Organizadores: « Max Weber : Ensaios de Sociologia », tradução Waltensir Dutra, revisão Fernando Henrique Cardoso, 2ªedição, Rio de Janeiro, Zahar, 1971, 530 pp.(1ªedição em Inglês : Oxford University Press, 1946).

[vii] Na medida em que as ideias de valor referem igualmente a sociologia da religião de Max Weber, caberia notar o contraste com as análises dialéticas da ambiência histórica tradicional e religiosa desenvolvidas por Ernst Bloch que, enlaçando a vontade de valor e de verdade ao elemento essencial originário em si mesmo, reintegra nos seres do passado a impaciente, rebelde e severa vontade de paraíso Cf. Bloch, Ernst: Thomas Münzer, Teólogo de la Revolución (“Thomas Münzer als Theologe der Revolution”, München 1921) Editorial Ciencia Nueva, Madrid, 1968, págs.67, 68. Ver Lumier,Jacob(J.): “O Tradicional na Modernização: Leituras sobre Ernst Bloch“, Internet, E-book pdf 130 págs., Web da OEI, http://www.oei.es/cienciayuniversidad/spip.php?article277

[viii] Desta sorte, a prostituição é um fenômeno cultural tanto quanto a religião ou o dinheiro – nos dirá Weber em seu relativismo culturalista.  Portanto, nessa argumentação se acentua que  a condicionalidade pelas ideias de valor  é proposta na referência do uso pelos lógicos modernos: os fenômenos culturais são tais unicamente para a razão e unicamente porquanto sua existência e a forma que assumem historicamente tocam diretamente ou indiretamente aos nossos interesses culturais e científicos.

[ix] ARON, Raymond: “Les Étapes de la Pensée Sociologique : Montesquieu, Comte, Marx, Tocqueville, Durkheim, Pareto, Weber”, Paris, Gallimard, 1967, 659pp.

Sobre Juízos de Realidade e Juízos de Valor: notas de sociologia

In dialectics, history, portuguese blogs, sociologia, twentieth century on May 21, 2012 at 7:31 pm

DDHH, Direitos Sociais e Pluralismo

por

Jacob J. Lumier

 

Esta postagem é um prolongamento da Page de Sociólogos sem Fronteiras em Rio de Janeiro SSF/RIO

 

Epígrafe:

A falta de distinção entre os juízos de realidade e os juízos de valor torna impossível o acesso da análise sociológica a um dado fundamental da vida social que é a variabilidade”.

 **

►Max Weber desconheceu as teorias de consciência aberta.

Max Weber recomendou aos sociólogos com razão que, procedendo por compreensão interpretativa, procurassem os sentidos dos comportamentos sociais a fim de melhor os explicar em seguida.

Todavia, a qualificação desses sentidos ou significações como “internas” é o erro que Gurvitch assinala aos adeptos da concepção de que a consciência é voltada para si própria e não aberta às influências diversas da ambiência social (Gestalt).

Aliás, foi dessa maneira (qualificando os sentidos dos comportamentos sociais como “internos”) que Max Weber desconheceu as teorias de consciência aberta [i] e veio a tomar as significações práticas dos comportamentos sociais como isoladas da realidade social e sistematizadas pela teologia, ciência do Direito, notadamente pela filosofia da história.

►A sociologia tem competência para descobrir as perspectivas da sociedade

Do ponto de vista do realismo sociológico, a sociologia exige o abandono das ilusões do progresso em direção a um ideal, bem como o abandono das ilusões de uma evolução social unilinear e contínua.

A confusão com a filosofia da história é absolutamente inadmissível haja vista a capacidade da sociologia para alcançar perfeitamente por si só a situação presente da sociedade sem precisar de outra disciplina para isso.

Mais ainda: a sociologia exige o abandono das ilusões do progresso em direção a um ideal, bem como o abandono das ilusões de uma evolução social unilinear e contínua, sendo da competência da sociologia descobrir na realidade social as diversas perspectivas possíveis e até antinômicas que são postas para uma sociedade em vias de se fazer.

 ►O sociólogo reconhece a realidade do indivíduo e da sociedade.

As ilusões trazidas pela confusão com a filosofia da história se encontram favorecidas pela ocorrência de um erro lógico fundamental que é a falta de distinção entre os juízos de realidade e os juízos de valor. Desse erro decorre a confusão, pois em vez de explicar os desejos a partir da realidade social, constrói-se a realidade social em função desses desejos.

Posto que é mediante os juízos de realidade que se descobrem as perspectivas possíveis que são postas a uma sociedade, os juízos de valor são por sua vez as aspirações, os desejos e as imagens ideais do futuro, formam um dos patamares da realidade social, de tal sorte que o progresso em direção a um ideal só pode intervir na análise sociológica unicamente em vista de integrar esse progresso ideal em um conjunto de fatos sociais que a análise se propõe explicar. O sociólogo reconhece a realidade do indivíduo e da sociedade.

►Os juízos de valor se afirmam por meio da afetividade coletiva.

Quanto aos juízos de valor são os mesmos afirmados em relação ao desejável. Qualquer valor pressupõe a apreciação de um sujeito em relação com uma sensibilidade indefinida: é o desejável, qualquer desejo sendo um estado interior. A característica do desejável se estende a qualquer valor para além dos valores ideais (inclusive os valores estudados em economia, que têm assim alguma participação nos ideais).

Os valores ideais funcionam na vida social, isto é, guardam a característica de instrumentos de comunhão e princípios de incessante regeneração da vida subjetiva, e se afirmam indispensavelmente por meio da afetividade coletiva, a que se refere o termo desejável, e abarcam como disse as aspirações, os desejos e as imagens ideais do futuro.

►Afirmar um juízo de realidade implica reconhecer uma pessoa diferente de si.

Em sua especificidade, os juízos de realidade se referem ao fato de que a realidade é sempre de alguém, se afirma em um quadro social como minha, sua, nossa realidade; como a realide de outrem (dele), de um grupo, de uma classe, de uma sociedade.

Embora se efetue mediante os símbolos sociais, toda a comunicação social acontece em estado de realidade, e os indivíduos estão a todo o momento formulando juízos de realidade para poderem comunicar. Reconhecer a realidade de uma pessoa diferente de si, descrever seus procedimentos, sua maneira de ser e agir implica afirmar um juízo de realidade.

Por sua vez, a sociedade está sujeita a flutuações e até aos movimentos cíclicos e o progresso retilíneo em direção a um ideal particular, tomado como um movimento constante, como na filosofia da história, não pode valer mais do que para períodos determinados – em outros períodos a sociedade pode orientar-se em sentido oposto ao ideal ou por um ideal completamente diferente.

A falta de distinção entre os juízos de realidade e os juízos de valor leva a concepções restritivas da sociedade.

►A psicologia social em base psicanalítica só considera a mentalidade individual exclusiva.

Nota-se, por exemplo, que, ao procurar sempre explicar a vida social pelos recalcamentos e complexos, a psicologia social em base psicanalítica desconhece (a) a autenticidade humana dos juízos de realidade (b)bem como a experiência humana efetiva da mentalidade intergrupal, interindividual e coletiva; (c) só considera a mentalidade individual exclusiva, isto é, referida unicamente aos desejos.

Despreza o fato de que a realidade é sempre de alguém, e representa a sociedade através do elemento de coerção, como foco da repressão aos desejos individuais. Desta sorte, os indivíduos viveriam em eterno conflito com os comportamentos sociais tidos como restringidos aos modelos culturais e seus símbolos estandardizados [ii].

►Uma visão singular da sociedade é manifestação de caráter coletivo.

Mas não é tudo.  A falta de distinção entre os juízos de realidade e os juízos de valor torna impossível o acesso da análise sociológica a um dado fundamental da vida social que é a variabilidade.

Gurvitch nos lembra que a identificação da sociologia e da filosofia da história afirma a pressuposição monista que é absolutamente irreal. Vale dizer, não existe uma Sociedade com “S” maiúsculo, mas só há sociedades múltiplas, em tal sorte que o sociólogo é levado a pôr em relevo em cada sociedade a ocorrência de tendências variadas, e em cada crise o anúncio de diversas soluções possíveis.

O termo realidade social e o termo sociedade cobrem fenômenos muito diferentes segundo se trate de diferentes épocas históricas, de diferentes civilizações, de diferentes tipos sociais.

Uma visão singular da sociedade e um modo próprio de interpretar sua natureza são manifestações de caráter coletivo que se encontra em cada tipo de sociedade global.

Ora, o culturalismo abstrato de Max Weber articula uma concepção sem nenhum contato com essas manifestações do real concreto. Daí sua insuficiência.

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[i] As teorias de consciência aberta foram desenvolvidas por Bergson, por Husserl, por Bachelard e promovidas nos meios sociológicos por Gurvitch como levando à constatação da imanência recíproca do individual e do coletivo. Vejam Gurvitch, Georges (1894-1965): “Dialectique et Sociologie”, Flammarion, Paris, 1962, 312 pp., Col. Science.

[ii] Em meu livro “A Utopia Negativa: Leituras de Sociologia da Literatura”, Bubok, Madrid, 2011, 2ª edição, 148 págs, o problema da estandardização como efeito da indústria cultural no século XX é devidamente debatido em detalhes. http://www.bubok.es/libros/210606/A-Utopia-Negativa2-edicao-modificada