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Uma Organização Mundial para o Meio Ambiente como a OMC, OMS, OIT

In altermundialismo, ecology, Politics on February 10, 2012 at 4:35 am

“A crise econômica precisa ser resolvida, mas a crise ambiental é mais grave”
Entrevista de Marina Silva ao Jornal do Comercio (RS) via Radar Rio+20 Reproduzida aqui na íntegra por Jacob (J.) Lumier

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A ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva (sem partido) defende um modelo de governança global para as questões ambientais, nos moldes de organismos existentes para o comércio, a saúde e o trabalho.  “Deveríamos ter uma espécie de Organização Mundial para o Meio Ambiente.” Essa foi uma das teses apresentadas pela ex-senadora no final de janeiro em Porto Alegre, onde esteve por uma semana para participar do Fórum Social Temático.  Ela também reiterou o “pensar globalmente e agir localmente” na prática: “É fácil para alemães, ingleses e franceses defenderem a Amazônia.  Difícil é mudar a matriz energética (deles)”.

Marina também foi uma das lideranças do Fórum a criticar a política ambiental do governo Dilma Rousseff (PT).  Terceira colocada nas eleições à presidência da República de 2010, quando obteve quase 20 milhões de votos, ela classifica como retrocesso as mudanças propostas no Código Florestal e espera o veto de Dilma.  Observa que, se o texto for aprovado, permitirá o aumento do desmatamento e poderá inviabilizar o discurso da presidente na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, Rio+20, que ocorre no Brasil.

Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Marina fala da “nova política” fora dos partidos, diz que apoiará candidatos que adotarem o programa Cidades Sustentáveis nas eleições deste ano e não descarta ser candidata ao Planalto em 2014.

Jornal do Comércio – O que a senhora achou do Fórum Social Temático sobre meio ambiente?

Marina Silva – Uma edição diferente, com foco na Rio+20.  Pela primeira vez nesses onze anos o Fórum discute uma questão global que é o desafio do desenvolvimento sustentável.  Depois de 20 anos da ECO-92, nos reencontramos para discutir o futuro do planeta.  Não em cima de termos genéricos, como o documento-base das Nações Unidas, que não faz alusão a desigualdades sociais e trata de forma superficial a crise ambiental que o mundo atravessa.  Devemos partir de questões sobre o tipo de governança que queremos para o desenvolvimento sustentável; como essa governança se materializaria na forma de um organismo no âmbito das Nações Unidas, como temos para o comércio, para a saúde, para o trabalho.  Deveríamos ter uma espécie de Organização Mundial para o Meio Ambiente.  É possível ter um espaço próprio nas Nações Unidas.

JC – E a Rio+20?

Marina – O problema ambiental está grave e contraditoriamente os estados estão querendo baixar as expectativas em relação à Rio+20 em função da crise econômica.  A crise econômica é grave, precisa ser priorizada e resolvida, mas a crise ambiental é mais grave e também precisa ser enfrentada.

JC – A crise econômica e o desemprego dificultam a adoção do desenvolvimento sustentável?

Marina – Acaba se transformando em pretexto para não priorizar a agenda ambiental global.  Mesmo quando não tínhamos crise, igualmente não havia prioridade – era baixa a implementação dos acordos que foram estabelecidos na Convenção do Clima e na Convenção da Biodiversidade e de mudanças climáticas, cada país fazia um pouco o jogo do empurra-empurra.  Os países em desenvolvimento alegavam que só fariam se os países ricos aportassem recursos.  E fariam de forma diferenciada, porque têm menos emissões historicamente, porque ainda não alcançaram um nível de satisfação para as suas populações em termos de problemas sociais.  E agora, é claro que fica mais difícil, estão drenando recursos para a crise econômica.  Não sou contra que se façam investimentos para resolver esses problemas, mas sou a favor de que se faça o mesmo em relação à crise ambiental.  Esse discurso de baixar as expectativas em relação à Rio+20, que é feito por governos e uma parte das grandes corporações, não deve ser o discurso da sociedade.  A sociedade tem que elevar as expectativas e cobrar dos governos e das empresas que façam o dever de casa com o mesmo sentido de urgência que estão fazendo para a crise econômica.

JC – A presidente Dilma falou em empenho do governo por um desenvolvimento sustentável no Fórum.  De forma geral, lideranças políticas e empresariais defendem essa tese.  E na prática?

Marina – Um autor, não lembro o nome, diz o seguinte: “As ideias realmente inovadoras, transformadoras e revolucionárias no início são ferrenhamente combatidas; quando são assimiladas pela sociedade e ganham força, passam a ser modificadas a tal ponto que ficam castradas e sem potência para fazer aquilo que propunham”.  No desenvolvimento sustentável, não estamos imunes a isso.  Vi, no Congresso Nacional, pessoas mudando a lei que protege florestas e anistiando desmatadores ilegais, diminuindo de 30 metros para 15 metros as áreas de preservação à margem dos rios de pequeno porte e de 500 metros para 100 metros nos grandes rios da Amazônia.  E se dizem a favor do desmatamento zero e da sustentabilidade.  É o discurso sem coerência com a prática.  Mas tivemos avanços nos últimos anos.

JC – Quais?

Marina – Temos uma das melhores legislações ambientais do mundo, conquistada a duras penas com a Constituição de 1988.  A partir de 2003, houve um esforço grande de implementá-la e veio uma reação muito forte contra a legislação ambiental.  Estamos agora diante de um grande retrocesso, que na prática inviabiliza o discurso da presidente (na Rio+20).  O Brasil foi o primeiro país a assumir a meta de redução de dióxido de carbono (CO2) na Convenção do Clima; mas fez isso graças ao Plano de Combate ao Desmatamento que, com base no Código Florestal, reduziu em 80% os desmatamentos.  Suprimindo o Código Florestal na proteção das florestas, vamos retornar ao velho paradigma do desmatamento como forma de “gerar desenvolvimento”.  O Brasil não precisa disso para fazer a sua agricultura crescer.

JC – Por quê?

Marina – O Brasil tem um potencial enorme para crescer aumentando sua produção por ganho de produtividade e não por expansão da fronteira agrícola.  A gente tem que insistir no conceito da sustentabilidade e cobrar coerência.  A população tem que dar o termo de referência para empresas e governos de que desenvolver preservando recursos naturais é um valor social, econômico, ético, político e, sobretudo, ambiental.  Cada vez mais vamos precisar integrar economia e ecologia, política e ética.

JC – A senhora vai trabalhar pelo veto ao Código Florestal ou para que o texto seja modificado ainda no Congresso Nacional?

Marina – As duas coisas, com o Comitê em Defesa das Florestas e do Desenvolvimento Sustentável, que congrega mais de 100 entidades da sociedade civil.  Estamos fazendo todos os esforços para resolver o problema no Congresso, que é o melhor caminho.  Mas como o governo se omitiu e deixou que o problema fosse agravado, só nos restará pedir à presidente Dilma que vete o projeto tal como ela se comprometeu no segundo turno (da campanha eleitoral de 2010).

JC – Como será sua participação político-partidária nas próximas eleições de 2012 e 2014?

Marina – Em 2012, vou apoiar candidatos comprometidos com o programa Cidades Sustentáveis, independentemente de partidos.  Mas não por um enunciado: vou olhar a prática das pessoas, suas trajetórias, compromissos assumidos e prioridades programáticas.  E participar do movimento que as pessoas chamam de “Por uma Nova Política”, no sentido de fazer com que o tema do desenvolvimento sustentável continue sendo relevante.

JC – E 2014?

Marina – Não quis ficar na cadeira cativa de candidata em 2014.  Vou continuar defendendo o desenvolvimento sustentável no Brasil.  Se em 2014 isso se colocar novamente como legítimo e tiver necessidade de contribuição, vou avaliar se tenho condições de continuar nesse lugar de possível candidata.  Nesse momento, não sei.  Se houver um candidato melhor do que eu, não tenho nenhum problema em apoiá-lo, desde que comprometido de fato com essa plataforma.

JC – Como a senhora avalia os movimentos políticos apartidários, organizados via internet?

Marina – É uma ferramenta que potencializa uma ação política de novo tipo, mas que não se basta em si mesma e nunca vai prescindir o sujeito político nem eliminar a necessidade de que em alguns momentos estejamos atuando em espaços presenciais; senão, a gente vira uma coisa abstrata, virtual.  Estamos vivendo uma espécie de democracia prospectiva.  Até pouco tempo, quem conseguia prospectar aplicativos para a democracia eram os partidos, as corporações, a academia, depois os sindicatos e as ONGs.  Hoje, com a internet, bilhões de seres humanos estão prospectando novos aplicativos para a democracia.  Como se faz para “democratizar a democracia”?  Isso parece estranho, mas os gregos quando inventaram a democracia a fizeram somente para homens livres, não era para mulheres nem para escravos.  E a democracia grega foi se democratizando e hoje é para todos, mas isso não significa que já estejamos na perfeição da democracia, é um processo que se desdobra, se reelabora, de acordo com os avanços materiais, políticos e éticos.

JC – E a participação?

Marina – Cada vez mais as pessoas estão questionando essa história de serem meros espectadores da política, eles querem ser sujeitos e está surgindo um novo sujeito político.  Ainda não sabemos como será, mas com certeza está a exigir uma nova visão da política, novos processos e estruturas.  As estruturas que temos hoje nos partidos não são suficientes para atender à demanda de participação que está colocada pela sociedade, a qual cada vez mais tem acesso à informação e é capaz de criar sua própria audiência, seu grupo de relação, e de interferir de forma decisiva em muitos casos, como aconteceu agora nos Estados Unidos em relação à regulamentação da internet.

JC – A democracia representativa vive uma crise?

Marina – Vive a exigência de melhorar sua qualidade, porque os que estão representando já não conseguem mais abarcar os anseios dos representados.  Os que estão diretamente participando, esses já estão, de certa forma, integrados ao sistema, e os que não estão buscam como e de que maneira podem participar.  Há um momento de questionamento para que a gente tenha uma nova qualidade da política.  A humanidade está vivendo uma crise civilizatória.  Nela, ainda não se tem resposta para tudo; apenas começa um processo em que não é um grupo nem um partido, nem uma pessoa, é a comunidade de pensamento – como diz Edgar Morin -, que começa a se colocar criando novos espaços de convergência, novos consensos, produzindo as novas respostas para as demandas deste início de século.

JC – Qual é o papel das crianças na proteção ambiental?

Marina – A criança, o adolescente e os jovens têm exercido um papel de muito peso na sociedade.  O consumo nas casas das famílias é pautado por essa faixa etária.  Se a crise ambiental global se relaciona com a nossa forma de produzir e consumir, eles têm um papel fundamental.  Quando tomam consciência de que podem fazer algumas coisa, são bem diferentes de nós, porque somos convencidos a mudar de atitude e eles são verdadeiros convertidos.  Isso vai fazer a diferença na realidade do Brasil.

JC – O capitalismo vive do consumo e do descarte.  Precisamos de um novo modelo?

Marina – Há necessidade de um novo modelo – chamamos de desenvolvimento sustentável.  Não o encontramos nem nos países capitalistas nem nos que se dizem socialistas.  Como gerar qualidade de vida e manter as bases naturais do desenvolvimento?  É o desafio civilizatório que está colocado.  Não será mais uma resposta de direita e esquerda, socialismo e capitalismo, é algo mais profundo.  Há a exigência de mudanças integradas no plano global e que se realizam nos espaços locais.  É fácil defender o ambiente dos outros, é muito fácil para alemães, ingleses e franceses defenderem a Amazônia.  Difícil para eles é mudar a matriz energética (deles).  É fácil para o Brasil proferir o discurso de que já está protegendo as florestas, difícil é apostar em uma nova matriz energética que não coloque em risco as comunidades indígenas.  Chegou o momento de discutir meio ambiente no nosso próprio ambiente, e não apenas no ambiente dos outros.

Perfil

Maria Osmarina Silva Vaz de Lima completa 54 anos depois de amanhã.  Ela nasceu na comunidade seringueira de Breu Velho (AC).  Aos 16 anos, teve a permissão do pai para deixar a floresta em busca de tratamento para uma hepatite em Rio Branco (AC), onde passou a trabalhar como empregada doméstica e começou a se alfabetizar.  Dez anos depois de aprender a ler e escrever, já estava formada em História pela Universidade Federal do Acre.  Em 1985, começou a lecionar para alunos de Ensino Médio e, no ano seguinte, tornou-se professora de História da UFAC.  Sua vida política se iniciou em um curso de liderança rural em que conheceu o líder seringueiro Chico Mendes e a Teologia da Libertação.  Passou a atuar nas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica e, em 1984, ajudou a criar a CUT.  Filiou-se ao PT e foi eleita vereadora de Rio Branco em 1988 e deputada estadual em 1990.  Em 1994, venceu a eleição para o Senado, sendo reeleita em 2002.  Ministra do Meio Ambiente do governo Lula (PT) por seis anos, voltou ao Senado e, em 2009, deixou o PT e foi para o PV, pelo qual concorreu à presidência da República em 2010.  Ficou em terceiro lugar com quase 20 milhões de votos.  Deixou o PV e está sem partido.

Notícia da edição impressa de 06/02/2012

Fonte: Jornal do Comercio (RS) via Radar Rio+20

O Ardil do Voto Obrigatório: Notas Sobre a Produção do Mal-Estar

In Bem-estar, cidadania, Democracia, dialectics, direitos humanos, history, laicidad, portuguese blogs, sociologia, twentieth century on October 20, 2008 at 10:21 pm

O ARDIL DO VOTO OBRIGATÓRIO:
NOTAS SOBRE A PRODUÇÃO DO MAL-ESTAR
Por
Jacob (J.) Lumier

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Nota Complementar sobre a função domesticadora do voto obrigatório como fator de reforço da hegemonia burguesa: o Complexo de Impotência.

Texto modificado pelo autor em 24 de Outubro de 2014

 

Preliminares

Trata-se de um estudo sobre a participação eleitoral no qual se examina o problema do voto obrigatório sob o aspecto subjetivo. O foco do estudo é o constrangimento da liberdade individual como sensação de mal-estar decorrente da situação do indivíduo diante dos procedimentos obrigatórios de votação. Neste marco, desenvolve-se a compreensão de que a eficácia da obrigatoriedade implica em obediência, no sentido de que a aceitação desse regime é conseguida não por consentimento e sua racionalidade de benefício (“me submeto à lei porque meu direito é reconhecido” e “porque posso ter uma chance”), mas, ao contrário, por obediência social, cujo modelo tem muito a ver com o caráter nostálgico de que Saint-Simon fez a crítica ao examinar a situação do Ancien Régime. Daí o caráter falso do suposto alcance educativo que muitos pretendem atribuir ao voto obrigatório. O ensaio põe em evidência que, em lugar de educativa, a obediência exercida deve ser explicada como função domesticadora e compreendida em sua inserção no contexto histórico da hegemonia burguesa, a partir do que é aplicado o modelo de análise crítica que explica a sensação de mal-estar em referência do complexo de impotência segregado pela indústria cultural. O texto que segue é a versão provisória e esquemática dessa orientação sociológica.

 

Roteiro

Sumário

Imbróglio da obrigatoriedade. 1

Falso caráter educativo. 2

A função domesticadora. 3

O caso do analfabeto participativo. 4

O problema existencial 5

O sentimento de impotência. 5

Reforço da hegemonia burguesa. 6

Crítica da ideologia do futurismo. 6

Complexo de Impotência e dessubjetivação. 7

Impotência e Condicionamento. 8

A arcaica iloquacidade. 8

 

 

Imbróglio da obrigatoriedade

 

É restritivo compreender a participação eleitoral precipuamente sob o aspecto demográfico (quantidade massiva de população votante), pois isto significa valorizar a docilidade e tentar acomodar a democracia às desigualdades sociais, sem ter em conta as experiências históricas do eleitorado contrárias à obrigatoriedade, nem sua atitude previamente crítica à função domesticadora   do voto obrigatório como fator de reforço da hegemonia burguesa, que se exerce mediante a indevida imposição da obediência (cidadania permitida).

O voto obrigatório é prejudicial porque dá prevalência ao valor cultural da obediência sobre o ideal de aperfeiçoamento da democracia.

►Em primeiro lugar, a hegemonia burguesa (acumulação do capital para o capital, ou primado do sistema financeiro sem controle social [i]) é notadamente um fenômeno cultural. Implica educação em matéria de obediência, é imposta sobre a tendência para a domesticação das classes subalternas.

O regime do voto obrigatório forçado revela-se um aspecto de hegemonia da classe burguesa, não somente em função do caráter vigilantista sobre as classes subalternas, projetado no desprovido antiabsenteísmo do voto sob ameaça, ou “sob pena de…”, propalado pelos neoliberais, mas, notadamente, em razão da instituição imprópria do valor cultural da obediência, com prevalência sobre o ideal político (aperfeiçoamento da democracia), e isto em detrimento da soberania social exercida nos grandiosos atos coletivos da inesquecível campanha das Diretas Já (1983-1984).

 

O eleitor brasileiro atual formou-se, e afirmou sua consciência democrática, ao participar na campanha das Diretas já, nos oitenta.

 

Daí, desse imbróglio da obrigatoriedade, decorre a injustiça histórica, posto que, em virtude do objeto enfocado naqueles atos coletivos dos anos oitenta (integrados em uma corrente global que impulsionou a reconfiguração do mundo político e revitalizou o ideal do aperfeiçoamento coletivo da democracia, para além dos “muros”), a participação nas “Diretas já” aglutinou as diversas classes da sociedade e os variados setores da população não em suas reivindicações particulares, mas, especialmente, unindo-as como sujeitos da democracia eleitoral, sob a condição de eleitores.

Quer dizer, com independência e negando qualquer obediência, o eleitor brasileiro atual formou-se, e afirmou sua consciência democrática com seu posicionamento prévio contrário à obrigatoriedade do voto, demonstrando inegável capacidade política e maturidade cívica.

Em consequência, em nossa democracia eleitoral, não há negar o caráter abusivo da imposição atual do voto obrigatório, que não passa de um fator restritivo, há muito sem razão de ser, a projetar sua impropriedade sobre a educação nacional.

 

O regime draconiano do voto obrigatório reproduz o sistema cartorial[ii] na democracia eleitoral brasileira, e projeta sua impropriedade sobre a educação nacional.

 

Falso caráter educativo

 

►Em segundo lugar, já é tempo de ultrapassar a falsa crença de que a sustentação de um regime democrático incumbe unicamente aos representantes políticos, simples corolário da ideologia dos neoliberais, que, inadvertidamente (!), reduzem a participação democrática à representação de interesses.

Daí decorre a posição subordinada dos eleitores, a quem, mediante a imposição do voto obrigatório, não é reconhecida função nenhuma na sustentação de um regime democrático.

Simultaneamente, aplicam o ponto de vista da formação em valores, para situar e compreender o grande número dos eleitores no contexto real das desigualdades sociais, uma vez estabelecida sua ausência de função.

 

O voto facultativo sem restrições vem a ser pressuposto de toda a ação para levar até o fim a superação do modelo tradicional de educação.

 

Ou seja, os eleitores devem aprender a votar, devem aprender que o voto é importante e que não podem deixar de votar, seja lá o que isto signifique além de escrever ou teclar um nome e inseri-lo na urna. Não podem alcançar o voto facultativo sem restrições porque é necessário certo nível de escolaridade, ainda não alcançado por um grande número de eleitores que, se supõe, dificilmente o alcançarão em um tempo razoável, perpetuando assim o voto obrigatório.

Tornados desta forma eternos aprendizes, e mediante a perpétua imposição do voto obrigatório, os eleitores são, então, subordinados à hierarquia dos cartórios eleitorais, perante os quais devem obediência legal para seu aprendizado.

A ordem dos cartórios eleitorais adquire deste modo um falso caráter educativo, e, por exigirem a obediência a suas disposições, passam os mesmos a valer como se fossem instâncias transmissoras de valores hierárquicos para a docilidade, estabelecendo, nos deveres de comprovação (dever de dar prova para punição sobre si mesmo) e justificação, as condutas abusivamente instituídas na democracia eleitoral brasileira[iii].

►A educação em matéria de obediência, que sustenta a hegemonia burguesa, tem paralelo no modelo da escola tradicional, como instância transmissora de valores hierárquicos, baseada na posição de subordinação dos aprendizes.

Quer dizer, tendo em conta que os valores hierárquicos são regidos pelo princípio de eficácia subordinante dos poderes constituídos, no regime do voto obrigatório, em nível do conjunto dos cartórios eleitorais, se reproduz uma instância transmissora de valores hierárquicos, e aos eleitores, reduzidos ao dever de obediência, corresponde à posição de subordinação.

Desta forma, evidencia a relação de complementaridade entre os dois modelos tradicionais, o da escola e o dos cartórios eleitorais. A mudança do regime para a democracia com o voto facultativo sem restrições vem a ser pressuposto de toda a ação para levar até o fim a superação do modelo tradicional de educação, e vice-versa.

 

A função domesticadora

 A falsa crença de que o voto obrigatório deve ser mantido porque seria um fator do desenvolvimento já não encontra sustentação na tendência renovadora da consciência coletiva democrática e participativa, que atualmente se afirma em direção contrária ao domínio dos sistemas financeiros sem controle social.

É restritivo compreender a participação eleitoral precipuamente sob o aspecto demográfico (quantidade massiva de população votante), pois isto significa valorizar a docilidade [Docilidade para o eleitor significa cumprir os supostos deveres de comprovação (dever de dar prova para punição sobre si mesmo e justificação perante os cartórios], e tentar acomodar a democracia às desigualdades sociais, sem ter em conta as experiências históricas do eleitorado contrárias à obrigatoriedade, nem sua atitude previamente crítica à função domesticadora   do voto obrigatório como fator de reforço da hegemonia burguesa, que se exerce mediante a indevida imposição da obediência (cidadania permitida).

Notem que a domesticação no mais alto grau corresponderia ao estado em que, como filhos da sociedade no sentido mais literal, os homens coincidiriam substancialmente com ela, tornados dóceis expoentes da totalidade coletiva e estando condicionados socialmente, isto é, não simplesmente equiparados ao sistema dominante por um desenvolvimento posterior, mas numa relação eternizada em nível biológico. De que observou T. W. Adorno ao situar essa matéria em seus comentários sobre o “complexo de impotência” [iv].

 

Cada vez mais se afirma a percepção de que o voto obrigatório traz mal-estar

Além disso, cada vez mais se afirma a percepção de que o voto obrigatório traz mal-estar. Até mesmo os estudos sobre desenvolvimento político, desde o ano 2000, já incluíram dentre seus critérios o mal-estar causado pela obrigatoriedade do voto.

De fato, podem ler em um artigo especializado, elaborado com base em pesquisa de opinião pública, a ponderação que atribui ao “efeito de liberdade” a razão da suposta apatia entre a população em geral.

Toma-se um ambiente hipotético sem obrigatoriedade de voto e se confronta as respostas que declaram não votar na suposição de voto voluntário. A conjetura compreende, nessas atitudes contrárias ao livre comparecimento, que os sujeitos podem estar informando, em algum nível, seu “mal-estar” com a obrigatoriedade do voto, e não sua indiferença quanto aos resultados políticos.

Quer dizer, os indivíduos pesquisados preferem retomar plenamente sua liberdade pelo não comparecimento, mesmo diante do voto voluntário. Uma vez que, mudado o modelo e sendo declarada, tal atitude repele a indiferença do “não sei” (para o quesito “você votaria no regime de voto facultativo”?), trata-se, então, por exclusão, de um indicador preciso do mal-estar com o voto obrigatório.

 

O caso do analfabeto participativo

 

Essa conjetura nutre-se na projeção do caso chamado do “analfabeto participativo”, lembrando que se trata de uma categoria que não está sujeita a obrigatoriedade do alistamento eleitoral nem do voto.

Assim, os que se incomodaram em retirar o título de eleitor são tidos como mais motivados comparados ao restante da população registrada. Daí a classificação de analfabetos especialmente participativos. A retirada da obrigatoriedade torna a ação mais atrativa, e os pesquisados “liberados” podem expressar uma disposição maior em engajar-se na atividade do que aqueles que estão sob a obrigatoriedade.

A inclusão da variável mal-estar foi então contemplada diante da seguinte constatação: Se os não escolarizados são especialmente participativos devido a seu sentimento positivo quanto ao voto (obrigatório, mas adotado por motivação), a aplicação na pesquisa do novo modelo conjetural de comparecimento voluntário deveria mostrar um maior efeito positivo para a educação ou para os mais escolarizados. Como tal alternativa esperada não se verificou, os pesquisadores admitiram que nenhuma outra variável explicativa completava melhor que a experiência do mal-estar com o voto obrigatório. Ou seja, o “efeito de liberdade” alterou significativamente o comparecimento voluntário.

 

O mal-estar tem início no momento em que cada um de nós sente ser necessário estar consciente dessa obrigatoriedade constrangedora.

 

O problema existencial

►Mas não é tudo. O problema existencial com o voto obrigatório é que no mínimo ele é dois: há o constrangimento no ato de votar e há o constrangimento em comparecer aos locais de votação.

Se no ato de votar cada um de nós é obrigado a comprovar que votou nas eleições anteriores para poder acessar a urna, no comparecimento aos locais de votação, por sua vez, cada um de nós é obrigado a aceitar a obrigatoriedade de ir votar, isto é, deve estar ciente e consciente de que pode comprovar seu comparecimento às eleições anteriores.

O mal-estar tem início no momento em que cada um de nós sente ser necessário estar consciente dessa obrigatoriedade constrangedora.

Como se sabe, o mal-estar se faz sentir na experiência de cada um lá onde a subordinação do outro penetra na formação das mentalidades. Quer dizer, sempre que os amparos à afirmação do indivíduo, notadamente a psicologia, deixam de vigorar ou simplesmente mudam de função e, ao invés de suscitá-la, passam a reprimir a afirmação individual positiva e mais ou menos consciente da liberdade pode-se constatar o mal-estar – seja como decaimento ou falta de vitalidade, seja como inquietação moral.

Objetivamente, o mal-estar faz parte do processus em que, por um desenvolvimento posterior, os indivíduos se tornam socialmente constrangidos, e se encontram equiparados ao sistema dominante na ambiência em que tomam parte. É esse processus geral de subordinação que se observa no regime do voto obrigatório, em tal modo que o argumento oficialista da “obrigatoriedade / absenteísmo” vem a ter eco nos indivíduos, tornando-se um standard da mentalidade desse sistema.

E não há exagero nisto. Basta lembrar que, datando de 1965 [v], a lei instituidora das cominações de sanções sobre os eleitores releva do autoritarismo tecnoburocrático, e foi concebida exatamente para cercear previamente qualquer tentativa de boicote das eleições indiretas então estabelecidas. Daí o suposto combate ao pretenso absenteísmo eleitoral como característica do establishment.

 

***

 

O sentimento de impotência

Como lugar psicológico da ideologia do antiabsenteísmo eleitoral

 

► O mal-estar se agrava, torna-se consciente quando cada um de nós-outros [veja Nota Complementar] é provocado a refletir sobre a relação que mantém com o voto obrigatório, formar sua opinião a respeito de si como eleitor. É quando o sentimento de impotência fala mais alto: posso me opor à ordem? Tal o lugar psicológico da ideologia da obrigatoriedade como mistificação da impotência.

De fato, o mito do antiabsenteísmo só toma corpo como “argumento do povo ausente” porque cada um padece o sentimento da impotência ante a obrigatoriedade constrangedora e, então, faz eco à representação de que “o voto deve ser obrigatório porque o povo precisa aprender a votar”.

E isso é assim porque há uma inversão no lugar psicológico da ideologia. Basta lembrar que, como cidadão da República Federativa, o eleitor brasileiro nasceu felizmente antes da ideologia da obrigatoriedade constrangedora!

Vale dizer, a obrigatoriedade como imposição legal não é um instrumento originalmente inserido pela República para sua defesa contra uma reação do regime antigo, como pudera haver ocorrido em outras sociedades neocoloniais. Por sua vez, em nossa história democrática, o voto obrigatório tampouco surgiu como ideologia draconiana e punitiva aos eleitores faltosos, mas como simples instrumento de defesa da cidadania ampliada com adoção do voto da mulher, proclamado na Constituição de 1934.

Daí que é difícil compreender a vigência da atual obrigatoriedade constrangedora normativa sem levar em conta, na extensão do conformismo costumeiro próprio às condutas políticas (o favor pessoal, as recomendações, as indicações), a existência do estado de impotência do eleitor que lhe dá o suporte. É porque o eleitor encontrou-se impotente para exercer seu voto em liberdade de expressão, com o prolongamento sem crítica de uma legislação originária do regime de exceção (o atual Código Eleitoral data do autoritarismo burocrático militar), que passou a fazer eco à representação anti-absenteísta e, por esta via de recorrência, submeteu-se, subordinou-se, configurando uma psicologia da obediência na base do sistema do voto obrigatório com sanções legais [vi].

Daí o agravamento do mal-estar: constrangimento no ato, constrangimento na presença, constrangimento na aceitação reflexiva do… constrangimento!

 

Reforço da hegemonia burguesa

No regime do voto obrigatório, em que o argumento oficialista da “obrigatoriedade versus absenteísmo” vem a ter eco nos indivíduos e se torna um standard da mentalidade desse sistema, cabe pôr em relevo que o mal-estar experimentado no processus geral de subordinação assim estabelecido é um dado de liberdade bem mais profundo do que mera exaltação individualista.

Neste sentido, cabe comentar a interpretação do mal-estar no quadro crítico da história do século vinte, especialmente em relação à estreita vinculação entre hegemonia burguesa, por um lado, e complexo de impotência, por outro lado.

 

Crítica da ideologia do futurismo

Com efeito, em modo contrário ao que se diz por aí, o complexo de impotência ultrapassa o psiquismo individual, tem dimensão coletiva. É um fenômeno não redutível aos transtornos da libido por si só, como nos estudos sob o complexo de Édipo, mas combina-se a certos efeitos de um ambiente com símbolos estandardizados e condutas cristalizadas, implicando notadamente a domesticação, como docilidade na obediência.

A descrição do complexo de impotência passa inexoravelmente pela crítica da ideologia do futurismo [vii] que nada mais consegue do que figurar os prolongamentos de linhas já existentes na civilização técnica, compondo, então, nesses prolongamentos do Sempre Igual da produção em massa, uma montagem que se afirma inseparável da utopia negativa – um futuro onde o déjà-vu coletivo se prolonga indefinidamente.

De fato, o mundo da comunicação, a reprodução do Sempre Igual, a que corresponde a ideologia do futurismo, veio a ser imposto sobre a vida social em correlações com os mecanismos da autorregulação do capitalismo organizado, predominante desde os anos quarenta, quando se constata o fim definitivo da economia de mercado liberal e tem lugar a hegemonia burguesa que aí está.

Lembrem que, desde os anos 40/50, deixou de existir definitivamente o mercado da economia liberal, que cedeu lugar ao papel regulador do Estado através de políticas econômicas, inclusive com políticas de incentivo ao investimento (“Livre Mercado”), associadas ao fortalecimento de organismos multilaterais de cooperação comercial, a exemplo da OCDE.

Quando se fala em regulação do capitalismo em sentido geral consideram os esforços para evitar agravamento das crises: política fiscal (keynesianismo), política cambiária, sistema e regulação financeira, sistema de bancos centrais (política monetária), basicamente. O Federal Reserve Bank, dos EUA, primeiro Banco Central, foi criado em 1913, na sequência da crise de 1907 – semelhante à grande depressão dos anos de 1930 –, dando início ao Federal Reserve System, foco da política monetária das nações, que, na mencionada década de quarenta, possibilitou a reconstrução mundial.

Além disso, o culto do instrumento tomado como separado de toda a destinação objetiva – incluindo a afecção fetichista em possuir perfeitos equipamentos de toda a natureza – , no âmbito da civilização técnica como a universal analogia de todo o produzido massivamente, coisas e homens, levou ao desaparecimento da contraposição de espírito, no sentido dos bens culturais da tradição, por um lado e, por outro lado, a natureza como paisagem, isto é, criação sem dominar mais além da sociedade, termos esses dos quais se concebia, em maneira mítica, a suprema reconciliação [viii].

 

 

Complexo de Impotência e dessubjetivação

 

 

Em consonância com o desaparecimento daquele tema central, desponta o esquema de uma dessubjetivação pura, a que se identificam os sujeitos-objetos (a) em sua incapacidade para perceber e pensar o que não é como eles mesmos; (b) em sua autossuficiência cega de sua própria existência; (c) em sua imposição da pura utilidade subjetiva.

Observam-se, dessa maneira, certas involuções já existentes no cotidiano da civilização técnica e da sociedade em regime avançado do capitalismo organizado, que tendem a se converter em disposições com que a cultura de massa organiza o tempo livre para fazer deste um Standard do decoro infantil. Tal é a analogia de coisas e homens afirmada na produção em massa.

 

A cultura de massa organiza o tempo livre para fazer deste um standard do decoro infantil.

 

  1. W. Adorno aí redescobre que essa equiparação se estende até a produção da consciência estandardizada de inúmeros homens pela communication industry: o mundo da ideologia futurista assenta-se na tríade “Community, Identity, Stability”. Seus truques respectivos são: (a) todo o indivíduo está incondicionalmente subordinado ao funcionamento do todo, com o “World Controller” operando no sentido de que seja impossível a alguém defrontar-se com uma questão problemática; (b) as diferenças individuais têm sua anulação garantida pela Identity combinada à (c) Stability, como o final de toda a dinâmica social.

Estendendo a estandardização à total pré-formação do homem, o mundo estático da negativa ideologia do futurismo assenta-se no “World Controller” e na tríade Community, Identity, Stability.

A panacéia que efetua essa garantia de estática social observada sociologicamente como estandardização é o Conditioning.

 

Neste ponto é alcançado o elemento central da descrição do complexo de impotência como alguma coisa que é produzida.

 

Tal “condicionamento” visa à produção de determinados reflexos, ou modos de comportamento por modificações planejadas no mundo circundante, mediante o controle técnico das chamadas condições de vida.

A ideologia do futurismo estende o controle à total pré-formação do homem, desde a geração artificial dos embriões e a direção técnica da consciência e do inconsciente, nos primeiros estágios da vida, até o “death conditioning”, isto é, um training que suprime das crianças o medo da morte, com o procedimento de fazê-las contemplar agonias, ao mesmo tempo em que se as faz degustar doces, para que sempre associem a ideia de morte aos mesmos.

Na utopia negativa desse mundo gerado no Conditioning, T. W. Adorno põe em relevo os seguintes aspectos que se aplicam à domesticação como produção da docilidade na obediência:

(a) O efeito final do Conditioning, como adaptação sobre si mesmo, é a interiorização e a aprovação da pressão e da opressão sociais por cima da tradição: “os homens se submetem a amar o que têm de fazer sem sequer saberem que isso é submissão” – assim se assegura subjetivamente sua felicidade e se preserva a ordem;

(b) A penetração dessa ordem torna ultrapassadas todas as ideias de que a influência da sociedade no indivíduo seja uma influência mediada pela família doméstica e a psicologia;

(c) Como filhos da sociedade no sentido mais literal, os homens coincidem substancialmente com ela, tornados dóceis expoentes da totalidade coletiva e estando condicionados socialmente (no sentido em que os behavioristas exerciam a domesticação pela manipulação dos instintos), isto é, não simplesmente equiparados ao sistema dominante por um desenvolvimento posterior, mas em uma relação eternizada em nível biológico. Daí o complexo de impotência.

A interpretação crítica é de que a ideologia do futurismo indica que a reprodução da estupidez, anteriormente realizada inconscientemente no ditame da mera miséria vital, está nas mãos da triunfal cultura de massa, uma vez eliminada aquela miséria.

 

Impotência e Condicionamento

 

Desta sorte, a miséria e a pobreza em geral, como fixação racional da irracional relação de classes que o complexo de impotência ressente, anuncia a superfluidade dessa relação mesma, a superação de seu caráter natural como ilusão na história descontrolada da humanidade, ficando a subsistência de classes para a diferenciação administrativa na distribuição do produto social.

Tal é a imagem da utopia negativa ao manter os embriões e as crianças pequenas das castas inferiores em uma atmosfera rarefeita em oxigênio, como se os mantivesse na mesma atmosfera dos bairros de barracos, só que construídos artificialmente.

 

A arcaica iloquacidade

Ou seja, o complexo de impotência se revela no disparate em que, deixada seu caráter supostamente “natural” para constar como dado na distribuição do produto social, a situação de miséria passa a ser reproduzida por mero condicionamento, na fixação racional da irracional relação de classes.

Desta forma, o complexo de impotência se estende na classe superior: a consciência daqueles que desfrutam sua própria individuação está submetida à estandardização por causa de sua identificação com o in-group, isto é, por uma sorte de identificação heteropática que, ao invés de um sujeito projetado para fora sobre os conteúdos da consciência coletiva, levam aos juízos pelo condicionamento (conditioning), estando o grupo constituído sobre a virtude de não entender, sobre o vazio de significação (o déjà vu se experimenta lá onde há ausência de significação). Tal é o circuito incivilizado da hegemonia burguesa, que aponta unicamente a degradação da fala, a decadência do dom de exprimir o pensamento pela palavra.

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Nota Complementar sobre o termo < Nós-outros >:

Para designar a forma mais complexa de sociabilidade, usamos a expressão clássica verificada inclusive em “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freire, < Nós-outros >, e não somente a designação < Nós > desse pronome, mais comum, a fim de pôr em relevo o fato de que, em os Nós, encontra-se incluída a sociabilidade por relações com outrem e que essa designação complexa e essa compreensão não são invenções do sociólogo, mas uma compreensão afirmada na própria língua portuguesa, uma realidade social.

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NOTAS DE FIM

 

[i] O movimento pelo controle social do sistema financeiro tem centro na proposta de taxação promovida pela ATTAC- Association pour la Taxation des Transactions pour l’Aide aux Citoyens.

[ii] Cartorialismo, na origem, é o regime de propriedade centrada no Estado (sem as certidões não tinham reconhecimento nem valor as propriedades nem se autorizavam as empresas) modelo de subordinação cristalizado na Lei de Terras de 1850, fórmula definitiva desenhada no Segundo Reinado.

[iii] Tudo indica que, depois das mobilizações históricas dos eleitores nos anos oitenta, a atuação vigilantista e punitiva dos cartórios eleitorais contra os eleitores e, notadamente, contra os supostamente faltosos, enseja um desvio de finalidade.

[iv] Adorno, Theodor W. (1903 – 1969): “Prismas: la Critica de la Cultura y la Sociedad”, tradução de Manuel Sacristán, Barcelona, Ariel, 1962, 292 págs. – (em Alemão: Prismen. Kulturkritik und Gesellschaft, Berlin, Frankfurt A.M. 1955).

[v] Será somente após o 2º Código Eleitoral de 1935, sancionado por Getúlio Vargas, com a projeção da mentalidade draconiana e punitiva, que será configurada a imposição de sanções cominadas contra aquele que deixar de votar. Retomada, tal legislação foi estabelecida com sanções agravadas somente em 1965, quando quatro das cinco possibilidades de penas legais que a Constituição prevê serão aplicadas ao eleitor, a saber: (a) privação ou restrição de liberdade (sem passaporte, a liberdade de ir e vir é restringida); (b) perda de bens (não poderá receber vencimentos nem participar de licitações); (c) multa; (d) suspensão ou interdição de direitos.

[vi] De um ponto de vista mais compreensivo e menos crítico, poder-se-á dizer que a recorrência do voto obrigatório com sanções cominadas representa um artifício de compensação encontrado pela elite política em face da modernização globalizada, para equilibrar, com a institucionalização da obediência, o desgaste dos simbolismos ligados ao conformismo costumeiro das condutas políticas, supondo que tal desgaste motivacional houvera levado ao absenteísmo eleitoral (“não vou votar porque não ganho nada com isso! ”)

[vii] Nada a ver com futurologia, mas a ideologia do futurismo implica uma corrente artística e literária que cedeu espaço à ficção desdobrada com a indústria cultural, de que o romance “Brave New World”, de Aldous Huxley, desenvolveu a projeção ideológica. Veja Adorno, Theodor W. (1903 – 1969): “Prismas: la Critica de la Cultura y la Sociedad”, tradução de Manuel Sacristán, Barcelona, Ariel, 1962, 292 págs. – (em Alemão: Prismen. Kulturkritik und Gesellschaft, Berlin, Frankfurt A.M. 1955), págs. 102, 103 sq.

[viii] Tema central da filosofia burguesa, a unidade de natureza e espírito, foi concebida na especulação idealista como a suprema reconciliação.

 

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Este artigo é complementar ao ensaio O Eleitor, a Democracia e o Voto Obrigatório no Brasil

Mais informação:

http://jus.com.br/artigos/32612/desenvolvimento-e-democracia-real-no-brasil

http://www.bubok.es/libros/231051/A-Democracia-Eleitoral-no-Brasil

Perpetuando o mito do povo ausente nas eleições (Cyberaction in Defense of the Voter).

In history, portuguese blogs, twentieth century on September 21, 2008 at 11:43 am


►Estamos Chegando às eleições 2008 e o eleitor comparecerá mais uma vez tratado como desclassificado, suportando uma imensa carga punitiva, castigo sobre castigo, sem direito de defesa para impugnar os dispositivos que o atingem e o desclassificam. Não se ouve falar de medidas que corrijam a abusiva cominação de punições que o eleitor carrega nas costas quando se propõe comparecer para votar. Em realidade, na ocasião do comparecimento aos locais de votação não se vê o indivíduo-cidadão motivado realizando o ato político-jurídico que lhe compete, mas o ausente político que aparece.

►Se pesquisarmos os relatos dos que projetam a Reforma Política, encontraremos o pensamento ideológico em sua consciência mistificada omitindo-se em indagar quem é o eleitor e qual seu papel para as políticas do Estado. Em lugar de uma atitude crítico-histórica, constataremos um discurso que procede sem indagação alguma, respondendo previamente com uma imagem de quem é o povo, tirada de “O grande inquisidor” de Dostoiévski (“Os Irmãos Karamazóvi”), culto a uma figura escondida que tudo pode mas ninguém encontra.

É o discurso do absenteísmo político que está na cabeça mistificada do pensamento ideológico a dirigir a Reforma Política que por essa razão nada tem de realista.

►A suposição de que o ato de votar deve estar submetido a uma legislação draconiana centrada no absenteísmo político desconhece os números das eleições que mostram a falácia de tentar produzir motivação política a partir de punições ao eleitor faltoso. Somente 83,248 por cento do eleitorado compareceu aos locais de votação em 2006. De 125.913.134 qualificados somente 104.820.459 compareceram, faltando 21.092.675, sendo maior o números de eleitores faltosos nas principais regiões. Isto sem contar os votos em branco e votos nulos. Mas não é só este número que demonstra o caráter político do não-comparecimento.

Há um contingente que resiste às punições sobre punições, que, ademais de não atender à obrigatoriedade punitiva de comparecer aos locais de votação, opõe-se à segunda obrigatoriedade punitiva de apresentar-se como réu confesso para justificar (?!) seu não comparecimento. São 614.648 os eleitores faltosos contumazes, número suficiente para eleger um governador. Que pretenderá o pensamento draconiano fazer com este 0,5 por cento do eleitorado que não comparece por motivação política? Vivemos em Democracia. Estes números são oficiais e públicos, disponíveis na Internet em

basta acessar o website do orgão controlador < http://www.tse.gov.br/internet/index.html > e, no menu “Eleições”, clicar sobre “estatísticas do eleitorado” na guia à esquerda da page e pesquisar sobre os “faltosos” (neste momento o link é < http://www.tse.gov.br/internet/eleicoes/elei_faltosos_blank.htm >.)

► CIBERAÇÃO PELA SUPRESSÃO DAS PUNIÇÕES AO ELEITOR FALTOSO

MANIFESTO PARA UMA CIBERAÇÃO

JUNTO AOS CONGRESSISTAS DO PODER LEGISLATIVO EM BRASÍLIA.

COPIE O TEXTO ABAIXO E

ENVIE E-mail AO SEU DEPUTADO OU SENADOR

Os eleitores contrários à obrigatoriedade do voto na Democracia e inconformados ante o abusivo constrangimento punitivo que os atinge em seu direito/prerrogativa de exercer seu voto nas eleições em liberdade de expressão se unem neste MANIFESTO para demandar AÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA Lei nº.4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral) juntamente com as providências indispensáveis para suprimir de imediato toda a cominação de sanções a fim de assegurar ao eleitor colocado em suposta falta sua prerrogativa para impugnar tal dispositivo que o ating.

Data, Nome (ID), E-mail.

Leia mais : Grupo WSF-2008 Contribuição à Reflexão Sociológica.

Cyberaction in Defense of the Voter: Postagens Complementares.

Resumo para “A Utopia do Saber Desencarnado, a Crítica da Ideologia e a Sociologia do Conhecimento”.

In history, portuguese blogs, twentieth century on September 6, 2008 at 7:52 pm

Cultiva-se uma imagem restrita da nossa disciplina, tida equivocadamente como exclusivamente causal, imagem esta que, em toda a evidência, tem a ver com uma simplificação imprópria da sociologia do conhecimento identificada ao neo-hegelianismo de Karl Mannheim.

Autor muito influente nos Estados Unidos[1] com sua obra Ideologia e Utopia [2] e sua compreensão de que todo o conhecimento é ligado a questões práticas, Mannheim comprometeu seu pragmatismo.

Além disso, prejudicou a autonomia e o prestígio científico da sociologia do conhecimento de que ele foi o mais notado incentivador na primeira metade do Século Vinte ao elaborar um enfoque neo-espiritualista inteiramente baseado na concepção hegeliana conservadorista, tomando o saber como instrumento de adaptação do espírito às situações existentes ao longo da história.

Trata-se de uma posição filosófica preconcebida submetendo o princípio de sua sociologia que, ao contrário do que se poderia conjecturar, afirmava a determinação social do pensamento em razão do seu hegelianismo, e não em resultado das pesquisas concretas.

Mas não é tudo. Combinada a essa concepção do saber, considerado equivocadamente como se fosse um meio ou ambiência de adaptação do espírito (entendido este termo no sentido das Ciências Humanas, isto é, como o conjunto das obras de civilização – incluindo a arte, religião, direito, moralidade, educação, e o próprio conhecimento), Mannheim faz por segregar sua célebre representação de um sujeito histórico especial dotado com a plena ciência desta idealizada faceta instrumental do conhecimento.

Vale dizer, projetando uma ciência desse saber servindo para adaptar às situações existentes na história, Mannheim se representa um “estrato social desamarrado, relativamente sem classe” por ele chamada “intelligentsia socialmente desvinculada” – ou seja, um grupo privilegiado que pode acessar a um suposto pleno saber exatamente porque seria desprovido de amarras sociais e situar-se-ia acima dos interesses e dos grupos.

Posicionamento esse que é todo o contrário da sociologia do conhecimento, cujo ponto de vista acentua a variação do conhecimento em função dos quadros sociais e repele toda a utopia do saber desencarnado.

Essa imaginada “intelligentsia” socialmente desvinculada, “estrato desamarrado relativamente sem classe social alguma” desempenharia o “papel de vigiadores da perspectiva de um todo mistificado” (papel este tornado importante na produção econômica em decorrência dos cargos de gestionnaires ou managers) e seria correspondente à síntese ou à mediação viva pela criação deum foro alheio às escolas de partido político, em vista de salvaguardar a perspectiva do todo e o interesse pelo todo (mistificado)” [3].

Tendo em vista esse imaginado papel supra-social dos intelectuais como vigiadores da perspectiva de um todo mistificado, esse autor projeta o ensino de uma “ciência política” abstrata, ciência de um suposto saber servindo para adaptar às situações existentes na história.

Seja como for, por mais severas que pareçam estas observações críticas, o fato é que em momento algum a concepção mannheimiana desse grupo privilegiado de “vigiadores do interesse pelo todo” chega a ser diferenciada em face da tecnoburocracia nascente no século XX, como grupo urbano (gerentes, supervisores, experts) a que, em fato, essa representação parece corresponder [4].

Podemos então afirmar que Mannheim compromete a sociologia do conhecimento não somente por subordiná-la através do seu neo-hegelianismo à concepção utópica do saber desencarnado, mas por tentar utilizá-la em uma empresa ideológica particular, cujo quadro de referência será a idealização em “intelligentsia sem amarras” da tecnoburocracia, como instância de tecnificação do saber, dos controles sociais e das relações humanas.

Enfim, Mannheim confirma ainda seu neo-hegelianismo sustentando que a representação desse estrato como “mediação viva” resulta de uma linha de desenvolvimento que vem do romantismo passando pelo que chama “visão conservadora”, a qual estaria mais de acordo com as necessidades da época (cf.ib.p.186).

Desta forma, Mannheim substituirá a questão crítica sobre o espiritualismo de Hegel – assim deslocada e idealizada na convocação à tomada de consciência dos intelectuais como um estrato “desvinculado” e em flagrante confronto com a realidade histórica.

Por contra, do ponto de vista da “nova” sociologia do conhecimento, o que se observa não será tanto esse suposto estrato desvinculado, mas o fenômeno da radicalização dos intelectuais no século XX, favorecendo uma atitude anticapitalista.

Como se sabe a evolução política dos intelectuais – no sentido estrito de criadores de produtos ideológico-culturais – se insere em um marco mais vasto de radicalização da capa dos trabalhadores intelectuais em geral, nos países capitalistas avançados e no terceiro mundo. A causa (singular) principal desse fenômeno é a proletarização dessa capa.

Ou seja, a radicalização anticapitalista dos trabalhadores intelectuais no século XX se tornará patente quando a “extensão massiva do capital ao setor chamado terciário e as transformações ligadas à terceira revolução industrial (automatização, informática) produziram uma industrialização generalizada de todos os setores da atividade humana”.

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SUMÁRIO  DO ENSAIO

TEXTO 01:

A Utopia Do Saber Desencarnado Na Sociologia De Karl Mannheim:

Hegelianismo e Teodicéia.

TEXTO 02:

Ideologia e Sociologia do Conhecimento:

Os coeficientes pragmáticos do conhecimento e os limites da abordagem conservadora.

(Nota crítica sobre os continuadores de Karl Mannheim)

TEXTO 03

Ideologia e Sociologia do Conhecimento:

A consciência Mistificada

TEXTO 04

Notas Sobre o Exame do Problema Sociológico da Ideologia

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Aceder ao ensaio completo.


[1] Gurvitch, Georges (1894-1965): “Problemas de Sociologia do Conhecimento”, In Gurvitch (Ed.) et Al. ”Tratado de Sociologia – Vol.2”, Trad: Ma. José Marinho, Revisão: Alberto Ferreira, Iniciativas Editoriais, Porto 1968, Págs.145 a 189 (1ªedição Em Francês: PUF, Paris, 1960). Cf.pág. 161.

[2] Mannheim, Karl: « Ideologia e Utopia: uma introdução à sociologia do conhecimento », tradução Sérgio Santeiro, revisão César Guimarães, Rio de Janeiro, Zahar editor, 2ªedição, 1972, 330 pp. (1ªedição em Alemão, Bonn, F.Cohen, 1929; 2ªedição remodelada em Inglês, 1936).

[3] Mannheim, Karl: « Ideologia e Utopia: uma introdução à sociologia do conhecimento », op.cit. págs.178 a 189.

[4] Além dessa representação de um grupo sem amarras sociais, a sociologia de Mannheim pode ser referida ao quadro da tecnocracia inclusive pelo aspecto da concepção instrumental do saber.