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As Relações Humanas e a insuficiência de sua Psicologia Social

In análise, desenvolvimento, individualismo, sociologia on January 28, 2016 at 2:11 pm

 Nimage002otas para uma crítica à mentalidade resignada.

O problema é que  as relações humanas nas organizações têm sido apreciadas frequentemente na mais ampla desconsideração de qualquer referência ao mundo das ideias e valores, para, em lugar disso, deixar prevalecer o imaginário psicologista[i].

 

Um standard do mundo da comunicação

 

A adoção da gestão de relações humanas foi afirmada em reação aos procedimentos de administração que associavam, exclusivamente, o melhor aproveitamento da capacidade física dos indivíduos, inclusive pela automação, ao aumento da produção. Trouxe um avanço na capacidade de compreensão das teorias de administração com a valorização de alguns aspectos do ambiente organizacional, como fatores característicos de relações humanas, que deveriam ser tomados em conta, seguinte: (a) o comportamento do indivíduo está condicionado às normas padrões sociais, e os indivíduos agem em vista de obter recompensas sociais; (c) a empresa deve ser vista como um conjunto de grupos sociais informais, cuja estrutura nem sempre coincide com a organização formal; (d) se reconhece a existência de grupos sociais que se mantêm em constante interação social dentro da empresa. (e) Da mesma forma, os elementos emocionais e mesmo irracionais passam a merecer maior atenção.

Trata-se de uma orientação com procedência no behaviorismo, o qual estabeleceu a noção de comportamento para designar as condutas observadas a partir de certos modelos de motivação e de êxito. Se preconizou, por essa razão, que as condutas dos indivíduos poderiam ser conduzidas pela ação administrativa.

Esta última, por sua vez, teria sua principal referência na busca do que chamam “sinergia”, uma união harmoniosa, em relação a que assinalam a importância do entrosamento que deve existir entre todos os níveis hierárquicos de uma organização: entre o presidente, diretores, gerentes, supervisores, assistentes e auxiliares. Todos sem exceção devem trabalhar em constante comunicação e harmonia, sempre coligados aos objetivos principais da companhia.

Em que pese o avanço na capacidade de compreensão das teorias de administração, as relações humanas são vistas de um ponto de vista dirigista, fortemente limitadas a uma psicologia atomista, em que os indivíduos são tomados em interações do tipo “ Eu – Tu”, sem que a mediação do todo seja tomada em consideração. Daí que um crítico perspicaz como Wright Mills, tenha descrito a psicologia social das instituições em termos que correspondem a um imaginário psicologista [ii].

Vê-se dessa forma um jogo individualista com caráter social atomista, assim definido exatamente por carecer de intermediação, por não reagir em função de seu conjunto, já que é um composto artificial de três imagens pessoais hipostasiadas, que recobrem a realidade social e exaurem o indivíduo, a saber: (1) a “pessoa” que alguém “pensa” ou se representa que é; (2) a que os outros “pensam” que ela é; (3) a que julga ou supõe que os outros “pensam” que ela seja [iii].

Nessa coleção de imagens hipostasiadas da pessoa, em que se atribui uma existência substancial ao que é ficcional, o aspecto interpessoal das relações sociais vem a ser restringido a uma atividade mental, a qual, nesse caso, é constatada em avaliações arbitradas nas preferências subjetivas, ou veleidades, projetadas como representações de outros, inclusive as auto avaliações, que, aquém das aspirações coletivas presentes de modo espontâneo na vida social, refletem apenas o caráter preestabelecido das regulamentações e das condutas previamente hierarquizadas no modelo dos aparelhos organizados [iv]. Daí a influência ampla dessa psicologia gerencial a que chamam “relações humanas nas empresas”.

Embora esse imaginário seja frequentemente supervalorizado nas técnicas utilizadas para treinamentos de funcionários, é também muito cultivado nos ambientes difundidos pela mídia e aplicado como modelo de relações humanas, as quais, dessa forma, passam a ser entendidas como gestão de pessoas que se propõe obter do grupo lealdade, dinamismo e comprometimento com os objetivos da organização. Acreditam que reconhecer as relações humanas é identificar a motivação das pessoas para poder conduzi-las com planejamento, informação, arbitragem, controle, recompensa, estímulos, disciplinas e todas as ferramentas e recursos utilizáveis em uma administração de recursos humanos.

O imaginário psicologista, pode também ser observado a partir do público da televisão e seus reality shows, onde, frequentemente, os personagens, inclusive das novelas líderes em audiência, sempre com suscetibilidade, sofrem uma ansiedade que pode ser descrita como interação mais ou menos lúdica das três pessoas hipostasiadas, as quais são como disse afirmadas sem um meio termo que as implique umas pelas outras, já que a noção de grupo nesse caso é meramente formal.

Na medida em que configura um standard do mundo da comunicação, o imaginário psicologista pode ser igualmente detectado na variedade de seriados “hollywoodianos” que fomentam o modelo de um ambiente organizado sob controles tecnológicos. Filmes em que, apesar dos desafios e eventuais peripécias, encontramos invariavelmente um pequeno grupo de personagens principais trocando avaliações uns dos outros, suas preferências e auto avaliações, à maneira dos antigos e influentes psicodramas e dinâmicas de grupo, que promovem a técnica de estimação dos ajuizamentos de valor portados por cada membro de um grupo sobre cada um dos outros, à margem do todo.

A referência do atomismo social

As teorias de relações humanas são formalistas e, como tais, refutadas, dado que tomam por base uma psicologia interpessoal atomista, e promovem a mencionada técnica de estimação dos ajuizamentos de valor portados por cada membro de um grupo sobre cada um dos outros (sociodrama ou psicodrama), e valorizam a imitação.

A realidade social não admite redução a uma poeira de indivíduos idênticos, mas, ao contrário disso, todas as interações, inter-relações, relações com outrem (interpessoais e intergrupais) ou interdependências pressupõem e são sempre fundadas sobre interpenetrações, integrações, participações diretas, fusões parciais em os Nós-outros (atuais ou virtuais), sempre concebidos como totalidades.

Psicodrama e sociodrama são esforços de autores que, embora tenham ultrapassado os erros de Hobbes, pensador este há muito superado, permaneceram parcialmente em desvantagem devido a um psicologismo individualista que os levou a reduzir a realidade social a relações de preferência e de repugnância interpessoais e intergrupais.

O erro de Hobbes não foi ter procurado os elementos microscópicos e irredutíveis de que é composta qualquer unidade coletiva, mas foi, sim, tê-los encontrado fora da realidade social, nos indivíduos isolados e idênticos.

Desse modo se estabeleceu a referência do atomismo social, como o conjunto das concepções individualistas e contractualistas que reduzem a realidade social a uma poeira de indivíduos idênticos [v]. Tal é a referência do psicologismo individualista que situa aos representantes do psicodrama no mesmo nível do formalismo social, com a equivocada redução de qualquer sociabilidade à simples interdependência e interação recíproca.

Nesta limitada orientação, se preconiza como disse que, ao nível psicológico da realidade social, qualquer interesse está concentrado sobre a psicologia interpessoal em detrimento da psicologia coletiva propriamente dita, com desprezo das funções intelectuais e voluntárias em favor do aspecto exclusivamente emotivo da preferência e da repugnância, com o aspecto mais significante da aspiração sendo aí deixado de lado.

 

Uma reflexão crítica à mentalidade resignada

Indiferente à realidade social que esconde de si, nesse imaginário psicologista, a consciência mantém-se mais ou menos fechada sobre si mesma, com tendência à introspecção, lança imagens ao exterior de onde as recebe, de tal sorte que essa perpétua interação de imagens de pessoas e autoimagens, trocadas entre indivíduos atomizados e a beira de alternativas excludentes – ou participar da dinâmica imaginária ou assumir o risco da exclusão – gira como uma condenação, isto é, diretamente centrada na ansiedade da natureza humana, à margem das ali desprezadas aspirações coletivas.

Embora conformada ao que é preestabelecido na hierarquia organizacional, trata-se certamente de uma mentalidade vinculada à modernização dos procedimentos ou melhoramento dos controles técnicos e tecnológicos no mundo da produção, que se projeta para fora e se fixa nos símbolos padronizados do utilitarismo doutrinário – “o que é utilitário é bom para todos, logo, uma norma é legitima se favorece o que é utilitário”.

Nessa mentalidade tecnocrata, mas conformada, tem-se uma falsa compreensão das relações humanas efetivas nos diversos ambientes além do mundo da organização, tais como o mundo da família e vizinhança, o espaço público, os ambientes sociais e educativos, etc. Falsa compreensão porque, ao invés de percebidos como integrantes de um todo, no caso um Nós-outros, os outros, naquela mentalidade, são reduzidos como disse ao imaginário (psicologista) de cada um, desprovidos estes de integração funcional no todo, carentes de intermediação.

Daí, dessa atomização dos indivíduos, provém a pouca relevância atribuída às experiências efetivas que o grupo acumulou, deixando-se como negligenciáveis, juntamente com a sintaxe existente, o mencionado histórico (acervo) de suas práticas, de seus modelos e seus procedimentos anteriormente desenvolvidos em plano de uma organização.

 

Nem o sistema nem o mercado

Desta forma, em face da recorrência de concepções social-atomistas do tipo da referida “mentalidade resignada”, que tendem como disse para reduzir as relações humanas e sociais ao “imaginário psicologista”, devem compreender que o indivíduo e as relações humanas e sociais efetivas não são identificadas nem ao sistema nem ao mercado; não se reduzem à busca de vantagem diferencial que caracteriza o mercado, nem à hierarquia das desigualdades de posição econômica que alicerça o sistema.

Continua

 

***

[i] O imaginário psicologista é reconhecido nas chamadas “discussões de relação” (DR), tidas por psicólogos como dificuldades para a autoajuda das pessoas.

[ii] Cf. Wright Mills, Charles e Gerth, Hans: Caráter e estrutura social: a psicologia das instituições sociais, tradução Zwinglio Dias, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1973, 508 págs).

[iii] Ver Nota i.

[iv] Ibid. ibidem.

[v] El atomismo en la filosofía social de Hobbes es subsidiario del contractualismo. El atomismo social dispensa tal ligación. La visión de la sociedad como constituida por individuos para la realización de fines que son primariamente fines individuales se aplica al atomismo social tanto cuanto al utilitarismo. De ahí se hablar que “no existe tal cosa como sociedad”. De ahí que esa proposición proyecte tanto el atomismo social cuanto el utilitarismo. Cf. Mark Redhead: Charles Taylor: Thinking and Living Deep Diversity, Rowman & Littlefield, 2002. Apud Lumier, Jacob (J.): “La Sociología, los Derechos Humanos y la Deconstrucción de las Desigualdades”, Madrid, Bubok Publishing, 2014.

Cultura e Objetividade: Preliminares

In dialectics, history, laicidad, sociologia, sociologia do conhecimento, twentieth century on October 23, 2014 at 2:12 pm

Cultura e Objetividade:livros

Notas sobre Max Weber e Wilhelm Dilthey

Por

Jacob (J.) Lumier

Fragmento de “Cultura e Consciência Coletiva: Leituras Saint-Simonianas de Teoria Sociológica” – Nova Formatação, Internet, E-book Monográfico, 170 págs. Dezembro 2007- Maio 2009, link:

http://www.oei.es/cienciayuniversidad/spip.php?article388

 

 

Preliminares

 

Ao que parece, há uma dificuldade prévia anteposta a todo aquele que se propõe refletir e elaborar sobre a sociologia da cultura e que é um obstáculo relevante do aparente desacordo no tratamento e na definição do campo diferencial do material que lhe corresponde.

A imagem antropocentrista

No século XX a reflexão sobre a cultura foi exercida tanto no marco de uma sociologia dos modelos sociais quanto a partir dos fatos de linguagem. Por um lado, pensadores influentes como Theodor W. Adorno, Walter Benjamim e à sua maneira Herbert Marcuse nos transmitem a imagem de que a sociologia da cultura encontra seu material no impacto das técnicas sobre as artes, sobre a literatura, a vida intelectual e a moralidade. Em consequência a sociologia deve por isso ser exercida como crítica da cultura, tanto mais necessária quanto foi contundente desde os anos vinte a influência de autores e polemistas como Oswald Spengler e sua obra A Decadência do Ocidente, que nos ofereceram uma visão pessimista e altamente elaborada do impacto das técnicas.

Por outro lado, buscando certa distinção entre cultura e civilização, vê-se outra corrente de interpretação nos dizendo que há uma demarcação entre natureza e cultura a ser posta em relevo não nos utensílios, mas na linguagem articulada: linguagem e sociedade sendo, pois, as duas faces dessa distinção.

Consideram os autores dessa corrente que a civilização material e técnica não deveria ser incluída na definição de cultura. Acolhendo ingenuamente uma imagem evolucionista, deixam de lado a realidade da técnica como setor irredutível da práxis, presente onde se fale do Homo Faber, da produção, do desenvolvimento.

Em sua ingênua imagem antropocentrista, lembrando a história natural, chamam técnica o mero uso de utensílios já supostamente encontrado entre os animais superiores, ao que contrapõem a cultura como um traço distintivo da humanidade, abrangendo, é certo, os conhecimentos, a crença, a arte, a moral, o direito, os costumes e todas as aptidões adquiridas pelo homem como membro da sociedade.

Insistem os autores dessa tendência na importância do critério da linguagem como fato, mas, ao invés de acentuar a união prévia como imprescindível ao objeto crítico, o todo existente que torna possível a apreensão dos significados, tomam a linguagem como fato em-si, por ela própria, sem condição prévia.

Aliás, a apreensão da união prévia é reconhecida por sociólogos notáveis. Assim, por exemplo, Bourdieu assinala que o ponto de vista da corrente durkheimeana como interpretação estrutural se opõe à interpretação alegórica: com atenção à prática, trata-se de realizar a intenção de descobrir a lógica imanente do mito ou do rito. Segundo este autor, a contribuição da corrente de Durkheim poderia ser apreciada no marco de “uma teoria da função de integração lógica e social das representações coletivas. Uma teoria segundo a qual a sociedade tem necessidade não apenas de um “conformismo moral”, mas também de um mínimo de “conformismo lógico”, sem o qual não poderia subsistir. Para Durkheim, prossegue o mesmo autor, o primado é para a produção do sentido, que Durkheim vincularia a um entendimento entre os homens, a uma concepção homogênea do tempo, do espaço, da causa, do número, etc., como base prévia de todo o acordo viabilizando a vida em comum (cf.Durkheim, Émile: “Les Formes Elementaires de la Vie Religieuse, p.24; apud BOURDIEU, op.cit, p.29sq).

Desta sorte, os adeptos do estruturalismo linguístico supõem incluídos na própria linguagem como coisa propriamente intelectual os fatos de ordem afetiva, os sentimentos se misturando com frequência às ideias por efeito imediato da linguagem, tornada esta, desta forma, não necessariamente humana ou não enlaçada à experiência humana [i].

Já foi assinalado por Bourdieu que o “estruturalismo etnológico” de Cassirer e de Levy-Strauss tem uma dívida com a corrente durkheimeana que muitas vezes passa despercebida.  Levy-Strauss é censurável pelo seguinte: (a) – por “esquecer-se” de utilizá-lo e sobretudo (b) – por “incluir” o princípio da relação (ou correlação) entre as estruturas dos sistemas simbólicos e as estruturas sociais, princípio do qual se utilizou, “dentre as explicações demasiado fáceis e ingenuamente projetivas – tornadas desprezadas por Levy-Strauss como referências de uma “leitura externa” que ele passou a rejeitar em favor das interpretações alegóricas [Cf. Bourdieu, Pierre: “A Economia das Trocas Simbólicas”, Introdução, organização e Seleção dos originais em Francês por Sérgio Miceli, São Paulo, Editora Perspectiva, 1974, 361págs. Ver pág. 33].

A respeito disso, como emblema dessa tendência particular de sociologia da cultura, que imagina um estruturalismo lógico na base de toda a sociedade, há sobre a linguagem um curioso raciocínio imagético-espacial do antropólogo-social Claude Lévy-Strauss.

Muito mais do que a serventia como procedimento de propedêutica para a lógica relativista, ou visualização de experimentos imaginados em teoria físico-matemática ([ii]), tal raciocínio toma o valor demonstrativo da imagética espacial em uma inadequada aplicação, como se a mesma tivesse alcance conclusivo para uma verificação sociológica [iii].

Uma proposição imaginária e as criaturas lógicas

Trata-se de uma proposição imaginária em que aquele influente autor se refere a uma situação no espaço lógico onde, em um planeta desconhecido, imaginamos encontrar seres vivos que fabricam utensílios: “nem por isso teremos a certeza de que eles se incluem na ordem humana…”. Imagine-se agora que esbarramos com seres vivos que possuem uma linguagem, por mais que essa linguagem seja diferente da nossa, mas que seja traduzível na nossa linguagem, revelando seres com os quais podemos nos comunicar: estaríamos então na ordem da cultura e não mais na ordem da natureza.

Nessa imagética fora de lugar [iv], a linguagem seria então ela própria e sem união prévia o fato cultural por excelência e a sociologia da cultura passaria a estudar o que chamam as formas da cultura – o conhecimento, a própria linguagem, a arte e a literatura, a religião – tomadas como representações coletivas, porém entendidas estas segundo uma versão sui generis.

Ou seja, as representações coletivas constituídas naquelas obras de civilização – imperfeitamente chamadas formas da cultura – representam uma orientação sobre o termo ideologia tirada do mencionado antropólogo-social C. Lévy-Strauss, pela qual não se deve crer que as transformações ideológicas gerem as transformações sociais, mas que somente a ordem inversa é verdadeira: a concepção que os homens formam para si das relações entre a natureza e a cultura é função da maneira como se modificam as suas próprias relações sociais.

Nessa corrente, a ideologia, como linguagem, absorve como se vê as representações coletivas e determina (ou sobre-determina) as formas da cultura, na medida em que a própria ideologia, por sua vez, vem a ser determinada pelas condições materiais.

As referências à Renascença

Seja como for, quer estudemos a sociologia da cultura sob essa tendência pró fatos da linguagem, quer privilegiemos a corrente pró crítica da cultura, ambas influentes no século XX, poderemos lamentar que, tanto em uma quanto em outra, as referências à Renascença restam tópicas, parecendo desligadas de uma reflexão de conjunto voltada para reencontrar a autonomia do mundo da cultura.

Reflexão esta que sem dúvida faz falta a quem lê esses autores, caso se pergunte sobre tal dualidade aparente de orientações e se a mesma poderá ser ultrapassada em abordagem mais aprofundada, notadamente se tivermos em conta que os estudos da Renascença acentuam a diferenciação de um mundo da cultura justamente como o fato novo definindo aquela época, ou melhor, definindo essa época a que somos vinculados à medida mesma que, por ambiguidade, nos aproximamos e nos distanciamos da história passada.

Um problema de metodologia

Em qualquer maneira, não há negar que a utilização da expressão sociologia da cultura encabeçando este nosso ensaio suscita de chofre um problema prévio a toda a verificação de conteúdo passível de atribuir-lhe, suscita um problema de metodologia cujo esclarecimento nos permitirá afirmar se há uma disciplina específica nos termos de tal expressão ou se a mesma é uma variedade equivalente de sociologia das obras de civilização ([v]).

(continua)

Ler Cultura e Objetividade Primeira Parte: Max Weber.pdf

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[i] Aliás, se questiona a afirmação da “existência de um estruturalismo lógico universal na base de toda a sociedade” por acolher sem crítica os preconceitos filosóficos do século XVIII (como o Eu genérico representado na idéia de uma Vontade universal, em Rousseau, ou na idéia de uma consciência transcendental, em Kant, reconhecida como idêntica para todos), pré-concepções filosóficas estas que Claude Lévi-Strauss desconhece em sua imagética da cultura como linguagem.

[ii]         Quem não está lembrado da importância de imaginar um observador movendo-se em meio aos igualmente imaginados trens em movimento para compreender a lógica da teoria da relatividade?

[iii] Em sociologia elaboram-se experiências que são realizadas ou em vias de realização efetiva, verificam-se correlações entre conjuntos dotados de sintaxes, não se constroem teorias sobre experimentos imaginados e equacionados em lógica-matemática, como na física teórica.

[iv] Fora de lugar porque não há comunicação possível fora do psiquismo coletivo, muito menos com criaturas lógicas, como os seres imaginados não-humanos de tal imagética-espacial. Em realidade, toda a língua pressupõe um todo, uma união prévia viabilizando as significações. Ver adiante, às págs.126 sq. a noção de rede simbólica.

[v] No Tratado de Sociologia Vol. II, Georges Balandier assina um esclarecedor ensaio/artigo intitulado “Dinâmica das Relações Exteriores das Sociedades Arcaicas” em que, apreciando “Os Estudos de Contatos Culturais”, nos mostra haver um uso específico e particular aos antropólogos e etnólogos da noção de cultura e da noção de civilização, que são termos por eles utilizados em maneiras equivalentes um ao outro e estritamente vinculados aos problemas da realidade colonial, como implicando os contatos culturais. As noções de cultura e de civilização se referem então aos modelos postos em cotejo nesses estudos, que são voltados para o conhecimento específico das sociedades tradicionais dependentes. Portanto, sob este aspecto, esse uso das noções mencionadas não interessa à sociologia das obras de civilização senão como sociologia aplicada, nada tendo a ver diretamente com o assunto do nosso ensaio.

Formação do Sentimento Coletivo

In dialectics, history, laicidad, laicismo, Politics, portuguese blogs, sociologia, twentieth century on October 20, 2014 at 10:39 pm

Formação do Sentimento Coletivo
Jacob (J.) Lumier
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Sumário
Em todo o microcosmo social há virtualmente um grupo social
Diferença entre os níveis mais cristalizados da consciência coletiva e os níveis mais flutuantes
O problema da formação de um sentimento coletivo
A Imitação e as Relações com Outrem
Relações atuais entre psicologia e sociologia

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Em todo o microcosmo social há virtualmente um grupo social

Reconhecendo a imanência recíproca do individual e do coletivo, para o sociólogo não há psicologia interpessoal fora da psicologia coletiva e esta encontra seu domínio dentro da sociologia.
Deste ponto de vista, a psicologia social de Jacob Levi Moreno (1889 – 1974) situa-se ao mesmo nível dos representantes do formalismo social, que promoveram a redução de qualquer sociabilidade à simples interdependência e interação recíproca, cujos nomes mais conhecidos são: Gabriel Tarde (1843 – 1904), notado por seus debates com o notável Émile Durkheim (1858 – 1917), Georg Simmel (1858 – 1918), e Leopold von Wiese (1876 – 1969).
Na limitada orientação desses autores se preconiza que no nível psicológico da realidade social qualquer interesse está concentrado sobre a psicologia interpessoal em detrimento da psicologia coletiva propriamente dita e, por sua vez, J.L.Moreno seguindo a mesma orientação despreza as funções intelectuais e voluntárias, se limita ao aspecto exclusivamente emotivo e, neste, ao aspecto da preferência e da repugnância, deixando de lado o aspecto mais significante que é a aspiração.
Por contra, reconhecendo a imanência recíproca do individual e do coletivo, para o sociólogo não há como disse psicologia interpessoal fora da psicologia coletiva e esta encontra seu domínio dentro da sociologia. Daí a importância do conceito dialético de grupo como atitude coletiva em sociologia envolvendo as mencionadas três escalas dos quadros sociais – a escala dos Nós-outros (escala microssociológica), a dos grupos e classes (escalas parciais), a das sociedades globais e suas estruturas.
Com efeito, para o sociólogo só é possível falar de grupo quando em um quadro social parcial aparecem as seguintes características: 1) – predominam as forças centrípetas sobre as centrifugas; 2) – os Nós-outros convergentes predominam sobre os Nós-outros divergentes e sobre as diferentes relações com outrem.
Quer dizer, é dessa maneira e nessas condições que o quadro do microcosmo das manifestações de sociabilidade que constitui um grupo social particular pode afirmar-se no seu esforço de unificação como irredutível à pluralidade das ditas manifestações. Daí a percepção desenvolvida na sociologia diferencial de que em todo o microcosmo social há virtualmente um grupo social particular que a mediação da atitude coletiva faz sobressair .
O grupo é uma unidade coletiva real, mas parcial, que é observada diretamente, como já foi dito. Essa unidade é fundada exatamente em atitudes coletivas contínuas e ativas; além disso, todo o agrupamento social particular tem uma obra comum a realizar, encontra-se engajado na produção das “idéias” como o direito, a moral, o conhecimento, etc., de tal sorte que sua objetivação se afirma, reiteradamente, como “unidade de atitudes, de obras e de condutas”, advindo dessa característica objetivação que o grupo se constitua como quadro social estruturável, com tendência para uma coesão relativa das manifestações da sociabilidade.
Nota-se, então, no conjunto dos agrupamentos particulares, uma dialética entre a independência e a dependência a respeito do modo de operar da sociedade global. Dessa forma observa-se que os grupamentos mudam de caráter em função dos tipos de sociedades globais em que se integram conforme hierarquias específicas, notadamente conforme a escala dos agrupamentos funcionais .
Sabemos que Durkheim e seus colaboradores já na primeira metade do século XX tomaram em consideração a existência de memórias coletivas múltiplas acentuando que as consciências individuais se revelam penetradas pelas memórias coletivas (Maurice Halbwachs).
►Durkheim ele próprio em debate com Gabriel Tarde ao insistir que não se pode desconhecer a descontinuidade e a contingência que diferenciam as esferas do real se posiciona sobre a referência das funções cerebrais na vida da consciência, como que antecipando a preocupação das chamadas ciências cognitivas.
Assim em seu estudo sobre Les Représentations Collectives et les Représentations Individuelles, estudo posteriormente inserido na sua obra Philosophie et Sociologie, pressentindo a dialética ao argumentar por analogia sobre a autonomia relativa nas relações entre a consciência coletiva e a consciência individual, Durkheim deixa claro sua recusa em reabsorver a consciência coletiva nas consciências individuais nos dizendo que isto equivaleria a reabsorver o pensamento na célula e retirar à vida mental toda a especificidade.
Certamente já se sabe hoje em dia que a descontinuidade diferenciando a consciência individual das células do cérebro não é idêntica àquela que diferencia a consciência coletiva da consciência individual. Apesar de suas variadas implicações, o psíquico e o biológico ou orgânico pertencem a esferas do real mais ou menos disjuntas, admitindo sobreposição, enquanto que, pelo contrário, a consciência coletiva e a consciência individual são manifestações da mesma realidade, estudada segundo Gurvitch como fenômeno psíquico total (Mais informação em Lumier, Jacob (J): “Psicologia e Sociologia: o sociólogo como profissional das ciências humanas”)
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Diferença entre os níveis mais cristalizados da consciência coletiva e os níveis mais flutuantes.

Quanto aos argumentos fundados na preexistência da consciência coletiva encontram-se notadamente na obra Le Suicide e são observados a partir da crítica à psicologia interpessoal da imitação proposta por Gabriel Tarde, notando-se que, nessa crítica, Durkheim chega a tornar mais precisa a relação entre a consciência coletiva e as consciência individuais.
Com efeito, sobressaem as seguintes afirmações: (a) – que as tendências e as paixões coletivas são forças sui generis que dominam as consciências particulares; forças tão reais quanto as forças cósmicas, embora de outra natureza e agindo igualmente do exterior sobre os indivíduos, mas por outras vias; (b) – desta sorte, os estados coletivos existem no grupo, de cuja natureza derivam, antes de afetarem o indivíduo como tal e de organizarem nele … uma existência puramente interior (por exemplo, é só pouco a pouco que a força arrastando ao suicídio penetra o indivíduo); (c) – essa exterioridade da consciência coletiva – a qual segundo Durkheim resulta da própria heterogeneidade da mesma – e que se manifesta no fato do psiquismo existir antes de penetrar nas consciências individuais, nada tem a ver com a materialização do psiquismo na base morfológica da sociedade, nem com a cristalização do mesmo psiquismo nas instituições, nem com a sua expressão em símbolos jurídicos, morais e religiosos .
Aliás, nesta obra de Durkheim datada em 1897 (Le Suicide) se põe em relevo a percepção clara a respeito da diferença entre os níveis ou camadas mais cristalizados da consciência coletiva e os níveis mais flutuantes, notando que estes últimos não se deixam aprisionar na objetividade.
(d) – Com efeito, Durkheim afirma haver toda uma vida coletiva que está em liberdade: todas as espécies de correntes vão, vem, circulam em todas as direções, cruzam-se e misturam-se em mil maneiras diferentes precisamente porque estão em perpétuo estado de mobilidade e não conseguem revestir-se de uma forma objetiva (por exemplo, se hoje é um vento de tristeza e desencorajamento que se abate sobre a sociedade, amanhã, pelo contrário, um sopro de alegre confiança virá levantar os ânimos).
Quer dizer, (e) – os níveis ou camadas mais cristalizados da consciência coletiva, compreendendo as condutas regulares, as “instituições”, as estruturas sociais, os próprios preceitos morais e jurídicos exprimem apenas uma parte da vida subjacente da consciência coletiva, resultam dela, mas não a esgotam; (f) – na base da vida subjacente da consciência coletiva mais cristalizada (subjacente inclusive às consciências individuais) há sentimentos atuais e vivos que as camadas mais cristalizadas resumem, mas dos quais são apenas o invólucro superficial. Tais camadas cristalizadas não despertariam qualquer ressonância se não correspondessem a emoções e a impressões concretas. E Durkheim sentencia: não se deve, pois, tomar o signo pela coisa significada.
Desta forma, não se deixa passar em silêncio a alta relevância para a sociologia realista dessas observações de Durkheim a respeito da diferença entre os níveis ou camadas mais cristalizados da consciência coletiva e os níveis mais flutuantes a nos lembrar que se trata de uma antecipação do conceito sociológico de fenômenos sociais totais aplicado por Marcel Mauss e desenvolvido por Gurvitch.
Quer dizer, Durkheim nega que a exterioridade da consciência coletiva em relação à consciência individual possa ser interpretada como projeção da própria consciência coletiva no mundo exterior ou em imagens espacializadas (por exemplo, como interação entre as consciências, como repetição) ou então que a fusão dessas consciências corresponda a uma síntese química, como ele próprio o dirá.
O problema da formação de um sentimento coletivo.

►Voltando neste ponto ao debate de Durkheim e Gabriel Tarde, a análise proposta por Gurvitch põe em relevo o interesse sociológico como referido sobretudo ao problema da formação de um sentimento coletivo.
Na efervescência dos grupos não há nem modelo nem cópia, mas fusão de certo número de estados psíquicos no seio de outro que deles se distingue e que é o estado coletivo: em vez de imitação se deveria falar de criação, visto que desta fusão resulta algo novo – resulta um sentimento coletivo – sendo este processus o único pelo qual o grupo tem a capacidade de criar.
Gurvitch assinala que, não obstante a notável precisão introduzida por Durkheim em sua obra “Le Suicide” ao afirmar que as camadas cristalizadas não despertariam qualquer ressonância se não correspondessem a emoções e a impressões concretas, o problema do sentido exato dos termos exterioridade ou transcendência do psiquismo coletivo, que se acrescenta ao termo irredutibilidade ou ao termo heterogeneidade resta não esclarecido, observando-se ambigüidades e insuficiências.
Sem dúvida, na refutação da psicologia interpessoal da imitação proposta por Gabriel Tarde, Gurvitch concede que Durkheim distinga (a) – a participação ou a procedência da imitação na consciência coletiva e (b) – faz sobressair toda a oposição sociológica entre fusão ou penetração das consciências e a sua simples interação ou interdependência.
►Todavia, há que destacar o desconhecimento tanto por Durkheim quanto por Tarde de que o fenômeno essencial da psicologia coletiva e que a insere no domínio da sociologia é a imanência recíproca e a dialética entre as consciências coletivas e as consciências individuais.
Com efeito, Durkheim se opõe ao alargamento do termo imitação e à sua utilização em sentido ampliado. Ou seja, repelia a utilização do termo imitação para designar (a) – fosse o processus pelo qual no seio de uma reunião de indivíduos se elabora um sentimento coletivo, (b) – fosse o processus de que resulta a adesão social às regras comuns ou tradicionais de conduta.
A sugestão por Gabriel Tarde de que a psicologia social podia ser reduzida ao termo imitação desdobra-se na afirmação de imitação recíproca “de um por todos e de todos por um” nas assembléias das cidades; bem como na afirmação de imitação dos costumes cujos modelos seriam os nossos antepassados para designar a nossa adesão às regras – havendo também uma sorte de imitação dos modos cujos modelos seriam os nossos contemporâneos.
Por sua vez, Durkheim houvera entendido imitação em sentido estrito e aceitava a sua aplicação como designando a reprodução automática por repetição do estado de consciência de um indivíduo por algum outro indivíduo, incluindo a reprodução de um movimento feito por algum semelhante.
►Nada obstante, Durkheim repelia qualquer alcance social nesta reprodução automática e negava qualquer influência coletiva. Vale dizer, Gurvitch assinala como sendo durkheimiana a noção bem delimitada de imitação e bem exclusiva, no sentido de que a imitação dispensa qualquer comunidade intelectual ou moral entre dois sujeitos, não sendo necessário nem que permutem serviços, nem que falem a mesma língua para a imitação.
Seria, portanto, ilegítimo designar por imitação a submissão aos modos e aos costumes, assim como a participação na efervescência coletiva, pois em ambos os casos trata-se de manifestações da consciência coletiva.
Na efervescência dos grupos não há nem modelo nem cópia, mas fusão de certo número de estados psíquicos no seio de outro que deles se distingue e que é o estado coletivo: em vez de imitação se deveria falar de criação, visto que desta fusão resulta algo novo – resulta um sentimento coletivo – sendo este processus o único pelo qual o grupo tem a capacidade de criar.
Em complementaridade, o posicionamento durkheimiano afirma igualmente que conformar-se com os costumes e os modos nada tem a ver com imitação, que neste caso é somente aparente: o ato reproduzido é tal não por se ter verificado na nossa presença ou com o nosso consentimento. Nossa adesão à regra se dá em virtude do respeito inspirado pelas práticas coletivas e por causa da pressão da coletividade sobre Nós-outros para evitar a dissidência. Ao contrário de imitação, conformar-se com os costumes é estar consciente da existência da consciência coletiva e inclinar-se perante ela.

A Imitação e as Relações com Outrem

Mas não é tudo. Em sua análise sociológica crítica, Gurvitch observa ademais certa incoerência dentre as seguintes orientações em que (a) e (b) são insuficiências e (c) é positiva, seguintes:
(a) – Gabriel Tarde e Durkheim pressupõem em primeiro lugar que as consciências individuais perfeitamente isoladas podem entrar em contato independentemente de qualquer recurso à consciência coletiva;
(b) – pressupõem em segundo lugar que a reprodução imitativa pode não ser reduzida a fenômenos de reprodução automática ou “contágios” – aplicáveis aos animais como ao homem e que se afirmam fora da vida social;
(c) – pressupõem em terceiro lugar e esta é a orientação positiva que tal reprodução imitativa pode ser fundamentada em signos e símbolos – aspecto este desenvolvido segundo Gurvitch pelo notável psicólogo social americano G.H. Mead em sua obra “Mind, Self and Society”, de 1934.
Assim, a respeito dessa terceira pressuposição e em acordo com a análise de Gurvitch, podemos dizer que, ao se imitar, por exemplo, não o “espirro” ou o temor de outro, mas sim os seus gestos, as suas condutas conscientes, as suas opiniões, os seus atos refletidos, os seus juízos, etc. a imitação pressupõe a comunicação das consciências por meio de sinais e símbolos – e essa comunicação simbólica pressupõe por sua vez a fusão ou a interpenetração prévia das consciências, isto é: pressupõe uma consciência que dê aos signos simbólicos significações idênticas para os participantes.
►Mas não é tudo. Gurvitch sublinha que nenhum contato, nenhuma interdependência, nenhuma imitação distinta do simples “contágio” são possíveis entre as consciências individuais de outra forma que não seja no plano ou no horizonte da consciência coletiva. Durkheim se equivoca quando, por efeito de sua argumentação contra Tarde levando-o a reduzir a imitação à reprodução automática, chega à conclusão de que a psicologia interpessoal é inexistente e não passa de outro nome para a psicologia individual tradicional.
Por contra, Gurvitch admite dentro da sociologia uma psicologia interpessoal e intergrupal em conexão com a psicologia coletiva. Nota que a existência dos Nós-outros, por um lado, dos Eu e de Outrem, por outro lado, leva a reconhecer as relações mentais com outrem, isto é, as relações psíquicas entre Eu, Tu, ele e entre os diferentes Nós-outros, sublinhando que essas relações pressupõem a realidade muito mais complexa e rica das manifestações da sociabilidade.
Enfim, diante de Gabriel Tarde, Gurvitch assinala que o estudo da imitação põe o problema da realidade do outro, o alter ego, assim como o problema da validade dos signos e símbolos, cuja solução conduz necessariamente ao estudo sociológico dos Nós-outros na vida dos grupos sociais, bem como o estudo dos atos e estados mentais coletivos ou que são manifestações da consciência coletiva .
►Mas a análise sociológica dos fenômenos da consciência prossegue e põe em questão a aplicação das imagens espacializadas, sobretudo as da interação entre as consciências, a da repetição ou a comparação da fusão das consciências individuais a uma síntese química, imagens espacializadas estas que destroem a especificidade extra-espacial e total da vida psíquica.
Deste ponto de vista, por contra, se distingue em acordo com Gurvitch os fenômenos da psicologia interpessoal e intergrupal, por um lado, e por outro lado os fenômenos da psicologia coletiva propriamente dita, sublinhando que se trata de duas espécies de fenômenos que não se excluem e estão profundamente unidos.
Vale dizer, os casos em que as consciências comunicam somente por signos e símbolos, por expressões mediatas e convergem ficando mais ou menos fechadas – tais os fenômenos da psicologia interpessoal e intergrupal – não podem ser consideradas em maneira excludente em relação aos outros casos em que as consciências podem interpenetrar-se diretamente, por meio de intuições mais ou menos atuais originando freqüentemente as fusões parciais de consciências abertas tendo por quadros sociais os Nós-outros , tais os fenômenos da psicologia coletiva propriamente dita.
Repelindo em definitivo a aplicação de imagens espacializadas, a unidade dessas duas espécies de fenômenos representando aspectos do que chama fenômenos psíquicos totais baseia-se no seguinte: (a) que os fenômenos da psicologia interpessoal, especialmente a comunicação simbólica, são inseparáveis da psicologia coletiva porque as relações entre Eu e Outrem assim como a validade dos signos mediatos ou signos simbólicos pressupõem a presença atual ou virtual do Nós-outros sob o seu aspecto mental; (b) – que, em contrapartida, é por intermédio do psiquismo interindividual e intergrupal que a consciência coletiva alarga freqüentemente o círculo da sua influência e atrai, por vezes, novas participações.
A insuficiência da aplicação do princípio da imanência recíproca e da implicação mútua por Durkheim nestes pontos explica sua conclusão em favor da preexistência da consciência coletiva como se afirmando antes de afetar a consciência individual e penetrar no seu interior.
Em acordo com Gurvitch este argumento pressupõe equivocadamente o isolamento entre as duas consciências, a individual e a coletiva, isolamento contrário a qualquer experiência psicológica e que só é possível de conceber na contramão da imanência recíproca e da implicação mútua pela aplicação simplista à vida psíquica dos esquemas imagéticos espaciais (imagine duas substâncias químicas…, imagine duas pessoas…, etc.).
Ademais, evitando o refúgio metafísico a que tal argumento da preexistência da consciência coletiva o levaria, e não se deixando conduzir para além de uma ciência efetiva como o é a sociologia, Durkheim (apesar de seu sociologismo da metamoral já mencionado) admitirá que as consciências individuais – pelo menos elas – seriam imanentes à consciência coletiva, mas sem que a recíproca fosse verdadeira.
Será por esse desvio que Durkheim afirmará ao final de sua polêmica com Gabriel Tarde a constatação da riqueza incomparável da consciência coletiva – da qual as consciências individuais não poderiam entrever senão ínfimas partes.

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Relações atuais entre psicologia e sociologia

►Gurvitch põe em questão o obstáculo da introspecção e a falta de êxito em ultrapassá-lo pelo behaviorismo e pela psicanálise.
Quanto às observações de Gurvitch em vista de chegar a uma orientação para tornar a pôr o problema das relações atuais entre psicologia e sociologia mediante a aplicação dos procedimentos operativos dialéticos, três pontos são sucessivamente destacados: (a) – que a psicologia individual, a psicologia interpessoal e a psicologia coletiva são interdependentes; (b) – que a impossibilidade em se estabelecer uma alternativa entre psicologia individual e psicologia coletiva salta aos olhos diante do problema da comunicação; (c) – que os métodos da psicologia moderna devem ser combinados e aplicados aos fenômenos psíquicos totais para que essa psicologia venha a obter resultados positivos.
A questão de saber se é válido ou não reduzir a psicologia à sociologia ou a sociologia à psicologia tornou-se clássica e pode ser observada nos debates dos sociólogos (por vezes também entre os psicólogos) desde a constituição da sociologia chegando a alcançar o século XX. Aliás, a trajetória dessa questão por si só já sugere a compreensão da psicologia coletiva como ramo da sociologia.
Segundo Gurvitch, um dos fundadores da sociologia no século XIX que não concedeu à psicologia lugar algum em sua classificação das ciências, August Comte não só admitia a existência do psiquismo, mas pensava que a sociologia podia solucionar qualquer problema decorrente das manifestações do psíquico. Já Herbert Spencer e Stuart Mill que a reconheceram não marcaram com precisão as relações da psicologia com a sociologia.
Em Karl Marx a questão permanece em aberto, embora Gurvitch entenda que o conceito de consciência real simultaneamente coletiva e individual e tomada como oposta à ideologia – sendo esta produto da consciência mistificada – juntamente com o estudo da tomada de consciência como elemento constitutivo de uma classe social delineiam para Marx o objeto de uma disciplina especial – a psicologia coletiva – que, ademais, Henri Lefébvre designou Psicologia das Classes Sociais .
Em Gabriel Tarde a sociologia pode ser reduzida à psicologia simultaneamente individual e interindividual, que Gurvitch prefere designar psicologia intermental. Por contra Durkheim nega a possibilidade de reduzir ao mental e ao psíquico toda a realidade social tendo em conta a afirmação nesta última da base material da sociedade, a morfologia, juntamente com a afirmação das organizações e das instituições com seus modelos, símbolos, valores coletivos mais ou menos cristalizados e encarnados.
Além disso, ao contrário do posicionamento de Tarde, para Durkheim é somente como parte integrante da realidade social que a vida mental ou psíquica pode interessar à sociologia, isto é, como mentalidade coletiva. Entendia a psicologia coletiva como ramo da sociologia e preconizava a fusão na sociologia da psicologia individual ou intermental – distinguida da psicopatologia e da psicologia fisiológica.
Quanto à análise das tendências mais recentes da psicologia moderna, Gurvitch põe em questão o obstáculo da introspecção e a falta de êxito em ultrapassá-lo pelo behaviorismo e pela psicanálise. Sublinha, aliás, que tomar a introspecção como obstáculo é a atitude própria da sociologia sendo essa atitude que se encontra na origem da desclassificação da psicologia por Comte e por Durkheim.
Desta forma, cabe assinalar o fracasso dos sociólogos que, seja adotando o behaviorismo, seja adotando a psicanálise, seja os dois combinados tentaram dotar a sociologia com uma nova metodologia. Segundo Gurvitch, essa tentativa de renovação acabou por se traduzir em um retorno a posições que lembram Gabriel Tarde: a sociologia behaviorista ou psicanalítica não conseguiu desligar-se da psicologia individual. É o caso de autores como Pavlov e Watson que desenvolveram o behaviorismo e os sociólogos Floyd Allport, Read Bain, Georges Lundberg e outros que o aplicaram à sociologia.
Ademais, a introdução da noção de excitantes sociais e de reações fundadas sobre a reflexão não alterou o fato de que o behaviorismo permaneceu uma teoria psicofisiológica orientada exclusivamente para o indivíduo.
Gurvitch nos oferece um exemplo cabal da insuficiência fundamental do behaviorismo aplicado à sociologia pondo em relevo o disparate a que se chega ao se excluir o alcance prioritário dos símbolos sociais para a compreensão dos comportamentos.
Opõe-se nosso autor à tese dos juristas behavioristas norte-americanos ao afirmarem que o direito não é senão o comportamento do juiz em um tribunal. Toma como exemplo o fato de que o indivíduo humano tem manifestações comportamentais de ordem fisiológica (espirra, se assua, cospe) e que as incluindo em conseqüência o comportamento do juiz não produz em modo algum direito.
Quer dizer, para que esse efeito de produzir direito seja verificado é preciso que a conduta do juiz seja penetrada por certo conjunto de símbolos sociais. O comportamento simbólico do juiz depende muito mais das significações sociais jurídicas do que de uma criação pessoal. Tal o limite da estreita concepção behaviorista.
O círculo vicioso da mentalidade individual exclusiva limitando a psicologia social tentada por Freud prende-se à origem nitidamente fisiológica observada na psicopatologia do desejo sexual.
Já quanto à análise crítica da psicanálise podemos notar que o círculo vicioso da mentalidade individual exclusiva assinalado por Gurvitch como limitando a psicologia social tentada pelo próprio Freud prende-se à origem nitidamente fisiológica observada na psicopatologia do desejo sexual da qual partiu o pensamento do fundador da psicanálise.
A psicologia social em base psicanalítica é limitada e circunscreve-se aos estados psíquicos individuais. As relações sociais que afetam esses estados individuais são concebidas por Freud sob a forma de projeções subjetivas do “Id” (Isto) e do “Superego”. Gurvitch destaca que este pensador procura sempre explicar a vida social pela libido, pelos recalcamentos e complexos, assim como pelos conflitos entre os desejos individuais e os comportamentos sociais, tidos estes comportamentos como dominados pelos modelos culturais.
Nada obstante, o limite da mentalidade individual exclusiva veio a ser ultrapassado por alguns discípulos de Freud – como Eric Fromm, Horney e Kardiner – que, ao tentarem combinar as idéias da psicanálise umas vezes com Marx, outras vezes com a teoria dos papéis sociais tornaram estabelecidos laços funcionais indissolúveis entre a pessoa humana e a realidade social, bem como entre a mentalidade individual e a mentalidade coletiva .
Entretanto essa adaptação da psicanálise à sociologia não significou a ultrapassagem completa da discussão sobre a relação entre psicologia e sociologia, embora seja sabido que ninguém mais considera tal questão sob a forma de alternativa.
Um bom exemplo é Kardiner que segundo Gurvitch (a) – lembra as concepções de Gustave Lebon, Pareto e Sorel, (b) – desconheceu a sociologia e a psicologia coletiva desenvolvida por Durkheim e seus colaboradores interessando em modo especial a psicologia coletiva da inteligência (estudo das representações coletivas, memória coletiva, categorias e classificações lógicas), (c) – desconheceu a psicologia desenvolvida pelo norte-americano G.H. Mead igualmente orientada para a psicologia coletiva da inteligência, (d) – teve recaídas em posições simplistas ao afirmar que só a psicologia da vida afetiva e emocional é a única que está diretamente em relação com a sociologia.
Retornando à tentativa gurvitcheana para formular em nova maneira com vistas à colaboração as relações atuais entre a psicologia e a sociologia sobressai a compreensão oferecida por Marcel Mauss em seu discurso sobre “As Relações Reais e Práticas da Psicologia e da Sociologia” .
Segundo Gurvitch o valor exemplar desse texto consiste (a) – em ter proclamado o fim da competição entre psicologia e sociologia mostrando que as duas disciplinas vão buscar uma à outra os seus conceitos e a sua terminologia, incluindo as noções de expectativa, símbolo, mentalidade, atitude, papel social, ação, etc.; (b) – em ter proclamado igualmente o fim da oposição entre a psicologia coletiva e a psicologia individual.
A penetração do social no psicopatológico é um fato conseqüente não só para a psicologia patológica, mas igualmente para a psicologia fisiológica.
Com efeito, contra essa oposição afirma-se a idéia de que o social penetra no psicopatológico e que essa penetração do social é um fato conseqüente não só para a psicologia patológica, mas igualmente para a psicologia fisiológica.
Gurvitch nos lembra o parecer dos psiquiatras segundo o qual as neuroses têm sua origem não só em uma integração insuficiente na vida social, mas em modo especial as neuroses ocorrem lá onde se constata a desadaptação entre os papéis sociais representados e as capacidades efetivas dos pacientes.
Além disso, para reforçar o fim da competição entre psicologia e sociologia Gurvitch assinala uma linha de pesquisa voltada ao estudo da medida pela qual o social age sobre o fisiológico, seguinte: (a) – desenvolvida por Marcel Mauss em seu estudo sobre “As Técnicas do Corpo”; (b) – assinalada nas observações de Robert Hertz sobre a origem social da preeminência da mão direita; (c) – reconhecida pelas definições de Charles Blondel segundo as quais (c1) – o psíquico se encontra situado entre o corpo e a sociedade, (c2) – a consciência mórbida dos doentes mentais representa a dissociação social do psíquico e do consciente.
Nota-se igualmente a não competição entre psicologia e sociologia nas observações dos sociólogos sobre o alcance das interdições religiosas que permanecem profundamente enraizadas na mentalidade psicopatológica. Assim, por exemplo, em relação a pacientes sob o domínio desses interditos, nota-se como eficácia social das religiões, que os mesmos podem ser impedidos de cometer o suicídio se este é proibido em sua religião.
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©2009 by Jacob (J.) Lumier
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SSF/RIO: A Tecnificação e o imaginário psicologista do individualismo

In dialectics, history, sociologia, sociologia do conhecimento, twentieth century on June 3, 2014 at 6:16 pm

A Tecnificação e o imaginário psicologista do individualismo.

 

A Tecnificação e o imaginário psicologista do individualismo

Por

Jacob (J.) Lumier

 

Há na literatura sociológica uma noção extensiva de tecnificação aplicada para designar o aprofundamento na utilização das técnicas mecanizadas no mundo do trabalho.

Desta forma, agrupam-se sob o termo tecnificação várias alterações com características diferentes, seguintes:

(a) – as mudanças que incidem sobre a força de trabalho, assinalando o surgimento de inúmeras especializações e funções anteriormente inexistentes, surgidas com as novas exigências de qualificação profissional que superam os parâmetros antes validados pelo fordismo/toyotismo, requisitando trabalhadores flexíveis em sua formação e atuação nas empresas, procurando-se valorizar o desenvolvimento de competências técnicas, culturais e sociais;

(b) – as mudanças que incidem sobre os atributos técnicos para o desenvolvimento dos processos produtivos, notando que os segmentos industriais ou de serviços passam a necessitar trabalhadores capacitados para exercer funções diversificadas no ambiente laboral com agilidade no domínio das tecnologias de ponta, destreza para manusear máquinas e equipamentos sofisticados;

(c) – as que incidem sobre a capacidade intelectual para dominar os procedimentos de gerenciamento desenvolvidos pelos novos programas de qualidade e melhoramento dos processos de produção.

Em realidade, o que interessa mais de perto ao sociólogo como profissional atuante sobre a tensão do plano organizado e do espontaneismo social é a crítica à tecnificação dos “controles” ou propriamente regulamentações sociais (estatuídas ou não). Isto é, frequentemente a tecnificação do saber no mundo da produção decorre da intervenção dos novos programas de melhoramento sobre os procedimentos de coordenação e gerenciamento.

Neste sentido, embora pressupondo a subordinação às máquinas que acompanha a introdução, o desenvolvimento pelo fordismo e o taylorismo, e o aprofundamento das técnicas mecanizadas nas fábricas (inclusive com o concurso de tecnologias eletrônicas), a tecnificação em sentido estrito é diferenciada como certa maneira de manipular o conhecimento socialmente efetivo: é a tecnificação do saber como “controle” ou regulamentação social – Ver meu artigo O Saber como ControleSocialteclando aqui.

 

Ou seja, a tecnificação dos controles que atinge as relações humanas nas organizações, sobretudo visa desmontar as sintaxes existentes para impor os esquemas previamente definidos.

Portanto, o que o sociólogo põe em questão é a primazia lógica na concepção e no modo de intervenção dos programas de melhoramento. O que conta não é o conteúdo desses programas em seus propósitos ideológicos, não são as representações de modelos organizacionais idealizados que os inspiram sob a forma de presumidas teorias administrativas.

Há, nos mesmos, um desejo de manipular o conhecimento já aplicado nas sintaxes em vigor social, em uso nas ambiências onde as práticas gerenciais se desenvolveram e foram assimiladas no histórico dos planejamentos (como acervo de procedimentos).

Daí, nos programas de melhoramento, por sua vez, a relevância das pesquisas ou dos levantamentos de informações como ferramentas para a tecnificação do saber e a consequente imposição de esquemas prévios, no molde dos formulários que intervêm sobre a compreensão das funções (atribuições, tarefas, hierarquias), exigindo do grupo a submissão aos mapeamentos previamente definidos e muitas vezes estranhos aos vocabulários operativos em uso.

O que caracteriza esses programas é que são aplicados não só como intervenções exógenas e de cima para baixo, mas é o fato de que os mesmos deixam de lado a possibilidade de vincular suas intervenções ao desenvolvimento espontâneo das expectativas.

Como sabe o sociólogo, a possibilidade de integrar um programa de melhoramento ao desenvolvimento espontâneo é assegurada graças ao fato comprovado em sociologia de que as expectativas ligam-se ao esforço coletivo antes de se ligarem aos papéis sociais, no caso, ligam-se ao histórico dos planejamentos .

Ao desprezarem esse conhecimento sociológico, os tecnocratas aplicadores dos programas de melhoramento procedem à imposição de esquemas prévios.

►Mas não é tudo. Em sociologia os posicionamentos criticados devem ser tratados igualmente como fatos sociais. Desta sorte, se os programas de melhoramento impositivos desfavorecem a sociabilidade humana, têm caráter tecnocrático e aplicam esquemas previamente concebidos (tirados que sejam de alguma “teoria de administração”) é porque em tais aplicações encontra-se projetada a mentalidade (burocrática) subjacente às condutas preestabelecidas, impostas nos regulamentos e hierarquias estatuídas dos aparelhos organizados.

Nessa mentalidade conformada ao que é preestabelecido tem-se uma falsa compreensão das relações humanas e, ao invés de percebidos como integrantes de um Nosotros, os outros são reduzidos ao imaginário psicologista. Daí a pouca relevância atribuída às experiências efetivas que o grupo acumulou, deixando-se como negligenciáveis juntamente com a sintaxe existente o mencionado histórico (acervo) de suas práticas, de seus modelos e seus procedimentos anteriormente desenvolvidos na organização produtiva (em vigor na sintaxe existente).

Portanto, aplicam-se aqui as observações tiradas da fórmula filosófica atribuída a Cícero que o notável sociólogo C. Wright Mills comenta diferenciando um imaginário psicologista, por sua vez descrito como interação mais ou menos lúdica de três pessoas (Cf. C.Wright e Gerth, Hans: Caráter e estrutura social: a psicologia das instituições sociais, tradução Zwinglio Dias, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1973, 508 págs).

Quer dizer, na mentalidade conformada, que se resigna à imposição das condutas preestabelecidas, as relações humanas são vistas pelo filtro de tal imaginário psicologista e podem ser resumidas em um jogo individualista e atomizante em que três imagens pessoais recobrem a realidade social, a saber: a “pessoa” que alguém “pensa” ou se representa que é, a que os outros “pensam” que ele é, a que julga ou supõe que os outros “pensam” que ele seja. Todo o domínio da psicologia individualista se resume neste imaginário interpessoal feito de avaliações arbitradas nas preferências subjetivas ou veleidades projetadas sobre os outros e, igualmente, feito de auto-avaliações que apenas refletem o caráter preestabelecido das regulamentações e das condutas hierarquizadas dos aparelhos.

Teorizado ou não, trata-se de um imaginário frequentemente supervalorizado nas técnicas utilizadas nos treinamentos corporativos, incluindo os psicodramas ou sociodramas (concebidos na sociometria de J. L. Moreno).

Indiferente à realidade social que esconde de si, nesse imaginário psicologista a consciência mantém-se mais ou menos fechada sobre si, com tendência à introspecção, lança imagens ao exterior de onde as recebe, de tal sorte que essa perpétua interação de auto-imagens entre indivíduos atomizados gira como uma condenação, isto é, diretamente centrada na ansiedade da natureza humana, aquém de toda a aspiração coletiva.

  1. – Retornando à orientação do sociólogo e valorizando o conhecimento de que as expectativas ligam-se ao esforço coletivo antes de se ligarem aos papéis sociais, cabe repetir que o aproveitamento dohistórico dos planejamentos adquire então alta relevância. Tanto mais que, no sentido abrangente deste termo, como sintaxe social, são incluídos os mapas das coordenações setoriais, os mapas estratégicos dos departamentos, as formulações de missões e objetivos da empresa, enfim todos os instrumentos de controle operativo das funções nos mais diversos níveis de uma organização produtiva.

O sociólogo se opõe à tecnificação do saber repelindo o caráter prévio e a-priori concebidos dos esquemas aplicados naqueles programas impositivos de melhoramento. Portanto, são esquemas elaborados à revelia e a contrapelo da realidade social existente (que, disso consciente ou não, a tecnocracia deseja manipular). Tal é o estranhamento da pertença à sua realidade social daí decorrente, a perda de percepção dos temas coletivos reais (Nosotros, grupos, classes, sociedades) tornada a ambiência coletiva não só indiferente, mas insignificante, ensejando daí igualmente uma situação nociva à vida social e às relações humanas que o sociólogo busca evitar, sanear e ultrapassar em vista de esquivar-se à sempre possível reificação da realidade social.

►Com efeito, Berger e Luckmann nos mostram que os universos simbólicos são passíveis de cristalização segundo processos de “objetivação, sedimentação e acumulação do conhecimento”. Levam a um mundo de produtos teóricos que, todavia, não perde suas raízes no mundo humano, de tal sorte que os universos simbólicos se definem como produtos sociais que têm uma história.

Desse modo, se quisermos entender o significado dos produtos teóricos temos de entender a história da sua produção, em termos de objetivação, sedimentação e acumulação do conhecimento. Isto é viável se tiver em conta que, em face da cristalização dos simbolos, a “função nômica” do próprio universo simbólico põe cada coisa em seu lugar certo, permitindo ao indivíduo retornar à realidade da vida cotidiana.

Nas objetivações em que as teorias são observadas com a função nômica pergunta-se até que ponto uma ordem institucional ou alguma parte dela é apreendida como uma faticidade não-humana, sendo essa a questão da reificação da realidade social.

Trata-se de saber se em uma situação com hierarquia organizacional e condutas cristalizadas o homem ainda conserva a noção de que, embora objetivado, o mundo social foi feito pelos homens e, portanto, pode ser refeito por eles. É a reificação como grau extremo do processo de objetivação, extremo esse no qual o mundo objetivado perde a inteligibilidade e se fixa como uma faticidade inerte. Os significados humanos são tidos, então, em opacidade, como produtos da natureza das coisas.

Deve-se ter em conta que a reificação é possível no nível pré-teórico e no nível teórico da consciência: os sistemas teóricos complexos podem ser descritos como reificações, embora presumivelmente tenham suas raízes em reificações pré-teóricas – a reificação existe na consciência do homem da rua e não deve ser limitada às construções dos intelectuais. Tal a dialética interligando a sociologia do conhecimento e a psicologia coletiva.

Em relação ao aspecto moral, admite-se que seria um engano considerar a reificação como uma perversão de uma apreensão do mundo social originariamente não-reificada: a apreensão original do mundo social é consideravelmente reificada, tanto em nível formativo da linguagem quanto da realidade.

Em contrapartida, prosseguem Berger e Luckmann, a apreensão da própria reificação como modalidade da consciência depende de uma desreificação ao menos relativa da consciência, exigência sociológica esta que é um acontecimento comparativamente tardio.

Completando seu esquema de análise em intenção da intervenção do sociólogo, os autores mencionados notam que as instituições podem ser apreendidas em termos reificados quando se lhes outorga um status ontológico independente da atividade e da significação humanas. Quer dizer, através da reificação o mundo das instituições parece fundir-se com o mundo da natureza.

Da mesma maneira, os papéis sociais podem ser reificados e tornarem-se alheios ao reconhecimento, de tal sorte que o setor da autoconsciência que foi objetivado num papel é então também apreendido como uma fatalidade inevitável, podendo o indivíduo estranhado negar qualquer responsabilidade no círculo das suas relações (no sentido da identificação idiopática, afirmando a consciência do sujeito que identifica consigo próprio a Outrem ou a um Nosotros).

Quer dizer, a reificação dos papéis estreita a distância subjetiva que o indivíduo pode estabelecer entre si e o papel que desempenha. E os autores completam: a distância implicada em toda a objetivação se mantém, evidentemente, mas a distância subjetiva atingida vai se reduzindo até o ponto de desaparecer A conclusão é de que a análise da reificação serve de corretivo padrão para as tendências reificadoras do pensamento teórico em geral, e do pensamento sociológico em particular. Cf. Berger, Peter e Luckmann, Thomas: “A Construção Social da Realidade: tratado de sociologia do conhecimento”, trad. Floriano Fernandes, Rio de Janeiro, editora Vozes, 1978, 4ª edição, 247 págs. (1ª edição em Inglês, New York, 1966).

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Livro A Utopia do Saber Desencarnado

In dialectics, history, sociologia, sociologia do conhecimento, twentieth century on February 9, 2014 at 8:48 pm

capa utopia do saber desenc

Livro A Utopia do Saber Desencarnado: Bubok, 106 págs, Outubro 2013. Autor: Jacob (J.) Lumier Autor JLumier2012

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Licença Creative Commons
Este obra está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-SemDerivações-SemDerivados 3.0 Brasil.

No presente trabalho, se coloca em questão a desejada “liberação de toda a relação entre conhecimento e quadro social”, que não passa de um desvio conservadorista da sociologia do conhecimento, cujo objeto ao contrário disso acentua a variação do conhecimento em função dos quadros sociais. Nessa referência, se elabora uma análise e interpretação crítica da orientação de Karl Mannheim e se procede à desmontagem de seu hegelianismo. 

 

Para a leitura proveitosa desta obra A Utopia do Saber Desencarnado, devem notar que a mesma completa o Curso de Sociologia do Conhecimento – Texto 05 [ainda não publicado]. Pressupõe a leitura dos textos anteriores 01, 02, 03, já publicados por Bubok publishing.  Cabe lembrar que em todo o presente Curso de Sociologia do Conhecimento a elaboração é desenvolvida com base em materiais discutidos em obras anteriores do autor, que devem ser lidas para tirar o devido proveito deste “Curso”, seguintes: (a) “Comunicação e Sociologia” – Artigos Críticos, 2ª Edição modificada, Madrid, Bubok, Junho 2011, 143 págs.; (b) “Cultura e Consciência Coletiva – 2”, Junho 2009, e-book pdf 169 págs., e (c) “Psicologia e Sociologia”, Fevereiro de 2008, e-book PDF 158 págs., as duas últimas obras publicadas na Web da Organización de Estados Iberoamericanos para la Educación, la Ciencia y la Cultura – OEI .

Sumário

APRESENTAÇÃO: O DESVIO DE KARL MANNHEIM 7<br /> A UTOPIA DO SABER DESENCARNADO – 1 13<br /> CRÍTICA DA IDEOLOGIA E SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO 13<br /> Linhas para uma leitura crítica das orientações de Karl Mannheim 14<br /> Os intelectuais como mediação viva 14<br /> Os criadores de produtos ideológico-culturais 16<br /> A UTOPIA DO SABER DESENCARNADO – 2 19<br /> CIÊNCIA POLÍTICA, TECNOBUROCRACIA E ROMANTISMO EM KARL MANNHEIM. 19<br /> O comprometimento do pragmatismo. 20<br /> Hegelianismo e Teodiceia. 22<br /> A transposição do hegelianismo 25<br /> A paradoxal teodiceia de Hegel 27<br /> O sistema hegeliano e sua dialética mística 30<br /> A razão conservadora 31<br /> Hegel canoniza o existente 33<br /> A tendência específica da filosofia de Hegel 34<br /> A transposição de valores 37<br /> TEODICEIA E CONHECIMENTO EM MAX WEBER 43<br /> A necessidade racional de uma teodiceia 47<br /> Teodiceia e atitude revolucionária. 49<br /> Conclusão: a ficção do pleno saber 51<br /> IDEOLOGIA E SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO – 1 53<br /> OS COEFICIENTES PRAGMÁTICOS DO CONHECIMENTO E OS LIMITES DA ABORDAGEM CONSERVADORA. 53<br /> Consciência sociológica 53<br /> Os continuadores de Karl Mannheim 58<br /> Quadro intelectual de visão do mundo 61<br /> Os quadros sociais reais do conhecimento 63<br /> Uma aplicação da concepção conservadorista do saber 66<br /> IDEOLOGIA E SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO – 2 71<br /> A CONSCIÊNCIA MISTIFICADA 71<br /> Teoria multidisciplinar 71<br /> A ideologia burguesa 74<br /> A separação do trabalho intelectual 75<br /> Desigualdades sociais e justificações ideológicas 77<br /> Consciência mistificada e consciência burguesa 81<br /> PROBLEMA SOCIOLÓGICO DA IDEOLOGIA 87<br /> Dialética das alienações 91<br /> História e teodicéia 93<br /> NOTAS DE FIM 97 />

OBS. Uma versão preparatória dessa obra está publicada em Page nesta Web  sob o título “A Utopia do Saber Desencarnado, a Crítica da Ideologia e a Sociologia do Conhecimento“.