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A Experiência da Laicização na Origem da Técnica e da Moralidade Autônoma.

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A EXPERIÊNCIA DA LAICIZAÇÃO NA ORIGEM DA TÉCNICA E DA MORALIDADE AUTÔNOMA

Por

Jacob (J.) Lumier

Websitio Produção Leituras do Século XX – PLSV:

Literatura Digital

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Rio de Janeiro, Setembro de 2008

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A laicização é uma realidade humana que se descobre a partir do problema do conhecimento nas sociedades modernas, lá onde se constata não somente o desencantamento do mundo, mas a desmitologização ou mais amplamente a desdogmatização do saber. Tem importância para a sociologia porque permite esclarecer sobre a impossibilidade em opor o histórico e o arcaico, acentuando a compreensão de que mesmo nas sociedades históricas o saber é inseparável das mitologias, de tal sorte que os mitos e os símbolos sociais são intermediários positivos do conhecimento.

Tema crítico, a laicização adquiriu procedência nos meios científicos a partir das análises de sociologia econômica desenvolvidas por Karl Marx em torno à crítica da Economia Política, com a descoberta da realidade social por trás do fenômeno do fetichismo da mercadoria no capitalismo, que muitos sociólogos da literatura e críticos da cultura estudam sob a rubrica da reificação.

Se a primeira vista a referência à laicização como conceito sociológico pode parecer pouco usual é porque há relutância por parte de pensadores influentes em reconhecer a sociologia de Marx. A laicização acontece quando deixamos de temer ou recear as forças que nós mesmos criamos. Vale dizer, é preciso assumir e afirmar o ponto de vista microssociológico dos Nós humanos para pôr em relevo a laicização como experiência humana irredutível no desenvolvimento da produção material e das atividades práticas, uma afirmação do Homo Faber.

Marx foi sociólogo no sentido estrito de reconhecer a laicização e a relatividade do arcaico e do histórico porque, ao chegar à descoberta da realidade social por trás do fetichismo da mercadoria, desencadeou o “desencantamento” da Economia Política, evidenciando nas representações desta última o estágio arcaico da consciência alienada e do pensamento a ela subjacente.

Na dialética das alienações desenvolvidas em “A Ideologia Alemã” (1845, publicado postumamente), na qual em resumo (a) – o trabalho é alienado em mercadorias; (b) – o indivíduo é alienado à sua classe; (c) – as relações sociais são alienadas ao dinheiro, nota-se que essas alienações são afirmadas como expressões da revolta de Marx contra Hegel e contra a equivocada análise hegeliana da realidade social projetando a alienação da sociedade e do homem em proveito do Estado.

Todavia, o ponto de vista microssociológico dos Nós humanos não se limita em confirmar a alienação contra a análise hegeliana. O desocultamento da consciência alienada é igualmente afirmado quando Marx relaciona diretamente a própria constituição da Economia Política à dominação pelas alienações, repelindo o desconhecimento do trabalho vivo.

De fato, elaborando-a em modo separado da sociologia econômica, “os economistas burgueses estão de tal modo impregnados pelas representações características de um período particular da sociedade que a necessidade de certa objetivação das forças sociais do trabalho lhes parece inteiramente inseparável da necessidade da desfiguração desse mesmo trabalho pela projeção e pela perda de si, opostas ao trabalho vivo[1] . E Marx prossegue: “eles (os economistas) acentuam, não as manifestações objetivas do trabalho, da produção, mas a sua deformação ilusória, que esquece a existência dos operários, para reter apenas a personificação do capital, ignorando a enorme força objetiva do trabalho que se exerce na sociedade, e que está na própria origem da oposição dos seus diferentes elementos” (ib.).

Desta forma, na medida em que se integra no desocultamento da consciência alienada levando à recuperação da prevalência da sociedade sobre a economia, o realismo sociológico de Marx é voltado para resgatar os Nós humanos desfigurados pela alienação, como projeção para fora de si ou perda de si, em que os economistas burgueses do século XIX situavam as objetivação das forças sociais do trabalho [2].

Há, pois, na abordagem de Marx o reconhecimento de uma experiência humana fundamental que lhe permite alcançar não só um distanciamento em relação ao universo mental da Economia Política, mas classificar a consciência alienada como fenômeno de psicologia coletiva na sociologia e por esta via descobrir a realidade social oculta (o trabalho humano, vivo).

No universo mental da Economia Política clássica, penetrado pelas características de um período particular da sociedade que levam à necessidade da desfiguração do trabalho, predominam as representações resultantes da pressão que exercem gradualmente as forças sociais que não conseguimos dirigir, pressão que, por sua vez, se exerce como força estranha que já não surge como o poder unido dos homens, mas, antes, surge como um elemento situado fora deles próprios, de que eles (os homens) não conhecem nem a origem, nem o objetivo”.

A experiência humana que Marx reconhece e que o eleva por encima dessa mentalidade impregnada pelas representações de uma força estranha situada fora dos homens não se esgota na crítica histórica, mas é a experiência da laicização, o reconhecimento de que os Nós humanos deixam de temer as forças que criam. Ao deixar de temer esta força estranha mistificada, ao aplicar em sua crítica a experiência da laicização e assim “desmistificar o fetichismo da mercadoria”, Marx desencadeou o desencantamento da Economia Política, evidenciando nas representações desta última o estágio arcaico da consciência alienada e do pensamento subjacente.

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Portanto, o fetichismo da mercadoria condicionando a consciência social não é sem paralelo na condição humana. Ao tempo em que Marx constata o estágio arcaico da consciência alienada, outros sociólogos da corrente durkheimiana como Lucien Levy-Bruhl e Marcel Mauss aprofundavam os estudos sobre o mito arcaico do maná-mágico. Descreviam a vida nas sociedades arcaicas – como vida humana, social, econômica e política – como sendo inteiramente penetrada pelo sobrenatural, seja ele transcendente (Religião) ou imanente (Magia-Maná como obra de civilização[3]), cujo conflito e cooperação constituem seu princípio motor, sua tensão motora.

Na leitura sociológica, para descrever o estágio arcaico da consciência alienada deve-se relacionar a teoria do fetichismo da mercadoria à análise do maná-mágico.

Aliás, como se sabe, a insuficiência das análises antropo-sociológicas de Engels na “Origem da Propriedade…[4] está em haver considerado a economia dos “primitivos” em detrimento dessa realidade de conjunto das forças coletivas nas sociedades arcaicas, inteiramente penetradas pela categoria do sobrenatural [5].

A psicossociologia do natural e do sobrenatural nos arcaicos é explicada pela própria categoria afetiva do sobrenatural, na qual deve-se distinguir suas duas tonalidades: a angústia, por um lado, e, por outro lado, o receio de insucesso correlativo ao desejo de sucesso –sendo admitido como humana (não imposta pelo Sobrenatural) a expectativa de vencer o receio por si próprio, de tal sorte que não há receio em ser mal sucedido numa tarefa, numa caçada, por exemplo, sem o respectivo desejo de ultrapassar tal receio pelo êxito ou sucesso na dita tarefa. Nota-se ademais que a diferenciação dessas duas tonalidades da categoria afetiva do sobrenatural, a angústia e o receio, é uma diferenciação que não precisa ser consciente, enquanto a diferenciação do natural e do sobrenatural precisa ser consciente.

Além disso, o âmbito do saber arcaico é correspondente ao subconsciente. A análise das lutas e dos compromissos entre Magia-Maná e Religião tem uma dimensão de psicossociologia complexa,cuja influência sobre as coletividades é tanto mais significativa quanto há irredutibilidade da Magia-Maná e da Religião, gerada, segundo Gurvitch, não só pela oposição de duas atitudes coletivas diferentes, mas também pela oposição de duas categorias fundamentais do pensamento dos arcaicos: o Maná (mágico) e o Sagrado.

Daí o aspecto essencial do pluralismo e da própria complexidade das sociedades arcaicas. Tanto mais que a oposição do Maná e do Sagrado está na origem do conflito dos princípios da imanência e da autonomia, por um lado, e, por outro lado, os princípios da transcendência e do monismo na vida social. Podemos ver, então, que o elemento humano, como o fator da diferença que torna relativa a oposição do arcaico e do histórico está contemplado nesses princípios, incluindo a tensão entre moralidade tradicional e moralidade de aspiração.

Segundo Gurvitch, o advento do caráter humano da liberdade, a ascensão desta para níveis menos inconscientes, imprescindível para as sociedades históricas, é verificada no e por esse conflito entre os princípios da imanência e da transcendência, em suas diversas configurações nas sociedades arcaicas [6].

Embora tenha sido somente em 1891, com Codrington, em sua célebre obra “Melanesians”, que o Maná veio a ser objeto de descrição etnográfica completa e eficaz [7]a evidenciação do conflito entre imanência e transcendência tornou-se patente como fato social, como o fato da oposição do Maná (mágico) e do Sagrado, somente nas sociedades arcaicas, revelando-se como constitutivo da natureza própria do Homo Faber.

Em sociologia, mediante a colocação do conhecimento em perspectiva sociológica, é imprescindível deixar de lado as categorias da mentalidade ou do psiquismo de senso comum que conhecemos em nossas sociedades históricas, tais como a similitude, a contigüidade, a identidade, a causalidade, pois, sem deixá-las de lado não se alcança a sociologia do saber dos arcaicos [8].

Quer dizer, a perspectivação sociológica do conhecimento entra como a expressão racional em lugar da categoria afetiva do sobrenatural; é nela e por meio dela que a manifestação mística pode ser tratada em racionalidade, já que desse modo se viabilizam os quadros de referências lógicas e estimativas, isto é, por sua identificação aos quadros sociais do saber arcaico.

Com efeito, na sociologia das sociedades arcaicas o Maná está ligado aos desejos, à afetividade, às aspirações aos valores, e essas aspirações, seus objetos, agem como potentes imãs que desencadeiam os estados emocionais catalépticos. A idéia de Maná nada incluía de intelectual nem de experimental a não ser a sensação da própria existência da sociedade, das suas necessidades e dos seus desejos.

E Gurvitch prossegue citando Mauss e Hubert para pôr em relevo exatamente o caráter coletivo desse mundo de objetos atraentes: “trata-se sempre, no fundo, em Magia-Maná nas sociedades arcaicas, dos valores respectivos reconhecidos pela sociedade. Esses valores não estão, em realidade, ligados às qualidades intrínsecas das coisas e das pessoas, mas sim ao lugar e à classe que lhe são atribuídas pela opinião pública soberana”.

Esses valores são sociais como o Maná que lhes serve de base (ib.p.94). E Gurvitch nos dá um resumo da compreensão de Mauss: “o Maná e a Magia são o efeito dos receios e dos desejos coletivos, da exaltação mútua dos indivíduos associados”. É a própria subjetividade coletiva: “por outras palavras, não só o Maná supõe para ser apreendido os atos afetivos coletivos, como também é um simples produto, uma projeção desses atos, um aspecto da força coletiva produzida pela sociedade” [9].

Seja como for, a viabilidade da perspectivação sociológica do conhecimento como expressão do elemento humano é que, sendo imanente, a força sobrenatural é sui generis, de tal sorte que, segundo Gurvitch, é ela que suscita o homem; é ela que confraterniza com o homem e o mundo humano em pé de igualdade.

Desta sorte, a intervenção do humano é um elemento integrante ou participante da própria força sobrenatural, como a oposição dela a ela mesma.

O termo Maná realiza essa confusão do agente, do rito e da coisa. O que Gurvitch nos sugere é que a oposição dos determinismos sociais e da liberdade humana, como experiência e conhecimento, tem aqui sua origem.

Nos dirá nosso autor que a moralidade ligada à Magia-Maná como obra e conteúdo é uma moralidade de aspiração e de imagens simbólicas ideais: trata-se da primeira forma da moral laica e “terrestre”, não religiosa, que faz apelo ao esforço autônomo do homem[10].

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Deve-se notar, porém, neste terreno da moralidade e antes de mais nada, que, atento à relatividade do arcaico e do histórico, Gurvitch contesta com firmeza as teses antropológicas (como a do próprio Bergson) que aproximam ou buscam alguma relação entre as obras da Magia-Maná nas sociedades arcaicas e as da ciência, afirmando “ser impossível constatar” nem mesmo uma contradição ou qualquer ligação entre elas. São duas atitudes diferentes que se afirmam em dois planos que nem sempre se encontram.

Com efeito, na análise sociológica e antropológica dessas atitudes, constata-se que a Magia-Maná como obra de civilização nas sociedades arcaicas está ligada à “tendência para comandar o mundo e os homens” ao passo que a ciência está sobretudo “ligada a um espanto desinteressado”, à estupefatação perante este mundo.

Daí, e o que se segue é a consagrada tese gurvitcheana, se entende que a Magia-Maná pode tornar-se a raiz das técnicas, pois estas têm o mesmo fundamento psicossocial que a primeira.

Já quanto à ciência, Gurvitch mostra independência em relação ao pragmatismo da sua própria abordagem, afirmado este no trato dos valores humanos como sendo dotados de objetividade por constituírem projetos de ação, aspectos da projeção dos atos coletivos nos estados mentais.

Assume, então, um posicionamento contrário à tese pragmatista no que concerne a afirmação de uma ligação originária entre ciência e técnica. Sustentará que as ciências nem sempre têm relação com o “Homo Faber”, notando-se o caso da Grécia clássica, com as ciências em desenvolvimento e a técnica retardatária; ou o caso do Egito antigo, com as técnicas desenvolvidas e as ciências embrionárias.

É por via dessa mesma abordagem de análise de atitudes que Gurvitch discute a relação entre Magia-Maná e Religião em Bergson, já que neste último a explicação do problema passa também pela relação entre Magia-Maná e Técnica, foco do interesse sociológico.

Ou seja, existe nas sociedades arcaicas uma grande parte da experiência sobre a qual o “Homo Faber” não se sente capaz de agir: não podendo agir sobre a natureza espera que a natureza aja por ele. O universo povoa-se assim de intenções.

Tal a origem do mito do Maná, ao qual se liga a Magia como obra de civilização. É, pois, a influência do instinto sobre a inteligência desencorajada pela sua própria incapacidade em realizar os desejos afetivos que explica a Magia-Maná em Bergson.

Este autor chama “sociedade fechada” a esta forma de vida baseada no instinto (a natureza agindo pelo homem) e aí distingue as representações coletivas, como reações defensivas da natureza, afirmadas contra esta outra representação pela inteligência de “uma margem desanimadora de imprevisto entre a iniciativa tomada e o efeito desejado”, sendo a tais “reações defensivas”, a função consoladora de garantia contra o receio, que Bergson chama “função fabulatória”.

Na Magia-Maná não se trata de combater a dissolução do instinto de sociabilidade ameaçado pela inteligência, como é o caso na “Religião Estáti-ca”, mas a função consoladora é afirmada no sentido de “combater o desencorajamento da própria inteligência perante a sua própria impotência”. Tal a oposição Magia (Maná)-Religião que Gurvitch considera fundamental na leitura de Bergson [11].

Neste marco, as representações mágicas são representações fabulatórias de onipotência humana, que oferecem uma consolação à inteligência, desencorajada por se sentir “impotente, ainda, para dar a conhecer ao mundo e para fundar a ciência”.

Desta forma, fica excluída em Bergson qualquer identidade de conteúdo entre “Religião Estática” e Magia-Maná, restando entre elas somente uma analogia de atitudes, a qual, todavia, considerada improvável, Gurvitch con-testará com firmeza, afirmando a distinção já mencionada entre “angústia” e “receio-temor”, isto é: a diferença entre a consolação pela esperança da graça e da salvação, e a consolação pela confiança posta nas próprias forças do sujeito-agente.

A concepção de Bergson de que na Magia-Maná se trata apenas de desejos e não de vontade, termos estes afirmados em oposição um ao outro, é contestada, desde o ponto de vista da análise de atitudes, sob o argumento de que, sendo o desejo uma tendência expressa na Magia-Maná, a vontade, por sua vez, mais não é do que a mesma tendência acompanhada da consciência: o desejo e a vontade não podem ser postos em oposição porque não passam de graus do mesmo processo de realização, existindo entre eles uma gradação de intermediários.

Gurvitch contestará igualmente a descrição mesma da função consoladora, descrição esta que em Bergson é fundada na oposição entre instintos sociais, inteligência e intuição mística.

Contestável, já que “o conceito de instinto se encontra cada vez mais excluído da psicologia social, onde causou bastantes danos”.

Por contra, em sociologia não se verifica a vida social, a sociabilidade, em termos de instintos, mas, antes, como projeções de atos coletivos – cujas configurações são as atitudes – de tal sorte que os grupos sociais reais são penetrados por esses atos coletivos, os quais são apreendidos nos estados conscientes, emotivos, voluntários e intelectuais.

Quer dizer, as intuições coletivas de diferentes espécies em que esses atos são apreendidos estão virtualmente presentes em qualquer manifestação da mentalidade coletiva.

Mas o pensamento de Gurvitch vai mais longe nesta análise.À vida social real corresponde um fenômeno psíquico do todo social em que o consciente e o supraconsciente não estão separados por nada mais do que pelos graus do subconsciente e reciprocamente, isto é: esses graus do subconsciente, por sua vez, não estão separados senão pelos graus de passagem do supraconsciente ao consciente, não havendo nenhuma “natureza exterior” aprisionando o psiquismo coletivo.

Segundo Gurvitch, desse tratamento “aberto” do material empírico das sociedades arcaicas resultam várias conclusões diferentes das de Bergson, seguintes: (a)- a função consoladora é exercida para compensar pelos fracassos perante as forças sobrenaturais experimentadas como receio-temor – daí que este receio é sempre ligado ao desejo de êxito, estando a função consoladora exercida como expectativa de vir a ter êxito por seus próprios meios [12].

É claro que a teoria de Bergson não deixa dúvida quanto à relatividade da oposição do arcaico e do histórico, tanto mais que faz pôr em relevo as expectativas sociais como se ligando ao esforço coletivo antes de se ligarem aos papéis sociais.

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RESUMO:

A psicossociologia da Magia-Maná desdobra-se da conjectura de que existe nas sociedades arcaicas uma grande parte da experiência sobre a qual o “Homo Faber” não se sente capaz de agir, de tal sorte que, não podendo agir sobre a natureza, espera que a natureza aja por ele: o universo povoa-se assim de intenções.

Em face da sugestão tratando as representações coletivas como reações defensivas da natureza (a que estaria ligada a função consoladora), afirmadas contra esta outra representação pela inteligência de “uma margem desanimadora de imprevisto entre a iniciativa tomada e o efeito desejado”, o ponto de vista sociológico imprime um tratamento “aberto” do material empírico das sociedades arcaicas.

É repelida qualquer sugestão de uma “natureza exterior” aprisionando o psiquismo coletivo (que corresponderia à noção de sociedade fechada, como forma de vida impulsionada por um instinto: a natureza agindo pelo homem).

As características que justificam a tese de laicização da Magia-Maná em técnica e em moralidade autônoma são as seguintes [13]:

(a) – As representações mágicas são representações fabulatórias de onipotência humana, que oferecem uma consolação à inteligência, desencorajada por se sentir “impotente, ainda, para dar a conhecer ao mundo e para fundar a ciência”.

(b) – À Magia-Maná corresponde o “receio-temor”, isto é: a consolação pela confiança posta nas próprias forças do sujeito-agente. (por distinção da angústia, como consolação pela esperança da graça e da salvação, que corresponde à “Religião Estática”)

(c) – A função consoladora é exercida para compensar pelos fracassos perante as forças sobrenaturais experimentadas como receio-temor – daí que este receio é sempre ligado ao desejo de êxito, estando a função consoladora exercida como expectativa de vir a ter êxito por seus próprios meios (as expectativas sociais se ligando ao esforço coletivo antes de se ligarem aos papéis sociais).

(d) – A função consoladora é afirmada no sentido de “combater o desencorajamento da própria inteligência perante a sua própria impotência”.

 

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[1]Rascunho da Contribuição à Crítica da Economia Política”, Grundrisse…p.176; apud Gurvitch Cf. “A Vocação Actual da Sociologia –vol.II, op. Cit. pp.341 sq.

[2] É “sob o regime capitalista que a objetivação, a independentização e a exteriorização do social, por se transformarem em perda e dissolução na projeção, isto é, a alienação strictu sensu, tomam uma forma particularmente envolvente e ameaçadora”.

[3] Magia-Maná como obra de civilização nas sociedades arcaicas descritas por Maus compreende os rituais de cura e os demais procedimentos voltados para favorecer as trocas sociais, a subsistência e as relações positivas com a natureza. Cf. Mauss, Marcel: ‘Sociologia e Antropologia-vol.I e vol.II’, São Paulo, EPU/ EDUSP, 1974, 240pp. e331pp. respectivamente, (1ª edição em Francês: Paris, PUF, 1950).

[4] Engels, Friedrich: “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, trad. Leandro Konder, Rio de Janeiro, editora Civilização Brasileira, 3ªedição, 215 pp. (1ªedição em Alemão, 1882).

[5] “A intervenção do elemento humano propriamente arcaico, o intenso estado emocional, está em que, para acreditarem no sobrenatural, os arcaicos não têm necessidade de qualquer representação nítida do natural”, isto porque é a intensidade da intervenção da afetividade invadindo as suas representações que os leva para o sobrenatural. A intensidade da emoção supre a falta de nitidez do objeto “(Gurvitch: “A Vocação Actual da Sociologia –vol.II: antecedentes e perspectivas”, tradução da 3ªedição francesa de 1968 por Orlando Daniel, Lisboa, Cosmos, 1986, 567 pp. (1ªedição em francês: Paris, PUF, 1957), p.79).

[6] Gurvitch assinala os conflitos entre o clã (religioso) e as associações fraternas, bem como a diferenciação, nas trocas arcaicas (a economia do dom: DO UT DES), entre direito de obrigação e direito real.

[7] Cf. Gurvitch: “A Vocação…”, vol.II, op.cit, p.73.

[8] Não existe intervalo entre o desejo e a realização – pelo que ficam excluídas as categorias da similitude e da contigüidade; a eficácia é imediata e sem limites do esforço, dado tratar-se de imagens simbolizando emoções, tendências, aspirações, que, dotadas de “atração magnética”, lembram o mundo dos valores.Tal é a analogia do ser coletivo, compreendendo duas orientações complementares: uma, para o enfoque do elemento humano e a outra para acentuar a perspectivação sociológica do conhecimento exatamente como a expressão da intervenção do elemento humano e existencial. (cf.ib.p.86sq).

[9] Cf. Gurvitch: “A Vocação…”, vol.II, op.cit, p.94.

[10] Nas sociedades arcaicas o apelo à liberdade humana não provém da Religião, tanto mais que, como se sabe, só as religiões muito evoluídas como o cristianismo e o budismo dirigem um apelo pelo menos parcial à liberdade humana para se elevar até a divindade (cf.ib.p.100).

[11] Cf. “A Vocação Atual da Sociologia –vol.II”, pp.102sq, op.cit.

[12] Quanto aos demais esquemas de Bergson, nada acrescentam à sociologia.Assim, (b)- a oposição entre “sociedade fechada” e “sociedade aberta”, “religião estática” e “religião dinâmica”, apenas corresponde a camadas ou níveis diferentes da vida social no interior de cada sociedade e de cada grupo real; de tal sorte que, (c)- esta última oposição não tem qualquer relação com o problema da distinção entre a Magia-Maná e a Religião, que se apóiam em duas forças sobrenaturais heterogêneas. Por isso, (d)- a “função fabulatória” na religião conduz à humildade, enquanto que na Magia-Maná conduz à auto-afirmação coletiva e individual.

[13] Ver as características do conhecimento técnico no meu ensaio neste Blog intitulado “As Aplicações da Sociologia do Conhecimento”.

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