O estudo sociológico do sistema cognitivo das sociedades globais no nascimento do capitalismo
Resumo dos resultados da pesquisa de Georges Gurvitch (1894-1965) divulgados em: “Los Marcos Sociales Del Conocimiento”( Les Cadres sociaux de la connaissance).
Por
Jacob (J.) Lumier
Sumário
Despotismo esclarecido. 1
O papel do saber como fato social 1
O fim do regime feudal 1
Características das sociedades no nascimento do capitalismo. 1
O sistema cognitivo e as classes de conhecimento. 1
Marx e o maquinismo. 1
O conhecimento do mundo exterior 1
o conhecimento técnico. 1
Os aspectos do conhecimento político. 1
O senso comum.. 1
O conhecimento de outro e dos Nós-outros. 1
Os intelectuais. 1
Notas. 1
Despotismo esclarecido
No estudo sociológico do sistema cognitivo das sociedades globais que dão à luz o capitalismo o traço marcante é o despertar do Estado na forma da monarquia absoluta participando ativamente do desenvolvimento do capitalismo nascente e, nessa e por essa atividade, tratando todos os problemas políticos sob seu aspecto econômico. Daí que os historiadores e os economistas caracterizam a organização política dessa sociedade como “despotismo esclarecido”.
Todavia, além dessa vinculação ao “Estado ressuscitado”, o caráter particular desse tipo de sociedade inclui os começos do maquinismo, as primeiras fases da industrialização, a transformação do trabalho em mercadoria, a aparição das classes sociais propriamente ditas (estrutura de classes) e, do ponto de vista da tipologia qualitativa e descontinuista [i], certa diminuição do desacordo entre a estrutura global e o fenômeno social total subjacente.
O papel do saber como fato social
Em conseqüência, não se pode minimizar o papel do saber como fato social nesse e para esse tipo de estrutura, devendo-se acentuar a reciprocidade de perspectivas que aqui se configura entre experiência e conhecimento.
Como já tivemos a ocasião de notar, Gurvitch assinala que frequentemente não é possível ir além das explicações por correlações funcionais e buscar o máximo de coerência do processus de reestruturação como fundado numa causalidade singular deixando o fato social do saber como epifenômeno.
A causalidade singular somente é aplicada quando se está perante um caso de desacordo preciso de quadro social e saber, como nas análises de Karl Marx em que o saber da Economia Política clássica está em desacordo com o quadro da sociedade de classes ao qual pertence.
Nesses casos, se poderá estabelecer uma determinada mudança social como a causa particular de que a estrutura é o efeito, polarização esta que, aliás, muitos tentaram fazer apressadamente para este tipo de sociedade que dá à luz o capitalismo, atribuindo ao advento do maquinismo o papel de causa singular da mudança estrutural, o que excluiria o alcance ou a relevância do saber como fato social para a reestruturação desse tipo global [ii].
O fim do regime feudal
Ao falar de diminuição do desacordo entre a estrutura global e o fenômeno social total subjacente, Gurvitch tem em vista uma comparação com as sociedades feudais, em cujo tipo nota-se um desacordo cuja intensidade é um fato novo, a que se conjuga um “pluralismo excepcional” da estrutura em si.
A explicação aqui assenta o fato singular produzido ao fim do regime feudal, quando tem lugar a aliança dos monarcas feudais com as cidades francas ou abertas que compraram sua liberdade ao Estado territorial reanimando-o. Assim é a mudança social levando à reanimação do Estado recuperando forças com a referida aliança que constitui o elemento máximo de coerência da teoria para as sociedades feudais, restando, então, o saber como fato social em estado preponderantemente espontâneo e difuso, sem que seja feito valer.
Características das sociedades no nascimento do capitalismo
Com efeito, tirado do seu sono secular por essa aliança singular, o Estado toma a forma da monarquia absoluta como dizíamos, constituindo na análise gurvitcheana um traço característico das sociedades globais que dão à luz o capitalismo. Na Europa Ocidental, são os séculos XVII e XVIII os que correspondem a esse tipo de sociedade, já iniciada durante a segunda metade do século XVI, sobretudo na Grã-Bretanha.
Segundo a descrição de Gurvitch, excluindo a equivocada atribuição do papel de causa singular para o advento do maquinismo e resgatando o alcance ou a relevância do saber como fato social para a reestruturação desse tipo de sociedade global que dá à luz o capitalismo, nota-se: (1) – o predomínio do Estado territorial monárquico de grande envergadura, que atribui ao monarca o poder absoluto, e que se aliou com a burguesia das cidades e com a nobreza ligada à burocracia, dita nobreza de toga; 2) – o Estado apóia aos plebeus burgueses, aos capitalistas industriais das manufaturas, aos comerciantes de envergadura internacional e, muito particularmente, aos banqueiros, quem, enriquecidos depois da descoberta do Novo Mundo, tornaram-se seus credores; 3) – e os apóia contra a nobreza de espada, contra os operários e os camponeses, substituindo assim a antiga hierarquia das dependências feudais por uma nova.
Quanto aos níveis em profundidade da realidade social, nota-se em primeiro lugar duas classes de modelos: os modelos idênticos às regras jurídicas, tomados como regulamentação minuciosa feita de cima para baixo, e os modelos técnicos, estes nascidos das fábricas, exatamente como um aspecto do transtorno da vida econômica, ambos inovadores; em segundo lugar, nota-se incluindo todo o mundo dos produtos, a base morfológico-demográfica como estando ligada à necessidade de mão de obra e ao problema de seu recrutamento; e em terceiro lugar, nota-se os aparelhos organizados de toda a classe, cuja burocratização começa;
Nota-se igualmente que: (a) – a enorme impulsão da divisão do trabalho técnico, superando muito a divisão do trabalho social, sendo combinada ao maquinismo, tem por conseqüência uma produtividade sem precedentes em quantidade e em qualidade; (b) – a acumulação de riquezas, acelerada pelo descobrimento do Novo Mundo, alcança em tempo record grandes proporções agravando os contrastes entre a pobreza e a opulência.
Assiste-se em particular à vitória do natural sobre o sobrenatural, da razão sobre toda a crença; bem como ao crescimento do individualismo em todos os campos, e ao nascimento da idéia do “progresso da consciência”, sendo a reter que a expressão mais completa da civilização e da mentalidade própria dessa sociedade no seu apogeu é a “época das luzes”, que faz o homem confiar no seu êxito e no das suas empresas técnicas e indústrias.
Quanto ao mais, já repetimos que não se pode minimizar o papel do saber como fato social para este tipo de estrutura e de sociedades globais que dão à luz o capitalismo. A diminuição do desacordo entre a estrutura global e o fenômeno social total subjacente favorece na teoria sociológica a prevalência das correlações funcionais sobre a causalidade singular.
Sistema cognitivo e classes de conhecimento
Desta forma, decompondo o sistema cognitivo desse tipo de sociedade, Gurvitch assinala que o primeiro lugar na ordem dos conhecimentos é compartilhado pelo conhecimento filosófico e o conhecimento científico, que se completam mais do que competem.
Se nas sociedades feudais e no curso para a forma da monarquia absoluta, ocultando grande desacordo da estrutura no conjunto (pluralismo excepcional da estrutura), o saber como fato social não é feito valer, restando difuso, por contra nas sociedades que dão à luz o capitalismo a preeminência das correlações funcionais faz ver a maior valoração do saber, cujo papel é de alta eficácia para o equilíbrio da estrutura no conjunto.
Com efeito, gurvitch insiste a respeito deste papel significativo do saber como fato social, traçando de inicio um esboço histórico do salto prodigioso da ciência desde a renascença, cujos expoentes, como se sabe, são os seguintes: Copérnico (1473-1543), Kepler (1571-1630), Galileu (1564-1642), nos conhecimentos astronômicos; Newton (1643-1727) inventa o cálculo infinitesimal no mesmo momento em que Leibniz (1646-1716) também o faz de outra forma, ambos fundadores da física mecânica; a química moderna nasce com Lavoisier (1743-1794); as ciências do homem se desenvolvem dividindo-se em muitos ramos, seguintes: a economia política é criada por Adam Smith e David Ricardo e, com outra forma, pelos fisiocratas; a ciência política se afirma com Hobbes, Spinoza, Locke, Montesquieu, Rousseau, os enciclopedistas, Condocert, e Destut de Tracy (Montesquieu já pressente o advento da sociologia).
Nota-se, igualmente, a reforma do ensino, cada vez mais laico, a acelerar o desenvolvimento do conhecimento científico, sobretudo a partir de 1529, com a fundação do Collège de France. Todos os grandes filósofos participam das discussões científicas (com alguma reserva, pascal e Malebranche) já que a laicização do saber filosófico, cada vez mais independente da teologia, favorece sua tendência a fazer das ciências a base de suas reflexões. Nota-se, entretanto, que o contrário não se verifica e os cientistas mostram pouco interesse pelo saber filosófico como tal. Mesmo assim, o prestígio do conhecimento filosófico está em que é o melhor colocado para defender a ciência contra a teologia e, além disso, são os filósofos quem amiúde emitem hipóteses verdadeiramente científicas, como Descartes e Leibniz.
Nesta descrição proporcionada pela análise sociológica de Gurvitch, o saber filosófico acolhe mais o racional sobre o místico, excetuando a Pascal, um pouco a Malebranche e a Spinoza, místico da racionalidade; da mesma maneira, acolhe mais o adequado sobre o simbólico e ainda favorece a combinação do conceitual e do empírico, do especulativo e do positivo e, finalmente, o predomínio da forma individual sobre a forma coletiva, esta última, por sua vez, muito relegada, aqui, no saber filosófico.
O conhecimento científico, por sua vez, tem a acentuação do elemento racional como exclusiva sua; aqui, o conceitual predomina sobre o empírico e a forma coletiva é preponderante; nota-se a formação de equilíbrio do positivo e do especulativo, assim como do simbólico e do adequado.
Marx e o maquinismo
Karl Marx tivera razão ao insistir no primeiro tomo de O Capital (cf.tomo I, 4ªseção, caps. XIV e XV) que não são as invenções técnicas as que tiveram por resultado a profusão de fábricas, mas, pelo contrário, foi a divisão do trabalho técnico nas grandes fábricas cada vez mais numerosas que criou a necessidade de técnicas mecanizadas e provocou assim a introdução das máquinas, tal como confirmado pelo estudo das técnicas industriais dos séculos XVII e XVIII.
O conhecimento do mundo exterior
Quanto ao segundo lugar no sistema cognitivo dessas sociedades que dão à luz o capitalismo, corresponde ao conhecimento perceptivo do mundo exterior, com as seguintes características: (1) – a rápida promoção desse conhecimento (1a) – deve-se à criação dos novos meios de comunicação que acompanham a extensão do comércio em escala mundial, favorecendo o conhecimento dos oceanos e de continentes até então desconhecidos; (1b) – além disso, o que também permitiu comunicações relativamente rápidas foi o aumento e o melhoramento dos caminhos que cruzam os países ocidentais favorecendo a maior circulação das diligências.
(2) – Todavia, a análise de Gurvitch tem por mais relevante as novas percepções e conceituações das amplitudes e dos tempos em que se encontra imbricado o mundo exterior: 2.1) – nota-se uma competição entre os tempos “adiantado a respeito de si” e o “tempo atrasado”, correspondendo a uma estrutura de uma só vez inovadora e anacrônica, competição esta que anuncia um tempo em que o passado, o presente e o porvir irão entrar em conflito rapidamente, numa situação explosiva que favorecerá o porvir, com o “tempo surpresa” ameaçando quebras nas poderosas organizações da superfície;
2.2) – essa competição entre o tempo adiantado e o tempo atrasado aplica-se igualmente ao fenômeno social total global subjacente à estrutura, de tal sorte que encontramos, por um lado, que o conhecimento do mundo exterior, a vida econômica, as técnicas industriais, o comércio internacional, o saber filosófico, a burguesia e sua ideologia estão essencialmente adiantados em relação à estrutura, enquanto que, por outro lado, a nobreza, o clero, a vida agrícola, o campesinato estão atrasados a respeito da mesma. A própria monarquia absoluta está adiantada a respeito de suas iniciativas e atrasada quanto a sua organização e suas conseqüências.
2.3) – Desta forma Gurvitch avalia que a quebra do Antigo Regime foi muito mais espetacular do que as revoluções inglesa e holandesa ou do que as guerras religiosas e civis, incluindo nesta lista a guerra da independência nos Estados Unidos; e que esta quebra do antigo regime não se apagará jamais da memória coletiva das sociedades que virão.
2.4) – Temos, então, que esses tempos e amplitudes em que se encontra imbricado o mundo exterior, embora rico em incógnitas e em possibilidades novas, se fazem particularmente mensuráveis com o lema da classe burguesa que toma consciência da sua existência: “tempo é dinheiro”, a que se junta: “todos os caminhos conduzem ao ouro, ou, pelo menos, ao dinheiro”.
Quer dizer, todas as amplitudes são apreciadas menos pelo sistema métrico e mais pelo tempo necessário para percorrê-las, decorrendo desta quantificação que o mundo exterior se torna um objeto de estudo científico.
Em maneira idêntica, desse modo de apreciar as amplitudes pelo tempo necessário para percorrê-las decorre a posição de relevo alcançada conjuntamente pelo conhecimento perceptivo do mundo exterior e pelo saber científico no sistema cognitivo do tipo de sociedades que dão à luz o capitalismo.
Aliás, essa posição de relevo alcançada conjuntamente é muito mais significante aqui do que em muitos outros tipos de sociedade, ocultando o fato de que o saber científico prepara o salto que na etapa seguinte do capitalismo o levará ao primeiro lugar.
o conhecimento técnico
No terceiro lugar desse sistema cognitivo vem o conhecimento técnico, que deu um salto considerável, e isto não só na indústria (ramos dos têxteis e da metalurgia), mas na navegação e na arte militar.
Reitera Gurvitch como já o notamos que o aperfeiçoamento do conhecimento técnico levando ao maquinismo se encontra em relação direta não com as aquisições da ciência, mas com as melhoras de ordem prática, o que já fora assinalado por Adam Smith e por Karl Marx, apesar de suas diferenças intelectuais.
Neste tipo de estrutura e de sociedades globais que dão à luz o capitalismo observam-se ainda como retardados a respeito das técnicas, não só o movimento demográfico, mas a organização da economia, que é prejudicada pelos vestígios das corporações de ofícios (vestígios pré-capitalistas), assim como as invenções e suas aplicações não seguem uma curva de avanço regular.
Os aspectos do conhecimento político
Por sua vez, o conhecimento político, tanto implícito ou espontâneo quanto explícito ou formulado, ocupa o quarto lugar desse sistema cognitivo, ainda que possa parecer surpreendente essa colocação tão baixa em face do meio fértil em intrigas constituído pelos grupos privilegiados no Antigo regime.
Há que distinguir três aspectos seguintes:
1º) – o conhecimento político implícito está evidentemente estendido na corte em função de várias rivalidades seguintes: (a) – rivalidade da nobreza de espada e da nobreza de toga; (b) – de toda a nobreza e da burguesia em ascensão; (c) – rivalidade entre as diferentes frações da burguesia: a industrial, a comercial, a financeira;
2º) – esse conhecimento político espontâneo se encontra ausente no meio das classes populares representadas pelos operários das fábricas e pelo “campesinato”. Derrotados pelas mudanças de estruturas que nada lhes traz de benefício essas classes populares permanecem não sabendo o que fazer ou que tática adotar numa situação que, em geral, lhes é muito desfavorável. Aliás, a respeito disso, Gurvitch nos lembra que a consciência de classe e a ideologia dos operários e dos camponeses não se formarão antes do século XIX, e muito depois das grandes comoções da Revolução francesa.
3º) – Na medida em que se mantém, o Antigo Regime necessita de uma política que não leva geralmente em conta os grupos de interesse, por privilegiados que sejam. Quer dizer, as disputas políticas e, conseqüentemente, o conhecimento político das pessoas são de importância secundária para o absolutismo.
Por sua vez, esses grupos de interesses (os que têm futuro e os mais adiantados e clarividentes) encontram uma compensação na elaboração das doutrinas políticas, cujo esquema tirado da análise gurvitcheana é o seguinte:
(a) – na Inglaterra, Thomas Morus (“Utopia”, 1516) e Francis Bacon (“Nova Atlântida”, inconclusa), durante a renascença; posteriormente, nos séculos XVII e XVIII, os escritos de Hobbes e Locke correspondem, nessa análise sociológica, às aspirações da burguesia ascendente como quadro social do conhecimento, que, finalmente, só então triunfará;
(b) – na França: os fisiocratas, os enciclopedistas, Turgot, J.J.Rousseau terão influência desde o começo e durante a revolução, e suas doutrinas tratam tanto do fim ideal quanto da tática a empregar para alcançá-lo, tipificando o conhecimento político formulado ou elaborado, não-espontâneo ou não-implícito;
(c) – na Holanda: o “Tratado Político” (1675-1677) de Spinoza faz pressentir segundo Gurvitch certos elementos do pensamento de Rousseau;
Nota-se que nas doutrinas políticas (e nas ideologias em que se inspiram) apesar do predomínio da forma racional “o simbólico, o especulativo, o conceitual, e o individual são sempre muito acentuados”, mesmo naquelas doutrinas mais preocupadas pela racionalidade, pelo empirismo, pela objetividade, pela adequação. Já no conhecimento político espontâneo, a forma racional se combina à forma empírica, estando igualados em importância o positivo e o individual.
O senso comum
Quanto à sociologia do conhecimento de senso comum, aqui, neste tipo de sociedades globais dando à luz o capitalismo, conhecimento situado em penúltimo lugar, está marcado pela grande multiplicidade dos meios que lhe servem de quadro social de referência.
Quer dizer, o conhecimento de senso comum neste tipo de estrutura e de sociedades globais que dão à luz o capitalismo está consideravelmente confundido pelo seguinte: por um ambiente tão novo e imprevisto; pelo advento do começo do capitalismo e do maquinismo; pelo descobrimento do Novo Mundo; pela política absolutista de nivelação dos interesses; pelo debilitamento da igreja; pela afluência das grandes massas da população às cidades, etc.
Assim, esse conhecimento de senso comum se encontra disperso em vários meios, seguintes: (a) – entre os cortesãos, os representantes da nobreza de espada e os da nobreza de toga; (b) – nos diferentes grupos da burguesia, no novo exército profissional, entre os marinheiros, etc., ou ainda, entre os operários da fábrica.
Seu refúgio será, então, a vida rural e os círculos restritos da família doméstica conjugal. Gurvitch nos lembra a observação de Descartes de que o senso comum é “a mais compartilhada” das faculdades, avaliando que o mestre do racionalismo moderno resistia desta maneira à tentação de negar a existência mesma dessa classe de conhecimento, “provavelmente pressionado pelas contradições crescentes entre os diversos beneficiários do conhecimento de senso comum”.
Enfim, nota-se a disputa entre a forma mística e a forma racional desse conhecimento de senso comum, em particular no clero e no campesinato (“paysannerie”).
O conhecimento de outro e dos Nós-outros
No último lugar desse sistema cognitivo das sociedades globais que dão à luz o capitalismo vem o conhecimento de outro e dos Nós-outros que: 1) – como o conhecimento de senso comum, também se encontra em grande dispersão pelos diferentes meios relacionados com a atualização da sociabilidade das massas, com a política de nivelação do absolutismo e com a desintegração dos grupos herdados da sociedade feudal, estando em nítida regressão a identificação do conhecimento dos Nós-outros ao “espírito de corpo”.
2) – Todavia, Gurvitch observa que se nota um novo conhecimento de outro, servindo de compensação parcial para o rebaixamento desse mesmo conhecimento de outro como de indivíduos concretos, lembrando-nos que tanto na classe proletária nascente como na classe burguesa ascendente, ambas penetradas da ideologia de competição e de produção econômica, o conhecimento de outro é quase nulo.
Nosso autor acrescenta que, nesse novo conhecimento de outro, se trata de uma tendência para universalizar a pessoa humana que se relaciona a Rousseau, com sua teoria da vontade geral idêntica em todos, e a Kant, este, com seu conceito de “Consciência Transcendental” e de “Razão Prática”, que chega à afirmação da “mesma dignidade moral” em todos os homens [iii].
Quer dizer, tem-se um conceito geral do outro fora de toda a concreção, de toda a individualização efetiva, acentuando-se as formas racional, conceitual, especulativa e simbólica, com tendência frustrada a reunir o coletivo e o individual no geral ou no universal.
Os intelectuais
Para encerrar, Gurvitch nota que as sedes de intelectuais encarregados de manter esse sistema cognitivo, desenvolvê-lo e difundi-lo se enriqueceu com a adição de novos grupos e novos membros, destacando-se junto aos filósofos, aos estudiosos, aos docentes a entrada dos representantes das “belas letras”, dos escritores, dos doutrinários políticos e por fim dos inventores de técnicas novas.
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Notas
[i] Ultrapassando o nominalismo e o individualismo limitando o pensamento probabilitário do criador da tipologia qualitativa, Max Weber, que terminou por aplicá-la no vazio do culturalismo abstrato, a pesquisa de Gurvitch tem orientação dialética, sendo voltada para acentuar o caráter intermediário dos tipos sociológicos que “representam quadros de referência dinâmicos adaptados aos fenômenos sociais totais e chamados a promover a explicação em sociologia”. Daí decorre a importância em distinguir (a) – entre generalização, singularização e sistematização, bem como (b) – entre repetição e descontinuidade, sem falar na distinção (c) – entre explicação e compreensão, pois estas distinções e critérios dos tipos sociológicos só podem ser utilizados numa orientação de teoria dinâmica. Ver Gurvitch, Georges (1894-1965) et al.: “Tratado de Sociologia – vol.1 e vol. 2″, 2ªedição corrigida.
[ii] Como se sabe, o aperfeiçoamento do conhecimento técnico levando ao maquinismo se encontra em relação direta não com as aquisições da ciência, mas com as melhoras de ordem prática – como já fora assinalado por Adam Smith e Karl Marx, apesar de suas diferenças. Quer dizer, Karl Marx tivera razão ao insistir no primeiro tomo de “O Capital” de que não são as invenções técnicas as que tiveram por resultado a profusão de fábricas, mas, pelo contrário, foi a divisão do trabalho técnico nas grandes fábricas cada vez mais numerosas a que criou a necessidade de técnicas mecanizadas e provocou assim a introdução das máquinas, tal como confirmado pelo estudo das técnicas industriais dos séculos XVII e XVIII.
[iii] Em sociologia, o interesse pelo homem como indivíduo específico e diferente de seus semelhantes é reconhecido. A individualidade concreta tem sua dignidade moral reconhecida na Declaração dos Direitos Sociais. Ver: Gurvitch, Georges: “La Déclaration des Droits Sociaux”.