Introdução: Sociologia e Direitos humanos
O presente artigo é uma forma de cooperação junto aos atuais esforços da sociedade democrática em participar do programa mundial para a Educação em direitos humanos (WPHRE) [[i]].
Tem por objetivo esboçar algumas linhas de reflexão sobre os conteúdos de sociologia e direitos humanos, para desenvolvimento em uma oficina de sociologia e em um curso de formação. Visa a aplicação na questão da diferença em face dos temas ideológicos, a que examina sob os aspectos seguintes: (a) em torno do problema do individualismo no Século XX, em relação ao qual, erroneamente, alguns publicistas acusam a presumida ligação dos direitos humanos, em razão desses últimos, inicialmente, centrarem seu foco no indivíduo; (b) em referência ao impacto das técnicas de informação e comunicação – TICs, que não somente potencializam a indispensável liberdade de expressão, mas põem em relevo a difusão dos direitos humanos e suas violações.
Obviamente, o método utilizado nesse trabalho é uma aplicação da sociologia, e consiste em situar a matéria no marco da realidade social e histórica. Nada obstante, essa orientação não significa privilegiar a conhecida classificação em três gerações de direitos humanos, preferida por muitos sociólogos, em detrimento do enfoque multidimensional.
O elemento da solidariedade internacional
Pelo contrário. Desde o ponto de vista do pluralismo efetivo da realidade social, diferenciado em escalas, quadros sociais e procedimentos dialéticos, o aspecto multidimensional dos direitos humanos em sua interpenetração, afirmando-se uns pelos outros, não poderia permanecer em segundo plano. A multidimensionalidade implica o elemento da solidariedade internacional, posto em foco pela terceira geração dos direitos humanos ao abranger os direitos que avançam mais além do âmbito civil e social. Ademais, conta, igualmente, o amplo espectro dos direitos grupais e coletivos, os quais, dentre outros, propugnam a consecução de um nível de vida adequado.
Junto aos tópicos debatidos aqui, se observou que a era das tecnologias da informação e comunicação – TICs favorece a tendência para a retomada do utilitarismo, como doutrina de recorte moral, e que esse fato deve ser levado em conta como obstáculo no estudo dos direitos humanos desde o ponto de vista sociológico.
Basta lembrar que, igualmente aos adeptos do atomismo, no utilitarismo prevalece a visão da sociedade feita unicamente de indivíduos para a realização de fins que são primariamente os fins individuais, o que leva a reencontrar a proposição conservadora de que “não há tal coisa como uma sociedade”, e, por extensão, nada do direito internacional à solidariedade [[ii]].
Caráter indispensável do WPHRE
Caráter indispensável de um programa educativo como o Programa Mundial para a Educação em Direitos humanos / World Programme for Human Rights Education (WPHRE) diante do impacto pró utilitarismo doutrinal resultante das TICs.
Em consequência, desse impacto para o utilitarismo doutrinal resultante das TICs, podem ver claramente o status indispensável de um programa educativo como o aludido Programa Mundial para a Educação em Direitos humanos / World Programme for Human Rights Education – WPHRE [[iii]]. Trata-se de fomentar a tomada de consciência e promover, junto ao jornalismo e aos meios de comunicação, a vinculação aos direitos humanos. Desiderato tanto mais estimado quanto as formas de participação social, no contexto de uma era de tecnologias de informação e comunicação – TICs, passam por um modelo de compartilhamento [[iv]].
Sem embargo, na medida em que o utilitarismo doutrinal e o atomismo social podem servir de cobertura e justificação para as posições pró mercadorização das relações sociais [[v]] – que é uma serventia claramente prejudicial à universalização dos direitos humanos – revela-se uma situação igualmente desfavorável aos titulares de direitos, e à percepção dos comportamentos e representações geradoras de violações, inclusive as imagens depreciativas de outros [[vi]].
Como sabem, no contexto das desigualdades sociais, muitas pessoas têm uma ideia equivocada de que, se os outros estão a lograr direitos, irão elas perder o que creem ser seus direitos, mas, em verdade, são privilégios. Em consequência, nota-se a relevância da crítica psicossociológica, tanto mais indispensável quanto as imagens depreciativas permanecem dissimuladas ou disfarçadas nas hierarquias sociais combinadas com a distribuição compulsiva de vantagem competitiva [[vii]].
O direito de saber
Seja como for, na medida em que o direito de saber é um requisito para a liberdade de pensamento e de consciência, assim como a liberdade de pensamento e a liberdade de expressão formam as condições necessárias para a liberdade de acesso à informação, podem dizer que a Educação em direitos humanos se desenvolve basicamente na liberdade de expressão e reunião.
A falsa alternativa da moral e da política
Por último, o tópico no qual a miúdo se debate a questão de saber se os direitos humanos são de matiz moral ou têm coloração político ideológica é um plano complexo, que também tem seu lugar neste artigo, porém com poucas linhas, já que essa alternativa da moral ou da política deixa de existir uma vez admitido que a ação na qual os organismos do Estado de Direito estão participando e estão promovendo é a ação pública, cujo marco de referência é a sociedade democrática e não o aparato do Estado [[viii]]
Isto significa que, em lugar dos temas ideológicos – como, por exemplo, o papel do Estado nacional (sobreposto ao Estado de Direito), a participação nos partidos políticos, etc. –, os temas coletivos reais, inclusive as relações com os outros, com os grupos, classes, sociedades globais, devem ser postos em relevo, já que são esses temas coletivos e não os primeiros, que trazem consigo os obstáculos reais à universalização dos direitos humanos, tais como as desigualdades sociais, a degradação do meio ambiente, os desastres ambientais – inclusive as guerras, os eventos naturais e os de saúde pública –, e a necessidade de saneamento.
Por sua vez, essa referência aos elementos da sociedade democrática emerge com força desde a perspectiva de aprofundamento da educação em direitos humanos, a qual, ademais dos sistemas de ensino de primeiro, segundo e terceiro graus, é orientada para a capacitação de professores e funcionários públicos, incluídos os militares, e alcança os jornalistas e profissionais dos meios de comunicação.
Tendo em vista essa dimensão transversal corretamente desenhada no mencionado Programa Mundial para a Educação em Direitos humanos / World Programme for Human Rights Education – WPHRE , já podem compreender que, como consequência disso, o fator que imprime o conteúdo dos direitos humanos não é primordialmente um elenco de medidas com a mesma maneira (recursos técnicos e articulação de interesses) das que se aplicam geralmente para pôr em obra, por exemplo, uma estratégia diferenciada de ação económica para o desenvolvimento, ainda que as metas respeitem e valorem a população civil de baixos ingressos, como é amplamente desejável. Porém, o fator que imprime o conteúdo dos direitos humanos suscita, como primordial, a tomada de consciência dos obstáculos efetivos à universalização. Em decorrência, nota-se a relevância da sociologia e da psicologia coletiva que ela traz, na prática de caráter pedagógico que, então, se delineia.
A falsa orientação sobre o Estado Nacional
Por sua vez, a tentativa exagerada em reduzir o desafio de promover a universalização dos direitos humanos à questão ideológica do papel do Estado Nacional, tem pouco aproveitamento quando se trata de comportamento e consciência coletiva.
Em verdade, ao desprezarem o potencial das novas formas de participação social suscitadas pelas TICs, vários publicistas desacreditam a possibilidade de universalização dos direitos humanos (com a redução das violações em escala global) y, em razão desse ceticismo, sustentam, equivocadamente, que a atuação estatal na promoção, garantia e reparação dos direitos humanos, ao desenvolver-se como somente mais uma das políticas públicas, deveria servir aos ditames do pensamento ideológico do grupo do governo.
Aventa-se, nesse caso, uma falsa orientação, que não é mais do que uma mistificação das teorias de hegemonia. Com efeito, ainda que integrados no domínio jurídico interno dos Estados membros das Nações Unidas, os direitos humanos procedem dessas últimas, como blocos de sociedades globais, e, por essa razão, constituem fator de apaziguamento dos grupos e de reconhecimento das populações civis. Ademais, se mostram historicamente arraigados nas intermediações das sociedades democráticas, e não há maneira de utilizá-los para fins distintos de sua universalização. Na hipótese contrária, se perderá a liberdade intelectual e de expressão que é crítica para os mesmos.
O presente artigo, ao revalorizar as atividades da sociedade democrática que contemplam o psiquismo coletivo, como a mencionada liberdade intelectual e de expressão (inclusive as ações pedagógicas), põe em relevo a diferença dos direitos humanos e a especificidade transversal de seus temas, que não devem confundir aos temas ideológicos, posto que os temas de direitos humanos não servem de trampolim para os projetos de poder e hegemonia.
Dirigido para a cooperação com o mencionado programa mundial para a Educação em direitos humanos, neste trabalho se compartilha a compreensão de que, como procedimento eficaz na universalização, a Educação nessa área contribui a combinar os programas e políticas de direitos humanos, por um lado, e as ações pedagógicas, por outro lado.
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[i] O Programa Mundial para a educação em Direitos Humanos é fomentado pelo Escritório do Alto Comissário para os Direitos Humanos das Nações Unidas: World Programme for Human Rights Education (2005- on going).http://www.ohchr.org/EN/Issues/Education/Training/Pages/Programme.aspx
[ii] A compreensão do problema dos valores e ideais que se descobre na orientação durkheimiana está baseada na oposição ao utilitarismo doutrinário, de tal sorte que a teoria sociólogica se define contra qualquer posicionamento eudemonista (eudaemonism) nessa matéria. A recusa da “utilidade” ou especialmente do “que é utilitário” como critério último das ações humanas, e como base mensurável de analise das questões políticas, sociais e econômicas mostra-se um posicionamento crítico que fazia parte do compromisso de Durkheim [Emile Durkheim (1858 – 1917)] em defender a especificidade da realidade social e, por esta via, repelir qualquer tentativa que pretendesse estabelecer um absoluto para a vida moral com imposição aos fatos sociais. Deste ponto decorre sua orientação pela qual as principais obras de civilização como a religião, a moralidade, o direito, a arte sejam sistemas de valores culturais (por diferença dos valores econômicos) cuja validade objetiva consiste em sua referência ao nível (escalón, “palier”) de realidade mais profundo que é dos ideais. Ver Gurvitch, Georges (1894-1965): A Vocação Actual da Sociologia – vol.II: antecedentes y perspectivas,(Tradução da 3ª edição francesa de 1968, por Orlando Daniel,Lisboa, Cosmos, 1986, 567pp.[1ª ed. Paris, PUF, 1957])
[iii] http://www.ohchr.org/EN/Issues/Education/Training/WPHRE/ThirdPhase/Pages/ThirdPhaseIndex.aspx
[iv] Como se verá adiante, o foco do modelo de compartilhamento são as redes P2P de computadores, onde cada um dos pontos ou nós da rede funciona como “cliente” e como “servidor”, permitindo partilhar serviços e dados sem a necessidade de um servidor central.
[v] A mercadorização é um conceito com largo emprego na crítica da sociedade. Neste trabalho, é utilizado para designar o controle capitalista no âmbito da psicologia coletiva, como mercadorização das relações humanas. Sem embargo, debe ter em conta que há uma tendência para a mercadorização da sociedade: “La mercaderizacción de la sociedad es la universalización de la excepción mercantil (la excepción por la cual la oferta y la demanda no se corresponden sino bajo una “asimetrización” por la que uno u otro polo sale perdiendo).” Cf: Jorge Iacobson: “El marketing como ideología”. Internet, Revista “Bajo Control” (25/11/2010) http://bajocontrol.over-blog.es/article-el-marketing-como-ideologia-61689499.html (verificado en 2 de Abril 2013).
[vi] Muitas vezes as imagens depreciativas dos outros se ligam à mentalidade conformada, submissa ao que está preestabelecido, levando a uma falsa compreensão das relações humanas, de tal sorte que, ao invés de percebidos como integrantes de um Nós-outros, os outros são reduzidos ao imaginário psicologista. Desse reducionismo decorre a pouca relevância atribuida às experiências efetivas que o grupo acumulou. Ademais, muitos descartam como neglicenciável, juntamente com a sintaxe existente, o acervo (histórico) das práticas do grupo, inclusive seus modelos e procedimentos anteriormente desenvolvidos na organização produtiva (em vigor na sintaxe existente). Portanto, se aplicam aquí as observações redescobertas na fórmula atribuída ao filósofo da Roma antiga Cícero, de que, ao comentá-la, o notável sociólogo C. Wright Mills faz ver o imaginário psicologista, por sua vez descrito como interação mais ou menos lúdica de três pessoas (Cf. C.Wright e Gerth, Hans: Caráter e estrutura social: a psicologia das instituições sociais, tradução Zwinglio Dias, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1973, 508 págs). Quer dizer, na mentalidade conformada, que é resignada à imposição das condutas preestabelecidas, as relações humanas são vistas através do filtro do imaginário psicologista e podem ser resumidas em um jogo individualista e social atomista em que três imagens pessoais recobrem a realidade social, a saber: a pessoa que alguém “pensa” ou se representa que é, a que os outros pensam que ele é, aquela que ele julga ou supõe que os outros pensam que ele seja. Note que o imaginário psicologista é reconhecido nas chamadas “discussões de relação” (DR), tidas por psicólogos como dificuldades para a autoajuda das pessoas.
Todo o domínio da psicologia individualista se resume nesse imaginário interpessoal desgarrado, com as seguintes características: (a) é um imaginário feito de avaliações arbitradas nas preferências subjetivas ou veleidades projetadas sobre os outros; (b) é feito de autoavaliações que unicamente refletem o caráter preestabelecido das regulamentações e das condutas hierarquizadas dos aparelhos organizados. Teorizado ou não, trata-se de um imaginário frequentemente supervalorado nas técnicas utilizadas nos treinamentos corporativos, inclusive os psicodramas e os sóciodramas (originalmente concebidos na sociometria de J.L. Moreno,1889 – 1974). Indiferente à realidade social que oculta de si, nesse imaginário psicologista, a consciência se mantém mais ou menos fechada sobre si, com tendência à introspecção, lança imagens ao exterior de onde as recebe, de tal sorte que essa perpétua interação de autoimagens entre indivíduos atomizados gira como uma condenação, isto é, diretamente centrada na ansiedade da natureza humana, aquém de toda a aspiração coletiva.
[vii] A tendencia utilitarista da sociologia da administração teve o mérito de haver posto em relevo a categoria economicista da vantagem competitiva como critério na descrição do sistema de desigualdades em estratos econômicos e sociais, aplicável a todas as coisas que contam pontos em um curriculum vitae y en portfolios.
[viii] Na história moderna, quando alguém fala de sociedade democrática faz recordar as cidades livres, que precipitaram o fim da Idade Média e deram força à sociedade industrial nascente, estudada esta última por Saint-Simon (Claude Henri de Saint-Simon, 1760 – 1825), o fundador da sociologia. O bloco histórico das cidades, com sua sociabilidade característica (gira em torno da produção fabril e do comércio), e mais amplamente os conjuntos dos agrupamentos de localidades (municípios, distritos, comarcas, etc.), tais como articulados ou pactados nas várias instâncias da história das instituições parlamentares, formam em realidade social a sociedade democrática.