Uma crítica sociológica aplicada em oposição à primazia da lógica sobre a consciência coletiva.
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Trechos do livro “Curso de Sociologia do Conhecimento – Texto 02”, Madrid, Bubok Publishing S.L., agosto 2013, 132 págs
Veja a postagem “As aplicações da sociologia do conhecimento”
Apresentação do livro
A matéria deste trabalho é a crítica a certos efeitos subordinantes da tecnificação do saber, tomada esta como aspecto da estrutura de classes.
Elabora em especial uma crítica sociológica aplicada em oposição à primazia da lógica sobre a consciência coletiva, já preliminarmente comentada no final do Texto 01 desta obra em seis textos[i] .
Sumário do livro
Epígrafe 5
Apresentação 7
Introdução 11
O obstáculo 11
Os fatores extra-lógicos 13
Orientação crítica 15
A sociologia contra o eudemonismo 15
Matéria deste trabalho 18
Propósito pedagógico 19
A Tecnologia, a indústria cultural e o paradigma 25
Ciências da cognição ou sociologia 27
As categorias lógicas são sociais 33
Tecnificação e Sociologia 38
Posicionamento realista 41
A mediação dos atos coletivos 42
As classes de conhecimento – 1 47
O conhecimento técnico 49
União do conceitual e do empírico 52
História e sociologia 55
O impacto da tecnificação 57
A Mentalidade de modernização 57
Opulência e Pobreza 60
Técnica e Tecnificação 63
O Plano organizado e o Espontaneísmo 64
Tecnificação e sintaxe 67
Desenvolvimento das expectativas 68
Problemas reais e esquemas prefixados 69
A mirada diferencial 72
A introdução do maquinismo 77
Não há ligação originária de ciência e técnica. 78
A distributividade do conhecimento técnico 80
Administração e sociologia 84
Sociologia e Objetividade Científica 86
Metodologia e sociologia do conhecimento 89
Mito e conhecimento 93
A Internet e a Mentalidade do Utilitarismo 97
Nova construção do conhecimento 101
As TICs e os valores do utilitarismo 104
O caráter comunicável 111
Notas complementares ao texto 02 114
Plano da Obra em seis textos 120
Sobre o autor 123
Notas de Fim 124
Introdução
A equação existencial é positiva porque chama atenção para os fatores extra-lógicos do conhecimento.
O obstáculo
Seria de esperar que a maior importância do conhecimento e da educação para a estrutura das nossas sociedades em regime de capitalismo organizado, sobretudo a partir dos anos de 1960, servisse de estímulo aos sociólogos para fazer avançar os estudos diferenciados da sociologia do conhecimento, como disciplina científica especial.
Como sabem, a valorização da educação e do conhecimento requeridos pelos públicos políticos em ascensão nos anos de 1920 foi o que motivou ao notável Karl Mannheim, fundador dessa disciplina [ii], para promove-la como disciplina diferenciada. Esperavam que esse esforço tivesse amplo alcance e repercussão mais além dos círculos privilegiados de estudiosos. Mas isso não aconteceu. Havia uma projeção do conhecimento como epifenômeno. Tal o obstáculo.
Por demasiado tempo, acreditaram que o os fatos de consciência eram um aspecto periférico que integrava somente os fenômenos chamados de comportamento, como as mudanças de crenças, estilos de vida, hábitos culturais; alterações essas que, supostamente, não colocariam em risco a estrutura da sociedade.
Projetavam que a base da vida social, sua infraestrutura, não seria alterada, supostamente, pelo peso do saber, mas, pelo contrário, apostavam que qualquer alteração no âmbito da consciência e do conhecimento conformaria ou refletiria uma expressão da mudança nas relações de produção, na economia e na história econômica.
Tal crença releva dos falsos problemas da sociologia do século XIX, notadamente a falsa alternativa entre sociologia ou filosofia da história, confusão absolutamente inadmissível, haja vista a capacidade da sociologia para alcançar perfeitamente por si só a situação presente da sociedade sem precisar de outra disciplina para isso [iii].
Se tiverem em conta a linguagem, a intervenção do conhecimento e o direito espontâneo verão que a consciência faz parte das forças produtivas em sentido lato e desempenha um papel constitutivo nos próprios quadros sociais (Nosotros, grupos, classes, sociedades). Conforme descreveu Saint-Simon, existe correspondência entre estrutura social, produção econômica, propriedade, regime político, ideias intelectuais e morais [iv].
Os fatores extra-lógicos
Sem embargo, é possível constatar a imbricação dispersa da sociologia do conhecimento enriquecendo as inúmeras e esclarecedoras análises sistemáticas das novas classes médias como quadros sociais, difundidas nos anos de 1960. Basta consultar a bibliografia pesquisada à época [v] .
Por outro lado, em face de um formalismo cultivado nos meios epistemológicos, que exagera como necessário o postulado da refutabilidade de todo o conhecimento científico [vi], admitiu-se a sociologia do conhecimento para negar sua relevância pedagógica como conhecimento científico[vii]. Em contrapartida, é inegável a existência de fatores objetivos que condicionam o conhecimento científico e devem ser examinados criteriosamente por razões de positividade.
A constatação de que os fatores extra-lógicos do conhecimento, tais como os contextos culturais e os determinismos sociais e sociológicos devem ser examinados com profundidade, revela um posicionamento preliminar do sociólogo que foi posto em destaque por C. Wright Mills [viii].
Para avançar nesse caminho, sociólogos notáveis chamaram atenção para a inserção da psicologia coletiva na sociologia, contando inclusive as contribuições de Durkheim e Marx [ix].
Nessa linha de pesquisa, chegam à autonomia relativa dos níveis simbólicos da realidade social (os níveis intermediários entre a infra e as superestruturas[x], isto é, os patamares de realidade social – “paliers”), incluindo o nível dos valores, das mentalidades e mais amplamente das obras de civilização.
Orientação crítica
Como sabem, a relevância da autonomia simbólica torna-se mais decisiva no estudo das estruturas a partir dos tipos de sociedades que engendram o capitalismo (séculos XVII e XVIII, incluindo a época do Iluminismo), onde, malgrado o advento do maquinismo, o peso do saber para o equilíbrio do conjunto não pode ser minimizado.
Daí, se impõe o reconhecimento dos níveis múltiplos de realidade social, com a inserção da psicologia coletiva (psiquismo, mentalidades) impulsionada junto ao fato do conhecimento em correlações funcionais com os quadros sociais.
A sociologia contra o eudemonismo
Para o sociólogo, o estudo do direito, da vida moral, do conhecimento pode ter lugar unicamente a partir dos fatos sociais e não por imposição de um absoluto.
Émile Durkheim assinalou a indispensabilidade da sociabilidade humana no conhecimento e constatou que “as categorias lógicas são sociais em segundo grau… não só a sociedade as institui, mas constituem aspectos diferentes do ser social que lhes servem de conteúdo…[xi] O ritmo da vida social é que se encontra na base da categoria do tempo; é o espaço ocupado pela sociedade que forneceu a matéria da categoria do espaço”[xii].
Ainda no começo do século vinte, após a obra do mesmo Emile Durkheim intitulada “De la Division do Travail Social” [xiii] , torna-se marcante o posicionamento do sociólogo não somente contra o então prestigiado utilitarismo doutrinário[xiv], reforçado nos meios progressistas depois de Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873), mas igualmente contra o eudemonismo e toda a imposição lógica de um absoluto estranho aos fatos sociais.
Como sabem, as doutrinas eudemonistas especulam sobre um conteúdo moral suposto unitário e imediato, na idêntica medida em que as mesmas buscam em uma contemplativa natureza humana um absoluto para a vida moral, com imposição lógica aos fatos sociais e às manifestações particulares da sociabilidade: tais as doutrinas do que é “útil”, do que é “técnico”, do que dá “prazer” (hedonismo).
Por sua vez, Durkheim sabia que o critério da utilidade constitui a base dos valores econômicos. Sem embargo, fez oposição à pretensão utilitarista em reduzir o valor de uma norma unicamente a sua utilidade como critério de felicidade para o maior número. Ademais, foi firme em repelir a projeção de “utilidade” como um absoluto, como critério último das ações humanas e base mensurável de análise das questões políticas, sociais e econômicas.
Por essa razão, devem distinguir entre mentalidade utilitária e utilitarismo doutrinário.
Diferente deste último, que é uma doutrina eudemonista, na mentalidade utilitária as atitudes são afirmadas em relação à qualidade pela qual os objetos revelam serventia econômica. Essa mentalidade integra a visão de sociedade como constituída por indivíduos para a realização de fins que são primariamente individuais. Daí a proximidade com o atomismo social e a imagem de que “não existe tal coisa chamada sociedade”, projetada pelos neoliberais em sua prioridade mercatória.
Matéria deste trabalho
Na trilha da orientação básica da sociologia, contrária ao eudemonismo, a matéria deste trabalho é a crítica a certos efeitos subordinantes da tecnificação do saber, tomada esta como aspecto da estrutura de classes.
Desta forma, elabora em especial uma crítica sociológica aplicada em oposição à primazia da lógica sobre a consciência coletiva, já preliminarmente comentada no final do Texto 01 desta obra em seis textos. (Veja adiante o Plano da Obra).
Como sabem, a imposição da primazia da lógica é uma projeção de setores tecnocráticos com forte tendência à hegemonia cultural que acontece na esteira da notada influência do conhecimento técnico associado à tecnologia [xv]. Sem embargo, a primazia da lógica é questionada pela atitude de oposição sociológica ao utilitarismo doutrinário.
Mas não é tudo. Por extensão, este trabalho põe em questão inclusive as orientações que aceitam um absoluto normativo sobre a realidade social, com foco nas refutadas teorias formalistas que, ao aplicar a separação de análise estrutural e análise histórica, acolhem axiomas doutrinários tirados da filosofia social, como é o caso da persistente teoria de coação ou conflito [xvi], muito influente no século vinte.
Propósito pedagógico
O propósito aqui agasalhado é o mesmo do Texto 01: contribuir com a revalorização pedagógica da colocação do conhecimento em perspectiva sociológica, mediante observações de leitura e interpretação, elaboradas em comentários com teor crítico no sentido esclarecido por Bachelard, de que “o determinismo é precisamente o objeto de uma discussão” [xvii].
De modo especial, se tem em vista equacionar e solucionar o problema do coeficiente existencial do conhecimento, bem como estudar os tipos sociológicos de sistemas cognitivos. Lembrem que a equação existencial é positiva porque chama atenção para os fatores extra-lógicos do conhecimento, tais como os contextos culturais e os determinismos sociais e sociológicos, já mencionados.
Aliás, em face de opositores fechados no argumento falacioso de que as condições sociais não influiriam na veracidade das proposições, Wright Mills afirma então incumbir-lhes indicar quais são as condições de que a veracidade depende realmente [xviii].
A maior sequência dos comentários reunidos nos vários textos de que o presente Texto 02 é parte, versa sobre o posicionamento dos opositores à esta disciplina, ao mesmo tempo em que os comentários repelem, em contrapartida, o preconceito contra a sociologia do conhecimento.
Finalmente, cabe relembrar que a elaboração da obra se faz em volta de quatro eixos principais seguintes:
- O problema sociológico do impacto da tecnificação;
- A indispensabilidade da psicologia coletiva nos estudos sobre o conhecimento;
- O reconhecimento da variação do saber como fato positivo;
- Caráter igualmente positivo da influência dos simbolismos e mitologias para os sistemas cognitivos.
Esperam que as informações, análises e os conteúdos sociológicos resultantes deste ensaio despertem no leitor benevolente maior interesse para prosseguir suas incursões nessa disciplina desafiadora que é a sociologia e, ao chegar no final deste livro, encontre ele na orientação diferencial aqui desenvolvida um caminho de reflexão consistente para contra arrestar os efeitos atomizadores das posições estranhas à defesa da sociabilidade humana.
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A Tecnologia, a indústria cultural e o paradigma
Quando falam de um novo paradigma de construção do conhecimento, não devem exaltar o fato de que as tecnologias de comunicação e informação possibilitem ao conhecimento técnico ser construído em seus conteúdos lógico-numéricos pelas próprias ferramentas tecnológicas, nem que as tecnologias sejam construídas pelas próprias tecnologias (os computadores constroem computadores, robôs constroem robôs).
Trata-se simplesmente de que, ao quebrar-se o elo convencional em torno da função de fazer o conhecimento / informação / mensagem chegar ao consumidor, a difusão desse conhecimento disponibilizado na indústria cultural passa a sofrer os efeitos das redes de redes, de tal sorte que o compartilhamento do conhecimento disponibilizado tem sido a base da inovação e da produção de novos conhecimentos.
A noção de construção passa a ter o sentido preciso de que o conhecimento / informação / mensagem não é mais imposto desde cima pela indústria cultural, mas o usufruto do mesmo, como conteúdo impresso, gravado socialmente, ou comunicado, resulta do círculo dos administradores e usuários das novas tecnologias da informação, sobretudo do compartilhamento e das trocas entre os particulares, incluindo notadamente as novas redes de redes P2P [xix] .
Admite-se, então, que esse conhecimento / informação / mensagem assim difundido e desfrutado em redes de redes, introduz novas referências para a compreensão dos papéis sociais na indústria cultural.
Por sua vinculação direta aos meios tecnológicos de difusão da informação, ou como extensão desses meios, sobretudo pela magnitude do seu volume e rapidez, tais conhecimentos em redes adquirem um valor econômico próprio que anteriormente não se verificava [xx].
Tal a razão pela qual alguns assinalam a importância de uma “noção tecnológica do conhecimento” e sugerem que a sociologia do conhecimento deveria concentrar-se primordialmente nos aspectos vinculados ou diretamente impulsionados pela tecnologia, como o desenvolvimento das habilidades tecnicizadas.
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Ciências da cognição ou sociologia
Certamente, essa sugestão visando redirecionar a sociologia em proveito da tecnologia pode ser associada notadamente às chamadas “ciências da cognição”, cujo aproveitamento das novas técnicas visuais da neurociência fez crescer seu prestígio e influência, difundindo-se a falsa suposição de que, ao visualizar o funcionamento do cérebro, a neuropsicologia seria capaz de visualizar os processos mentais ou, pelo menos, exercer uma observação muito próxima disso. Tal o engano desejado.
Em realidade esse desiderato não se verifica. Os processos mentais não podem ser diretamente observados, mas apenas constatados por inferência e de modo retroativo. A neurociência não alcança a visualização dos fatos mentais como a simbolização ou o aprendizado, mas somente de seus correlatos fisiológicos, observa somente aquilo que acontece no organismo enquanto os processos mentais se desenrolam.
Como sabem, o fim da psicologia é a descrição, a explicação, a previsão e o controle do desenvolvimento do seu objeto de estudo. Se os processos complexos como a simbolização ou o aprendizado, incluídas as operações lógicas, não podem ser diretamente observados como disse, mas apenas inferidos, torna-se o comportamento de um indivíduo o alvo principal dessa descrição, explicação e previsão.
Por sua vez, a sociologia encontra-se em medida de oferecer um estudo científico do conhecimento bem mais completo do que não poderiam fazê-lo as orientações reducionistas. Nestas, deixa-se de lado o fato de que não há comunicação fora do psiquismo coletivo enquanto que, em sociologia é básico que nenhuma comunicação pode ter lugar fora do psiquismo coletivo: as consciências individuais não se afirmam isoladamente, mas são intercomunicadas.
A sociologia encontra-se em medida de oferecer um estudo científico do conhecimento bem mais completo do que não poderiam fazê-lo as orientações reducionistas.
De maneira semelhante, todo o conhecimento é comunicável mediante os mais diversos simbolismos sociais, incluindo a língua de um povo, de tal sorte que a existência dos conhecimentos coletivos e suas hierarquias ou sistemas é preponderante em sociologia.
De maneira diferente das mencionadas “ciências da cognição”, o sociólogo realista elabora sua mirada seguindo o ensinamento de Émile Durkheim (1858 – 1917) que, juntamente com os colaboradores da revista L’Année sociologique fundada em 1898, já na primeira metade do século XX, colocou em relevo a existência de memórias coletivas múltiplas, acentuando que as consciências individuais se revelam deste modo interpenetradas.
Em debate com Gabriel Tarde (1843 – 1904), ao insistir que não se pode desconhecer a descontinuidade e a contingência que diferenciam as esferas do real, Durkheim ele próprio se posiciona sobre a referência das funções cerebrais na vida da consciência, deixando claro sua recusa em reabsorver a consciência coletiva nas consciências individuais [xxi].
Quer dizer, tomando base na diferenciação das esferas do real, os sistemas cognitivos são pesquisados a partir dos tipos de sociedades globais, e são decompostos segundo as classes do conhecimento que, por sua vez, podem ser (a) mais profundamente implicados na realidade social – o conhecimento perceptivo do mundo exterior, o conhecimento de outro e o conhecimento de senso comum, estudados nesta sequência; (b) menos espontaneamente ligadas aos quadros sociais, cuja ligação funcional requer o diálogo e o debate: como é o caso para o conhecimento técnico, o conhecimento político, o conhecimento científico e o conhecimento filosófico.
O conhecimento perceptivo do mundo exterior é privilegiado e dá conta das perspectivas recíprocas sem as quais não há funções estritamente sociais, enquanto os demais conhecimentos já são classes de conhecimento particular, já são funções correlacionadas dos quadros sociais e pressupõem aquele conhecimento perceptivo do mundo exterior.
Onde se verifiquem as classes do conhecimento mais profundamente implicadas na realidade social – o conhecimento perceptivo do mundo exterior, o conhecimento de outro (do que não é a mesma pessoa, o diferente) e o conhecimento de senso comum – descobre-se a simples manifestação dos temas coletivos: os Nós (Nosotros), os grupos, as classes sociais, as sociedades.
Daí o saber como controle ou regulamentação social: obstáculo ao avanço real desses temas de que tomamos consciência; constringente como aquilo que suscita os esforços e faz participar no real, levando desse modo à configuração da funcionalidade dos quadros sociais como reciprocidade de perspectivas, aos quais são essas classes de conhecimento as mais espontaneamente ligadas.
Assim, por exemplo, quando formulamos em palavras o conhecimento de um Nós (Nosotros) do qual tomamos consciência como tema coletivo (apreendido ou vivenciado e percebido na base implícita de sua formulação em sintaxe), verificamos, neste caso, um obstáculo ao avanço real da experiência humana vivida, obstáculo surgido por força da objetivação pela linguagem conceitual, que contém o fluxo daquela experiência.
Tal o exemplo do saber como fato social assinalado em termos didáticos, sendo a este aspecto da condição humana que o sociólogo chama regulamentação ou controle social pelo saber, acentuando a eficácia do conhecimento na realidade social [xxii].
As categorias lógicas são sociais
As mencionadas ciências da cognição [xxiii], por exemplo, ao imporem a redução imprópria da comunicabilidade, confrontam-se à impossibilidade em esclarecer a ligação das operações lógicas ao conhecimento propriamente humano, do qual fazemos a experiência quando dialogamos e enunciamos juízos, avaliações, reflexões, temas.
A comunicabilidade torna possível tal ligação. Desta forma, considerando que, no psiquismo coletivo, tem lugar uma fusão prévia das consciências (assegurando a mesma significação aos signos e aos símbolos, como, p.ex., nas palavras de uma língua), nota-se que o psiquismo interpessoal ou intergrupal implica o psiquismo individual e o psiquismo coletivo. Se esse psiquismo interpessoal é afirmado em suas manifestações na comunicação, nenhuma comunicação pode ter lugar fora do psiquismo coletivo. Ao mesmo tempo, são os psiquismos individuais que comunicam – o que supõe sua diferenciação tanto quanto sua fusão. Daí a relevância das constatações sociológicas de Émile Durkheim (1858-1917), já destacadas e agora repetidas, que assinalam a indispensabilidade da sociabilidade humana no conhecimento, seguintes: “as categorias lógicas são sociais em segundo grau… não só a sociedade as institui, mas constituem aspectos diferentes do ser social que lhes servem de conteúdo…[xxiv] O ritmo da vida social é que se encontra na base da categoria do tempo; é o espaço ocupado pela sociedade que forneceu a matéria da categoria do espaço; fora a força coletiva que criou o protótipo do conceito de força eficaz, elemento essencial da categoria de causalidade… O conceito de totalidade é, afinal, a forma abstrata do conceito de sociedade”[xxv].
O posicionamento de que qualquer tentativa em estudar o conhecimento para-além das simples funções lógicas e cerebrais não passaria (a) de mera ideologia e (b) careceria de alcance científico projeta uma crença que menospreza o alcance dos simbolismos no conhecimento e, por esta via, deixa ver o desconhecimento das teorias de consciência aberta às influências do ambiente.
Embora a imitação tenha procedência na consciência coletiva, predomina nesta última a oposição sociológica entre fusão ou interpenetração das consciências e a sua simples interação ou interdependência.
Ademais, o fenômeno essencial da psicologia coletiva e que a insere no domínio da sociologia é a imanência recíproca e a dialética entre as consciências coletivas e as consciências individuais. A psicologia interpessoal é parte do problema da formação de um sentimento coletivo.
Portanto, seria ilegítimo designar por imitação a submissão aos modos e aos costumes, assim como a participação na efervescência coletiva. Ambos os casos tratam de manifestações da consciência coletiva.
Além disso, é equivocado confundir e reduzir os símbolos sociais ao domínio da ideologia, confusão já questionada em relação ao behaviorismo, cujas explicações do comportamento tomado à margem de toda a implicação simbólica conduzem às conclusões mais absurdas quando aplicadas às situações humanas e sociais.
Vale dizer, muito além da ideologia, a sociologia ultrapassa o estudo das representações ou funções representativas e nem de longe pretende estabelecer os conteúdos cognitivos em relação às justificativas ideológicas, sejam elas quais forem.
Aliás, a sociologia dispõe de critérios operativos para desdogmatizar seus “conceitos” ou quadros operativos de análise e explicação. Mostra-se igualmente capaz de negar operativamente qualquer pré-ajuizamento em relação aos conteúdos cognitivos que, sem embargo, se propõe abarca-los em conjuntos a partir da distinção dos vários gêneros do conhecimento que, por sua vez, diferencia como disse em classes, ao decompor os sistemas cognitivos igualmente abarcados em conjuntos a partir dos tipos de sociedades globais que atravessam a história.
O estudo científico busca a previsão dos fenômenos, seus determinismos, e a sociologia desenvolve o estudo científico do conhecimento como fato social. A variação do conhecimento em função dos quadros sociais pode ser verificada em modo empírico (os coeficientes sociais do conhecimento) e constitui um critério científico seguro que dispõe a sociologia para verificar um conhecimento humano. Daí insistir em descrever as variações do saber em função dos quadros sociais para descobrir os sistemas cognitivos atualizados nesses quadros sociais e as tendências cognitivas que lhes correspondem.
Além disso, a procedência das ordens ou da comunicabilidade em nossos juízos, critérios, avaliações, e as vias por meio das quais novos conhecimentos intercomunicados chegam a ser produzidos são outros tantos problemas científicos que a sociologia esclarece ao estudar os sistemas cognitivos existentes e decompô-los em hierarquias de classes e formas de conhecimento.
Se o conhecimento não é separado dos simbolismos sociais (ou mitologias sociais[xxvi] ), podemos notar finalmente, em consequência, que, para a compreensão dos sistemas cognitivos, se impõe o estudo do coeficiente existencial do conhecimento – incluindo os coeficientes humanos (aspectos pragmáticos, políticos e ideológicos) e os coeficientes sociais (variações nas relações entre quadros sociais e conhecimento).
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Tecnificação e Sociologia
Continua em nova postagem.
Texto completo link:
http://www.bubok.es/libros/227287/Curso-de-Sociologia-do-Conhecimento–Texto-02
Notas
[i] Para melhor compreensão deste trabalho, tecle aqui, baixe grátis e leia em versão e-pub o texto 01.
[ii] Mannheim, Karl (1893–1947) : « Ideologia e Utopia : uma introdução à sociologia do conhecimento », tradução Sérgio Santeiro, revisão César Guimarães, Rio de Janeiro, Zahar editor, 2ª edição, 1972, 330pp.(1ªedição em Alemão, Bonn, F.Cohen, 1929 ; 2ªedição remodelada em Inglês, 1936).
[iii] A sociologia exige o abandono das ilusões do progresso em direção a um ideal, bem como o abandono das ilusões de uma evolução social unilinear e contínua, sendo da competência da sociologia descobrir na realidade social as diversas perspectivas possíveis e até antinômicas que são postas para uma sociedade em vias de se fazer. As ilusões trazidas pela confusão com a filosofia da história se encontram favorecidas pela ocorrência de um erro lógico fundamental que é a falta de distinção entre os juízos de realidade e os juízos de valor. Desse erro decorre a confusão, pois em vez de explicar os desejos a partir da realidade social, constrói-se a realidade social em função desses desejos A sociedade está sujeita a flutuações e até aos movimentos cíclicos, e a falta de distinção entre os juízos de realidade e os juízos de valor torna impossível o acesso da análise sociológica a um dado fundamental da vida social que é a variabilidade.
[iv] Claude-Henri de Saint-Simon (1760-1825): La physiologie sociale. Oeuvres choisies, par Georges Gurvitch. Versão em volume publicada em Paris, Presses universitaires de France, 1965, 160 pages. Collection: Bibliothèque de sociologie contemporaine. (textes de 1803 à 1825). http://classiques.uqac.ca/classiques/saint_simon_Claude_henri/physiolo gie_sociale/physiologie_sociale.html édition électronique
[v] Birnbaum, Norman: “A Crise da Sociedade Industrial”, trad. Octávio Cajado, São Paulo, editora Cultrix, 1973, 167 pp. (1ªedição em Inglês, Londres, 1969).
[vi] As teorias formalistas de diversos matizes, de que Popper é um dos expoentes, são refutadas na medida em que tomam por base a psicologia interpessoal exclusiva, promovem a técnica de estimação dos ajuizamentos de valor portados por cada membro de um grupo sobre cada um dos outros (sociodrama ou psicodrama), e sobrevalorizam a imitação em detrimento do psiquismo coletivo.
[vii] Um filósofo formalista da ciência de alto porte como Karl Popper, atribuindo-lhe equivocadamente um estatuto de disciplina exclusivamente causal, nos diz que nada ou muito pouco a sociologia do conhecimento teria para ensinar. Em suas palavras: …“ podemos aprender acerca da heurística e da metodologia e até a respeito da psicologia da pesquisa, estudando teorias apresentadas pró e contra elas, mais do que por qualquer abordagem direta behaviorista ou psicológica ou sociológica”, cf: Popper, Karl: ‘Conhecimento Objetivo: uma abordagem evolucionária’, tradução Milton Amado, São Paulo/Belo Horizonte, EDUSP/editora Itatiaia, 1975, 394 pp, traduzido da edição inglesa corrigida de 1973 (1ªedição em Inglês: Londres, Oxford University Press, 1972); pág.116.
[viii] W. Mills constatou a ocorrência de fatores extra-lógicos como intervindo e influindo na validade do pensamento de uma elite técnico-científica ou de pensadores individuais, e não só assinalou tratar-se de uma situação de fatos, mas reconheceu uma realidade objetiva interessando à sociologia como disciplina determinística. Sustenta uma “teoria social da percepção” segundo a qual, na busca de verificação dos elementos empíricos, os conceitos existentes condicionam os resultados da indagação. Wright Mills, Charles (1916 – 1962): ‘Consecuencias Metodológicas de la Sociología del Conocimiento’, in Horowitz, I.L. (organizador): ‘Historia y Elementos de la Sociología del Conocimiento – tomo I’, artigo extraído de Wright Mills, C.: ‘Power, Politcs and People’, New York, Oxford University Press, 1963; tradução Noemi Rosenblat, Buenos Aires, Eudeba, 3ª edição, 1974, pp.143 a 156. Veja igualmente: Lumier, Jacob (J.): “Comunicação e Sociologia” – Artigos Críticos / 2ª Edição modificada, Junho 2011, 143 págs. Ver especialmente as páginas 130 sq. Versão digital acessivel em:http://www.bubok.es/libros/191754/Comunicacao-e-Sociologia–artigos-criticos–2-edicao-modificada
[ix] Cf. Gurvitch, Georges (1894-1965): “Problemas de Sociologia do Conhecimento”, In Gurvitch (Editor) et al. “Tratado de Sociologia – Vol.2”, Tradução: Ma. José Marinho, Revisão: Alberto Ferreira, Iniciativas Editoriais, Porto 1968, Págs. 145 a 189 – 1ª edição em Francês: PUF, Paris, 1960
[x] Não devem reduzir ao nível da ideologia as obras de civilização como o direito, a moral, o conhecimento. As superestruturas implicam os graus de cristalização, de estruturação e de organização da vida social que podem entrar em defasagem, desequilíbrio e até em contradição com os elementos espontâneos desta, resultando, pelo concurso de ideologias falazes, na ameaça de dominação e sujeição que pesa sobre as coletividades e os indivíduos.
[xi] Lembrem que não somente a capacidade em distinguir as semelhanças e as diferenças constitu um fato social básico, mas também é básico o reconhecimento coletivo de que as relações de aproximação ou afastamento com os outros são feitas de semelhanças e diferenças, o que confirma a constatação de Durkheim de que as categorias lógicas, como o princípio da identidade e do terceiro excluído, são sociais em segundo grau.
[xii] Cf. Gurvitch, Georges (1894-1965): “Problemas de Sociologia do Conhecimento”, In Gurvitch (Editor) et al. “Tratado de Sociologia – Vol.2”, Tradução: Ma. José Marinho, Revisão: Alberto Ferreira, Iniciativas Editoriais, Porto 1968, Págs. 145 a 189 – 1ª edição em Francês: PUF, Paris, 1960 – Ver pág.149.
[xiii] Veja: Émile Durkheim (1858-1917): De la division du travail social (1893), Paris: Les Preses universitaires de France, 8e édition, 1967, 416 pages. Bibliothèque de philosophie contemporaine. Versión digital, Les Classiques des Sciences Sociales: http://classiques.uqac.ca//classiques/Durkheim_emile/division_du_travail/division_travail.html
[xiv] O utilitarismo é contestado na medida em que seus adeptos projetam o objeto utilitário como criterio último de las acciones humanas y como base mensurable de análisis de las cuestiones políticas, sociales y económicas.
[xv] A técnica não se limita só ao conhecimento da manipulação da matéria nem se identifica à tecnologia, pois não comporta a exclusividade das competências tecnológicas.
[xvi] Uma formulação representativa dessa corrente encontra-se na obra de Dahrendorf, Ralf: “Ensaios de Teoria da Sociedade”, Zahar – Edusp, Rio de Janeiro 1974, 335 pp. (1ª edição Em Inglês, Stanford, EUA, 1968).
[xvii] O caminho do ensino permanece um caminho de pensamento sempre efetivo porquanto alimentado pela “polêmica da prova”. O espírito científico não repousa sobre crenças, sobre elementos estáticos, sobre axiomas não discutidos. A crença no determinismo não está na base de todos os pensamentos, fora de toda a discussão. Pelo contrário, “o determinismo é precisamente o objeto de uma discussão”, assunto de uma polêmica quase diária na atividade do laboratório. Cf. Bachelard, Gaston: “O Novo Espírito Científico”, São Paulo, editora Abril, 1974, coleção “Os Pensadores”, vol.XXXVIII, pp.247 a 338 (1a edição em Francês, 1935). Págs. 302, 303.
[xviii] Wright Mills, Charles (1916 – 1962): ‘Consecuencias Metodológicas de la Sociología del Conocimiento’, in Horowitz, I.L. (organizador): ‘Historia y Elementos de la Sociología del Conocimiento – tomo I’, op.cit.
[xix] Recente pesquisa internacional confirmou a pre- dominância intercontinental das redes P2P em 2010. http://www.sandvine.com/downloads/documents/2010%20Global%20Internet%20Phenomena%20Report.pdf
[xx] Sobre a noção econômica de valor vejam o artigo de Christian Höner na revista Krisis: “Quest-ce-que-la-valeur” http://www.krisis.org/2004/quest-ce-que-la-valeur
[xxi] Veja Gurvitch, Georges (1894-1965): “A Vocação Actual da Sociologia –vol.II: antecedentes e perspectivas”, tradução da 3ª edição francesa de 1968 por Orlando Daniel, Lisboa, Cosmos, 1986, 567 págs. (1ª ed: Paris, PUF, 1957).
[xxii] Gurvitch, Georges (1894-1965): “Los Marcos Sociales Del Conocimiento”, Trad. Mário Giacchino, Monte Avila, Caracas, 1969, 289 págs. – 1ª ed: Paris, Puf, 1966.
[xxiii] Para informação básica, veja “Cognition”, na Wikipedia.
[xxiv] Veja anteriormente nota de rodapé número 3.
[xxv] Cf. Gurvitch, Georges (1894-1965): “Problemas de Sociologia do Conhecimento”, In Gurvitch (Editor) et al. “Tratado de Sociologia – Vol.2”, Tradução: Ma. José Marinho, Revisão: Alberto Ferreira, Iniciativas Editoriais, Porto 1968, Págs. 145 a 189 – 1ª edição em Francês: PUF, Paris, 1960 – Ver pág.149.
[xxvi] As mitologias sociais são histórias de origem imaginativa transmitidas, principalmente, através da literatura oral [exemplo no Brasil é a literatura de cordel] para buscar um significado para os fatos políticos, econômicos e sociais. Incluem a mitologia grega e outras.
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