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Conhecimento e Sociologia

Conhecimento e Sociologia:

Um Tópico

por

Jacob (J.) Lumier

 

Para dimensionar o alcance da sociabilidade humana no conhecimento, cabe lembrar as constatações de Durkheim (1858-1917) em favor da sociologia, seguintes: “as categorias lógicas são sociais em segundo grau… não só a sociedade as institui, mas constituem aspectos diferentes do ser social que lhes servem de conteúdo… O ritmo da vida social é que se encontra na base da categoria do tempo; é o espaço ocupado pela sociedade que forneceu a matéria da categoria do espaço; fora a força coletiva que criou o protótipo do conceito de força eficaz, o elemento essencial da categoria de causalidade… O conceito de totalidade é, afinal, a forma abstrata do conceito de sociedade” [1] .

De fato, em acordo com esta orientação, na explicação dos fatos e estruturas sociais o sociólogo descreve e aplica os diversos procedimentos dialéticos de intermediação que encontra na própria realidade social descoberta, para fazer ressaltar o acordo ou desacordo do conhecimento em correlações funcionais com os quadros sociais.

Essa atitude de descrever correlações exclui qualquer “invencionismo” e não induz a “deformação” alguma, mas pode certamente favorecer a diminuição da importância do coeficiente existencial do conhecimento pela tomada de consciência.

A liberdade humana de escolha, decisão ou de criação, antes de se limitar ao indivíduo, em particular ao sociólogo, se afirma também nas manifestações coletivas as quais estruturam elas mesmas a realidade social que, por essa razão não pode ser mais do que “descoberta” pelo sociólogo (e não inventada).

►Antes de prosseguir descrevendo essa via de compreensão do conhecimento em correlações funcionais, podemos fazer um retrospecto sobre as correntes intelectuais do século XX a fim de corroborar a assertiva de que a atividade que se desenrola em prolongamento da ferramenta tecnológica cibernética incorpora um incremento (“accroissement”) estranho aos juízos cognitivos.

Basta lembrarmo-nos da análise crítico filosófica pioneira em seu alcance sociológico desenvolvida nos anos sessenta por Henri Lefebvre [2] que, pressentindo a trilha de uma sociologia do conhecimento filosófico, esse autor ali examina a aproximação da filosofia existencial e fenomenológica de Heidegger com a teoria social.

Quer dizer, no curso de uma reflexão com base sociológica em torno ao problema da relação entre a lógica e a dialética, por um lado, tomada essa relação como se resolvendo na práxis e levando à superação da filosofia, entendida esta, por sua vez, no marco da “teoria do conhecimento” legada do século XVIII como projetando a concepção de um EU genérico, idêntico em todos, e, por outro lado, desenvolvendo o que chamou “teoria geral das estabilidades” (ib. págs. 254 sq), Henri Lefebvre aprecia a proposição heideggeriana sobre a ciência, incluindo a Cibernética, entendida como “teoria do real” e “teoria da práxis operativa” (praxeologia), assim considerada como uma proposição de constatação do desenvolvimento contemporâneo que uniu ciência e técnica. Em outras palavras, essa análise toma a ciência moderna e seus gigantescos dispositivos técnicos planetários como “realização teórica”.

Podem-se ver as duas orientações seguintes: (a) – relacionando, por um lado, a praxeologia tomada como constatação do desenvolvimento e, por outro lado, a situação de que, nas sociedades dividas em classes, as representações ou manifestações da vida mental – conceituações, simbolizações, projeções – sofrem os efeitos de uma causalidade singular designada “lei tendencial da polarização”, que as aproxima ou as afasta do conteúdo (real) (ib.p.259); (b) – buscando com essa aplicação sociológica explicar a ocorrência da constatada “realização teórica”, na qual, (b1) – pelo imperativo de coerência do processo de realização, se inscreve a supressão da cisão entre a representação e o real, supressão esta que, no plano da filosofia, atinge a própria (antiga) “Teoria do Conhecimento” (notadamente as correntes intelectuais do neokantismo), já que, (b2) – aquela cisão agora suprimida, mas afirmada nesse suprimir-se como aspecto da separação entre ser e conhecer, era posta no pensamento filosófico pelo “entendimento analítico” (neokantismo), não sendo do âmbito da razão dialética (que não projeta nenhum juízo a-priori). Desse modo, no momento lógico-filosófico subseqüente e como efeito da observada “lei tendencial da polarização” de tal modo aplicada, verifica-se então uma configuração particular em que as representações e a práxis reduzem o conteúdo, reduzem a vida humana (real) a uma vida abstrata (cf.ib.pp.259/260).

Para Lefebvre, citando o “jovem” Marx e Hegel, a tal configuração particular redutiva deve ser referida a especialização (das funções na sociedade industrial), compreendendo nela e por meio dela a abstração e a cisão da atividade, que o homem toma por realidade e por coisa em que absorver sua consciência, em “uma aparente realização de si mesmo”.

Neste ponto, com base na dicotomia sociológica do nível organizado de realidade social e do fluxo espontâneo da vida coletiva, desdobra-se o argumento do autômato, seguinte: (a)- ao se limitar na cisão da atividade, o homem se situa ele próprio no “reino animal do espírito”, ao qual igualmente se restringe – noção esta tirada de “A Fenomenologia do Espírito”, de Hegel,[3]; (b)- surge, então, a figura do “animal abstrato”, designando o homem como animal sem vida espontânea, privado dos impulsos vitais característicos; (c)- figura esta cujo surgimento na leitura da obra de Marx corresponde a um paralelo com a teoria do “objeto abstrato”, compreendendo este a mercadoria e o dinheiro, “que alienam e reificam a atividade cindida”, (d) -sendo que é possível entrever nessa teoria, por sua vez, a fórmula privilegiada da própria teoria da realização teórica, tida esta inicialmente como originalidade da proposição heideggeriana, mas que, por via do paralelo assinalado, vem a ter sua verdadeira fonte revelada em Marx.

Entretanto, ao contrário do que poderia parecer, com o autômato assim surgido e figurado na realização teórica, o conhecimento não fica sem fundamento.  É que o objeto técnico lhe assegura a objetividade. Quer dizer: o conhecimento realiza-se no âmbito da prática como a práxis técnica.

Então, o problema de restabelecer o laço entre o sujeito e o objeto desaparece, “porque se resolve na prática científica, onde, por sua vez, cresce de importância a noção metodológica de simulação”.

Daí o autômato assume o conhecer (a ciência) como realização teórica. Suprime ao seu modo a cisão entre objeto e sujeito, entre o conhecer e o ser, entre o real e a representação.

Tornado ato prático e realidade, o conhecimento não exige mais uma teoria distinta (filosófica ou neokantiana).  O autômato (o mundo do “robot” como complexo de significações) tende a captar e a incorporar a si mesmo a totalidade do conhecer e das representações, liberando assim o ser humano de sua parte objetiva, permitindo-lhe, no entanto, apoiar-se nessa consolidação.

Paródia fascinante do homem realizado, o grande autômato, a ciência moderna e seus gigantescos dispositivos técnicos planetários, o animal abstrato em sua compreensão total e sua plena extensão revela-se o simulacro quase perfeito da totalidade apreendida, vivida, reconstruída: é realidade e aparência unificadas (ib.p.263). E Lefebvre formula então a indagação crítica final em face da Cibernética como o grande autômato: “não é ao mesmo tempo, em plena simultaneidade sincronizada, a realização e a alienação?” Admitindo em seguida que essa indagação é o que permite a alguns dizer que o autômato as concilia, logo as suprime uma e outra como oposição e problema; e aos outros afirmar que o autômato leva o conflito ao paroxismo e anuncia a grande superação.

Figurada nesse tema do impacto da ciência e da tecnologia na sociedade, a “nova” sociologia do conhecimento no século XX introduzida por C. Wright Mills e desenvolvida notadamente ao longo da monumental e elucidativa obra de Georges Gurvitch  nos oferece a compreensão dos sistemas cognitivos existentes e empreende a análise das classes e formas do conhecimento, que é indispensável para estudar as variações do saber intensificadas hoje em dia com o crescimento da sociedade de redes de informação.

Sem embargo, paralelamente às análises do automatismo relacionando cibernética, alienação e realização do pensamento teórico, como acabamos de ver, a contribuição da sociologia do conhecimento para a reflexão da sociedade de informação deve ser buscada notadamente na descrição dos sistemas cognitivos.

 

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Saiba Mais: As Aplicações da Sociologia do Conhecimento

 


[1] Cf. Gurvitch, Georges (1894-1965): “Problemas de Sociologia do Conhecimento”, In Gurvitch (Editor) et al. “Tratado de Sociologia – Vol.2”, Tradução: Ma. José Marinho, Revisão: Alberto Ferreira, Iniciativas Editoriais, Porto 1968, Págs. 145 a 189 – 1ª edição em Francês: PUF, Paris, 1960 – ver pág.149. Op.Cit.

[2] Cf. Lefebvre, H.:« Metafilosofia: Prolegômenos », tradução e introdução Rolando Corbusier, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1967, 399 pp. (1ª edição em Francês: Paris, Ed. De Minuit, 1965) ver capítulo 5: “Mimesis e Práxis”, págs. 246 a 264

[3] HegeL, G.W.F.: “La Phénoménologie de l´Espirit” – Tome I e Tome II, Paris, Aubier, 1939 (Tome I), 358 pp.; 1947 (Tome II), 359 pp.; Trad. Por Jean Hyppolite (Ed. Lasson – J. Hoffmeister, W. II, 4º ed., 1937), título em Alemão: “Die Fhaenomenologie dês Geistes”. Veja vol. I p.324; apud Lefébvre, H: op.cit. p.260.

 

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