SSF/RIO

A Dialética Sociológica, o Relativismo Científico e O Ceticismo de Sartre: Aspectos Críticos de um debate atual do século XX.

 

A Dialética Sociológica, o Relativismo Científico e

O Ceticismo de Sartre:

Aspectos Críticos de um debate atual do século XX.

A versão preliminar deste artigo foi apresentado à revista eletrônica de filosofia CRÍTICA NA REDE

Por

Autor JLumier2012

Jacob (J.) Lumier

Websitio Produção Leituras do Século XX – PLSV:

Literatura Digital

http://www.leiturasjlumierautor.pro.br/sociologia.htm

Rio de Janeiro, Março de 2008

(modificado em Junho de 2014)

 

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ABSTRACT:

Este artigo investiga a dialética sociológica no âmbito da cultura científica do século XX tendo em conta por um lado a reflexão sobre as conseqüências metodológicas dos avanços em microfísica e por outro lado a reação da filosofia sartreana da história, como obstáculo.


SUMÁRIO

A dialética sociológica:

notas sobre os procedimentos para descrever as atitudes coletivas.

É a constatação da impossibilidade em opor as atitudes individuais e as atitudes coletivas, e o reconhecimento da exigência em considerar todas as possibilidades de relações dialéticas no estudo sociológico desse fenômeno, que conduz a uma compreensão da aplicação ampliada dos procedimentos dialéticos utilizados na física quântica.

Na sociologia de Gurvitch o único caminho para escapar ao dogmatismo é a distinção entre vários procedimentos operativos de dialetização ou de clarificação (“éclairage”) dialética, os quais relevando todos do método dialético são aplicáveis de várias maneiras, seja de maneira exclusiva, de maneira concorrente, ou de maneira conjunta como o é no caso do estudo das relações entre atitudes individuais e atitudes coletivas, que exige como vimos a consideração de todas as possibilidades de relações dialéticas.

A Complementaridade Dialética

A Implicação Dialética Mútua

A Ambiguidade Dialética

A Polarização Dialética

A Reciprocidade de Perspectiva

Sem dúvida, a incoerência de Sartre para com Gurvitch situando a este junto dos positivistas lógicos em tolerância é desconsiderar o alcance realista da dialética no sentido ontológico do termo, ligada à sociologia diferencial dos agrupamentos sociais particulares e à microssociologia.

A retificação dos conceitos realizada pela relatividade como disposição da cultura científica do século xx é a prova do incremento psicológico que faz avançar a história dinâmica do pensamento.

Segundo Bachelard, foi em assimilar a noção das leis do acaso como ligações probabilitárias dos fenômenos sem ligação real que se ocupou o pensamento científico contemporâneo, caracterizado por uma multiplicidade nas hipóteses de base.

Desde a revolução de Heisenberg a objeção de que noções tão fundamentais como ‘posição e velocidade’ têm sentido universal já não procede.

Gurvitch crítico de Sartre

Datas de publicação das principais obras de Georges Gurvitch

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A Dialética Sociológica, o Relativismo Científico e o Ceticismo de Sartre:

Aspectos de um debate do século XX.

Por

Jacob (J.) Lumier

Primeira Parte:

A Dialética Sociológica:
Notas sobre os procedimentos para descrever as atitudes coletivas.

Epígrafe

Não há muita novidade em afirmar que a sociologia como ciência empírica da segunda metade do século XX encontra obstáculos nas pré-concepções filosóficas inconscientes herdadas da idéia de um Eu genérico idêntico em todos, acolhida por Rousseau e Kant.

Ralf DAHRENDORF nos lembra que Max Weber (apesar de seu culturalismo abstrato) “insistiu que o cientista social se esforçasse por distinguir os juízos de valor dos juízos científicos” e sublinha que essa “exigência de objetividade” foi “explicada bastante claramente no que Max SCHELER e Karl MANNHEIM chamaram de sociologia do conhecimento”, a qual por sua vez DAHRENDORF qualifica como “método para a auto-purificação dos cientistas sociais” [1].

É claro que essa exigência de objetividade como auto-purificação marca a condição mesma de um conhecimento científico e assimila a idéia renascentista de Bacon aspirando alcançar a “pureza do intelecto”, isto é, a idéia de purificar o intelecto, “purgar o intelecto de preconceito” conforme a versão de Karl POPPER [2].

Aliás, na defesa de sua teoria dinâmica do mundo dos produtos, como este notável filósofo situa o estudo das teorias e argumentos científicos, Karl POPPER faz a crítica da influência do psicologismo. Neste marco, nota que “deveria ser lembrado que Edmund HUSSERL e muitos pensadores ainda mais recentes consideravam uma teoria científica como uma hipótese científica que foi demonstrada verdadeira”, e que a tese do caráter conjectural das teorias científicas era ainda vastamente execrada como absurda quando o próprio POPPER tentou propagá-la nos anos a partir de 1930 (cf.ib.p. 348 sq). No seu dizer, “a idéia de KANT de um tipo padrão de intuição pura compartilhada por todos nós (…) dificilmente pode ser aceita” [3]).

O tópico mais crítico do limiar comum à filosofia e à sociologia refere-se à aplicação prévia do que Georges GURVITCH chama “purificação pelos procedimentos do hiperempirismo dialético” precedendo qualquer ciência e qualquer filosofia [4]. Quer dizer, para que a sociologia chegue a pôr à filosofia questões que exigem respostas positivas -tais como, por exemplo, questões sobre os sujeitos coletivos do conhecimento, sobre a possibilidade dos juízos coletivos, sobre o conhecimento coletivo e a sua validade, sobre a liberdade coletiva e as suas relações com a liberdade individual e com o ser, etc. – é preciso pôr em relevo que a multiplicidade dos procedimentos dialéticos operativos acentua as nuances e refina a descrição da realidade social, evidenciando a complexidade de toda a explicação válida em sociologia.

Com efeito, a dialética sociológica funda-se nas atitudes coletivas consideradas por GURVITCH como conjuntos, configurações sociais (Gestalten) virtuais ou atuais que implicam ao mesmo tempo: 1) – uma mentalidade, em particular preferências e aversões afetivas; 2) – predisposições a condutas e reações; 3) – tendências a assumir papéis sociais determinados; 4) – um caráter coletivo; 5) – um quadro social em que: (a) – os símbolos sociais se manifestam, e (b) – escalas particulares de valores são aceites ou rejeitadas. As relações dialéticas surgem da impossibilidade em opor as atitudes individuais e as atitudes coletivas, como alternativas. Elas se encontram umas vezes em relações de complementaridade, outras vezes em relações de implicação mútua; umas vezes em relações de ambigüidade, outras vezes em polarização; outras vezes, enfim, em relações de reciprocidade de perspectiva.

No estudo sociológico das relações entre as atitudes individuais e as atitudes coletivas todas essas possibilidades de relações dialéticas devem ser consideradas. Não basta encarar apenas umas ou outras; não basta privilegiar a complementaridade, por exemplo, em detrimento da implicação mútua, da ambigüidade, etc. Essa exigência decorre da constatação de que: (a) – os indivíduos mudam de atitude em função dos grupos aos quais pertencem -sendo os grupos formados exatamente com base na continuidade e no caráter ativo de uma atitude coletiva; (b) – os papéis sociais que os indivíduos assumem ou os personagens que eles encarnam mudam segundo os círculos sociais diferentes a que eles pertencem [5] .

Desta sorte, um pai ou um marido muito autoritário, p.ex., pode simultaneamente desempenhar o papel de um colega particularmente atencioso, etc.; Em cada grupo um indivíduo desempenha um papel social diferente: é ajustador, vendedor, professor, etc.; Por outro lado, esse mesmo indivíduo pode desempenhar nesses grupos papéis umas vezes sem brilho, outras vezes brilhante; umas vezes subordinados, outras vezes dominantes; segundo estruturas e conjunturas sociais variadas os mesmos indivíduos e os mesmos grupos podem desempenhar papéis muito diferentes e até opostos [6] .

Essas relações dialéticas entre as atitudes individuais e as atitudes coletivas levam a sociologia a estabelecer o que GURVITCH chama os “coeficientes de discordância” entre as opiniões exprimidas nas sondagens de opinião pública e as atitudes reais dos grupos.

Quer dizer, as atitudes coletivas permitem a experimentação. Segundo nosso autor, elas constituem, talvez, na realidade social, o nível mais paradoxal: são ao mesmo tempo flutuantes e persistentes, inesperadas e previsíveis: elas não se deixam apreender e permitem ao mesmo tempo a experimentação.

Na sociologia de GURVITCH, são as atitudes coletivas que abrem a série das camadas em profundidade cujo conjunto constitui o aspecto propriamente espontâneo do social, em relação ao qual os modelos, as práticas, os papéis sociais são intermediários.

A exigência em considerar todas as possibilidades das relações dialéticas em decorrência da definição mesma das atitudes coletivas como configurações sociais (Gestalt), confirma-se no fato de que as atitudes se manifestam nas três escalas em que se constituem os fenômenos do todo social, os “fenômenos sociais totais[7] no dizer de GURVITCH, compreendendo a escala dos Nós (Nosotros), a escala dos grupos e classes sociais, a das sociedades globais.

Sendo uma das manifestações de gestalt sociais as atitudes exprimem ambientes imponderáveis [8] ; são tratadas como um conceito primordialmente sociológico e constituem um nível específico, um patamar em profundidade da realidade social que abarca um campo mais vasto de todas as ligações de papéis sociais, de todas as práticas e todos os modos mais flexíveis e, geralmente, mais vasto do que todas as condutas mais ou menos regulares. Bem entendido, esse campo das atitudes coletivas é mais vasto do que todos os aparelhos organizados, servindo a todos esses níveis de fundamento.

Além disso, as manifestações das atitudes coletivas refletem-se em cada um dos outros planos sobrepostos que assim podem ser considerados como expressões, produções ou realizações das atitudes coletivas. Sublinha nosso autor que é a constatação da impossibilidade em opor as atitudes individuais e as atitudes coletivas, bem como o reconhecimento da exigência em considerar todas as possibilidades de relações dialéticas no estudo sociológico desse fenômeno que conduz a uma compreensão da aplicação ampliada dos procedimentos dialéticos utilizados na física quântica.

É a constatação da impossibilidade em opor as atitudes individuais e as atitudes coletivas, e o reconhecimento da exigência em considerar todas as possibilidades de relações dialéticas no estudo sociológico desse fenômeno, que conduz a uma compreensão da aplicação ampliada dos procedimentos dialéticos utilizados na física quântica.

Diz-nos GURVITCH a este respeito que na leitura dos diversos números da revista “Dialectique” (1947) os físicos modernos insistem no procedimento operativo por complementaridade, deixando de lado a implicação mútua, a ambigüidade, etc.

Se nas ciências da natureza o procedimento operativo por complementaridade dialética é o único aplicável, acrescenta nosso autor ser insuficiente concluir que o mesmo deveria valer para as ciências do homem: a realidade humana e social como fenômeno total exige a aplicação do conjunto dos procedimentos operativos dialéticos disponíveis [9].

Na seqüência Gurvitch nos esclarece as principais aplicações da complementaridade, seguintes: (a) – depois que Niels BOHR, Louis de BROGLIE, J.L.DESTOUCHES aplicaram a dialética da complementaridade às ondas e corpúsculos, (b) – Werner HEISENBERG e von NEWMAN ampliaram essa aplicação até as relações entre situação e velocidade dos elétrons, (c) – F.GONSETH e seus colaboradores, por sua vez, estenderam a dialética da complementaridade às relações entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno em matemáticas.

Todavia, GURVITCH sustenta que nem o sentido do termo “complementaridade”, nem a relação deste procedimento operativo com outros procedimentos de dialetização, nem, enfim, suas relações com o método dialético ele mesmo e com a realidade estudada, não foram entretanto esclarecidos e aprofundados.

Em seu comentário, nosso autor sublinha as seguintes funcionalidades no histórico da dialética: (a) – Niels BOHR introduziu a complementaridade dialética para dar fim ao conflito que opunha em microfísica a teoria corpuscular e a teoria ondulatória da luz: para ele essas duas teorias não se excluem, mas não podem ser aplicadas ao mesmo tempo, já que uma esconde o enfoque da outra, semelhantes nisso aos dois costados de uma mesma montanha que só se tornam visíveis quando se chega ao cume.

(b) – Louis de BROGLIE (em 1937) e em sua seqüência Jean Louis DESTOUCHES estenderam a aplicação da complementaridade dialética a uma série de problemas da física nuclear moderna. (c) – O matemático e pensador da lógica simbólica F.GONSETH insistiu nas ciências exatas modernas sobre o vai-vem incessante entre o especulativo e o experimental e -prossegue GURVITCH- sobre o fato de que, em matemáticas, o infinitamente grande e o infinitamente pequeno se detêm e se pressupõem; revelou que nessa matéria o intuitivo e o construtivo estavam compreendidos em uma dialética de complementaridade.

Segundo nosso autor, essa ampliação do debate em torno da revista “Dialectique” em favor do procedimento dialético por complementaridade pode ser creditada aos dois fatos seguintes: (a) – ao princípio da relatividade generalizada explorado por Einstein, que levou a ciência a perder seus assentamentos tradicionais enraizados em um tempo e em um espaço universais e unívocos – os quais elas tiveram que abandonar em benefício de uma multiplicidade de espaços-tempos; (b) – às equações de incerteza, de HEISENBERG e von NEWMAN, que demonstraram a impossibilidade de mensurar simultaneamente a posição e a velocidade do elétron.

Segundo GURVITCH, entendeu-se que o processamento dialético é essencialmente depuração de um conhecimento sob a pressão de uma experiência com a qual ele se defronta [10]. Ou ainda, no dizer de BARZIN, na mesma revista: “o que nós denominamos dialética é uma concepção da ciência segundo a qual toda a proposição científica é em princípio revisável”.

Em conclusão, nosso autor remarca que essa introdução da dialética nas ciências exatas foi feita em referência especulativa às seguintes exigências metodológicas: (a) – para abrir um acesso em direção ao que é escondido, ao que é dificilmente possível ou de difícil apropriação e apreensão; (b) – para renovar experiência e experimentação; (c) – para tornar essencialmente impossível a esclerose dos quadros operativos.

Quer dizer, trata-se, então, de uma dialética que não é nem uma arte de discutir e de enganar, nem um meio de fazer a apologia de posições filosóficas preconcebidas – sejam elas denominadas racionalismo, idealismo, criticismo, espiritualismo, materialismo, fenomenologia, existencialismo. Tal é a dialética experimental e relativista, recorrendo à especulação e ao conjetural para melhor adaptar os objetos do conhecimento às profundezas do real.

O mesmo vale, segundo GURVITCH, para um importante filósofo da cultura científica como Gaston BACHELARD, quem começou a introduzir a dialética complexa desde o ano de 1936 [11] e notou que a dialética é ligada a procedimentos operativos que tornam relativo o aparelho conceitual de toda a ciência.

O desdobramento em vários procedimentos dialéticos descobertos, examinados, elaborados, aplicados e desenvolvidos por GURVITCH [12] para completar o único procedimento por complementaridade introduzido e aplicado na física contemporânea é sustentado com o argumento da impossibilidade [13] seguinte: 1º) a impossibilidade de que o método dialético corresponda rigorosamente à multiplicidade dos movimentos dialéticos reais – pois se terminaria assim por espalhá-lo ao infinito; 2º) a impossibilidade de que, no oposto, a manutenção de um único procedimento operativo do método dialético seja aplicável a toda a multiplicidade dos movimentos dialéticos reais, diversamente orientados e às vezes irredutíveis, pois isso ensejaria uma inflação e um fetichismo das antinomias e por seu intermédio provocaria um retorno ao dogmatismo. Quer dizer, agravaria o erro de impulsionar a dialética como método para a polarização dos contraditórios[14] .

Na metodologia de GURVITCH o único caminho para escapar ao dogmatismo é a distinção entre vários procedimentos operativos de dialetização ou de clarificação (“éclairage”) dialética, os quais relevando todos do método dialético são aplicáveis em várias maneiras, seja em maneira exclusiva, concorrente, ou em maneira conjunta, como no estudo das relações entre atitudes individuais e atitudes coletivas, que exige como vimos a consideração de todas as possibilidades de relações dialéticas.

Nosso autor relaciona os cinco procedimentos operativos nos quais se manifesta o método dialético, dos quais já tivemos ocasião de mencionar e veremos logo adiante um por um, na seguinte ordem: 1º) – a complementaridade dialética, 2º) – a implicação dialética mútua, 3º) – a ambigüidade dialética, 4º) – a polarização dialética, 5º) – a reciprocidade de perspectiva.

Na descrição desses procedimentos, o tópico posto em relevo é a diferença entre a disposição da experiência nas ciências da natureza, a qual visa conteúdos que neles mesmos nada têm de dialéticos, por um lado, e por outro lado a experiência arregrada em sociologia, a qual, por sua vez, visa conteúdos dialéticos, como o é a própria realidade social.

Com efeito, qualquer teoria da experiência tomada como unívoca e servindo a uma pré-concepção filosófica (sensualismo, associonismo, positivismo, pragmatismo, etc.), deforma a experiência, a estanca, destrói o imprevisível, a variedade infinita, o inesperado de seus quadros [15] .

Em sociologia, o empirismo dialético e o realismo dialético baseiam-se nos mesmos caracteres da realidade social, da experiência e da dialética. GURVITCH constata que realidade social, experiência e dialética consistem nas obras (quer se trate do Direito, Conhecimento, Moral, etc. incluindo seu aspecto de regulamentações ou controles sociais) e nos atos coletivos e individuais (juízos, intuições, etc.), frequentemente interpenetrados, conforme se pode ver nas atitudes coletivas implicando um quadro social em que escalas particulares de valores são aceites ou rejeitadas.

A experiência é o esforço dos homens, dos Nós (Nosotros), dos grupos, das classes, das sociedades globais para se orientarem no mundo, para se adaptarem aos obstáculos, para os vencer, para se modificarem e modificar seus entornos, sendo a essa compreensão que GURVITCH refere a noção de “práxis” como sendo de uma só vez coletiva e individual.

A experiência da realidade social arregrada pela sociologia põe em relevo a necessidade do recurso aos procedimentos dialéticos operativos: sendo experiência do movimento dialético real próprio ao mundo humano e das manifestações desse movimento nos objetos do conhecimento construídos pela sociologia.

A COMPLEMENTARIDADE DIALÉTICA

No estudo sociológico do procedimento operativo por complementaridade dialética se nota a crítica ao erro de confundi-lo aos “extremos que se podem juntar”.

Os exemplos de extremos que não têm sentido uns sem os outros incluem o pólo Norte e o pólo Sul, o Oriente e o Ocidente, o pólo positivo e o pólo negativo da corrente elétrica, o branco e o negro, o alto e o baixo, o dia e a noite, o quente e o frio, o inverno e o verão, a direita e a esquerda, etc., extremos esses que nada têm a ver com a complementaridade dialética.

Malgrado a presença de múltiplos intermediários entre esses extremos já acessíveis por eles mesmos, não surge nenhum problema de um conjunto, de uma totalidade não somente real mas conceitual; tampouco se entrevê “alguma incapacidade dos conceitos retidos”. Quer dizer, os “procedimentos discursivos” se revelam inteiramente suficientes e o método dialético nada tem a ver nisso [16] (ib.p.248).

No procedimento operativo por complementaridade dialética, por sua vez, se trata de desvelar a aparência de uma exclusão recíproca dos termos ou dos elementos contrários que se revelam à clarificação dialética como irmãos siameses, duplos se afirmando uns em função dos outros e desse fato participam dos mesmos conjuntos, os quais podem ser conjuntos de gêneros muito diferentes.

Nas ciências da natureza inanimada, a dialética de complementaridade se propõe simplesmente mostrar a relatividade e a insuficiência dos conceitos contrários, utilizados para exprimir um conjunto conceitual que não se consegue delimitar de outra maneira.

Tratando-se ainda de conjuntos conceituais e não dos conjuntos reais, nota-se na sociologia que os tipos microssociais, os tipos de agrupamentos, os tipos de classes sociais e os tipos de sociedades globais se apresentam de início compreendidos numa dialética de complementaridade. Todavia, GURVITCH põe em relevo o caráter mais coerente desses últimos conjuntos conceituais em face daqueles considerados nas ciências da natureza, já que as tipologias sociológicas devem servir para estudar os conjuntos reais que se engendram eles mesmos em um movimento dialético direto, limitando-se a complementaridade unicamente como uma etapa preliminar de dialetização.

Quer dizer: (1) – posto que os tipos sociais são construídos em função uns dos outros, eles exigem a clarificação por implicação mútua; (2) – posto que eles podem tornar-se tão simétricos, eles devem ser postos em reciprocidade de perspectiva; (3) – possibilidades essas que não excluem que eles possam entrar em contradição e assim exigir a clarificação dialética da polarização. Essas exigências de aplicação dos outros procedimentos operativos a mais da complementaridade dialética em sociologia são verdadeiras quando se trata não só dos quadros conceituais operativos, mas das manifestações dos conjuntos sociais reais eles mesmos, tais como os Nós (Nosotros), os grupos, as classes, as estruturas, as sociedades globais.

Na apreciação dos três gêneros de complementaridade dialética, GURVITCH nota a caracterização de um jogo de compensações, sendo contemplados casos (a) – de relações entre Eu, Outrem e Nós (Nosotros); (b) – de relações entre as manifestações de sociabilidade, os grupos e as sociedades globais; além de (c) – aspectos dos patamares em profundidade da realidade social. Tais gêneros são os seguintes: (A) – Complementaridade das Alternativas que se Revelam não serem tais; (B) – Complementaridade das Compensações; (C) – Complementaridade dos Elementos voltados na mesma Direção.

(A) – O primeiro gênero de complementaridade estudado por GURVITCH foi contemplado pelos físicos modernos ao tratarem da relação entre onda e corpúsculo, entre posição e velocidade, entre infinitamente pequeno e infinitamente grande, e mais amplamente ao tratarem das “relações entre todas as alternativas que se considera (defeituosamente) como não podendo se reencontrar” ou entrar em luta. “Defeituosamente”: posto que “se recusa a integrá-las em um mesmo conjunto onde elas se completam, deixando de ser alternativas” [17].

Nota GURVITCH que a “complementaridade das alternativas que se revelam não serem tais” pode servir ao progresso da “análise filosófica” do problema da ligação entre “explicação” e “compreensão”, levando a demonstrar que as alternativas que parecem se mover em esferas separadas são complementares que se encobrem reciprocamente, “já que não se consegue entrever o conjunto específico ao qual elas pertencem” – que é o conjunto da condição humana e das totalidades sociais.

Portanto, o critério da complementaridade das alternativas que se revelam não serem tais reside na dificuldade em entrever o conjunto no qual as alternativas se integram, se completam e deixam de ser tais.

GURVITCH detecta esse gênero de complementaridade na maneira em que os neokantianos interpretaram defeituosamente a ligação entre norma e realidade e entre liberdade e determinismo. Este é o caso igualmente dos “zelosos de DILTHEY e de Max WEBER”, dos “partidários da fenomenologia e do existencialismo”, que quiseram resolver “sempre defeituosamente” o referido problema da ligação entre “explicação e compreensão”.

A respeito do posicionamento neokantiano na análise sociológica de GURVITCH, por contra, uma vez que se constata serem as normas vocacionadas para combater os obstáculos concretos que se opõem à realização dos valores, revela-se inane o isolamento das normas e da realidade: sendo tomadas como prescrições e como causas nota-se que, quanto mais as regras se revelam eficazes, menos seu elemento normativo se encontra acentuado.

Quanto à complementaridade entre compreensão e explicação, lembra-nos GURVITCH que, para explicar, é preciso integrar os fatos particulares em um conjunto mais ou menos coerente do qual eles seriam as manifestações. Para tanto é preciso compreender esse conjunto e os caracteres da sua coerência. Os dois termos de compreensão e explicação se revelam como momentos de um mesmo processus.

(B) – No segundo gênero de procedimento operativo por complementaridade dialética, nota-se a complementaridade dialética como ligada a um jogo de compensações. Basta lembrar como já mencionamos os papéis sociais diferentes a que os indivíduos são chamados como participantes em grupos sociais diversos. Trata-se então, da complementaridade da compensação ou da orientação na direção inversa.

GURVITCH destaca a “relação entre esforço e resistência, entre dado e construído, entre mediato e imediato, contínuo e descontínuo, superficial e profundo, qualitativo e quantitativo, etc.: “trata-se de direções em sentido inverso cujos pontos de finalização não podem ser alcançados” – notando-se que esse gênero de complementaridade abre uma via particularmente ampla aos graus quase infinitos de passagens intermediárias [18].

No domínio da realidade social, essa dialética de complementaridade da compensação se encontra lá onde “mais o nível organizado domina menos a espontaneidade desponta”, e inversamente “mais a espontaneidade é plena menos o organizado se impõe”. Quer dizer, o nível organizado corre o risco da esclerose e a espontaneidade o da impotência. O organizado é vitalizado em diferentes graus pela penetração da espontaneidade, mas, para além de certo limite ele se arrisca a ser revirado ou à estalar sob a pressão explosiva da espontaneidade.

Segundo nosso autor, essa mesma complementaridade da compensação se observa lá onde mais os símbolos sociais são complexos e potentes menos o que é simbolizado tem importância e eficácia, e no limite termina por ser engendrado pelos próprios símbolos; enquanto que, ao contrário disso, mais o simbolizado consegue dominar os símbolos menos estes últimos se tornam indispensáveis – de tal sorte que, no limite, a simplificação e a relatividade dos símbolos conduzem à “adequação da expressão e à participação direta” (sem esquecer que nas épocas de crise e de decadência, ou épocas de “fadiga geral dos símbolos”, onde não se consegue encontrar sucessores para eles e onde se adormecem os conteúdos simbolizados tendo perdido toda a atração, os símbolos e os conteúdos simbolizados podem entrar em conflito, se polarizar, tornarem-se antinômicos).

Nota-se ainda na análise sociológica de GURVITCH que a complementaridade por compensação dialética se afirma entre os Nós (Nosotros) e as relações com outrem. Se os Nós (Nosotros) representam um dos primeiros focos do movimento dialético na realidade social, as relações com outrem nada mais fazem que alargar esse movimento – tomando-se aqui os Nós (Nosotros) como fusões parciais onde os membros se afirmam de uma só vez como participantes em um todo e irredutíveis, unidos pela interpenetração e múltiplos; enquanto que as relações com outrem compreendem as manifestações de sociabilidade pressupondo os Nós (Nosotros).

Entretanto, há neste ponto um duplo aspecto da dialética que nosso autor põe em relevo: (a) – mais os membros de um Nós (Nosotros) são nele efetivamente integrados, menos eles precisam de relações com os outros que nele igualmente tomam parte e, inversamente, (b) – menos eles são efetivamente integrados em um Nós (Nosotros), mais eles precisam, a título de compensação, de relações com os outros intrínsecos ou extrínsecos a esse Nós (Nosotros).

Deste ponto de vista se pode dizer com GURVITCH que: a Comunidade é incontestavelmente um foco mais propício às múltiplas relações com outrem do que a Comunhão; o erro em se apreciar a Massa como um foco ainda mais favorável às relações com outrem do que a Comunidade se deve exclusivamente ao fato de que, neste caso, se trata sobretudo de fusão a distância e freqüentemente de ampla envergadura.

Enfim, a dialética de complementaridade da compensação parece se impor para seguir o desvanecimento e a fraqueza relativa de um dos graus da liberdade humana, seja este grau um dos seguintes: (1) – a liberdade arbitrando conforme as preferências subjetivas; (2) – a liberdade realização novadora; (3) – a liberdade escolha; (4) – a liberdade invenção; (5) – a liberdade decisão; (6) – a liberdade criação. Que dizer, um desses graus de liberdade humana coletiva e individual afirmada em face dos determinismos sociais, seu desvanecimento e fraqueza relativa, tem tendência a ser compensado pela consecução ou intensidade dos outros graus de liberdade.

(C) – No estudo sociológico do terceiro gênero do procedimento operativo por complementaridade dialética, nota-se de início tratar-se de uma modalidade de jogo de compensações: é a complementaridade de elementos que vão tanto em uma mesma direção, quanto em direções inversas.

Quer dizer: são contrários se completando no seio de um conjunto por um duplo movimento, o qual consiste em crescer e em se intensificar tanto na mesma direção, como foi dito, quanto em direções opostas, graças ao jogo das compensações [19].

GURVITCH contempla o caso em que os aparelhos organizados, as atitudes, as idéias e valores divergem na sociedade, notando que estando divergentes eles podem antes de se confrontar e de se polarizar se compensar (ou “convergir”).

Ademais disso, observa-se que os aparelhos organizados ineficazes e muito lentos podem ser compensados pelas práticas ágeis e pelos símbolos apropriados. Inversamente, os modelos e símbolos esclerosados podem ser compensados tanto pelas organizações dinâmicas quanto pelos papéis, pelas atitudes, pelas idéias e valores manifestando um ardor particular. Igualmente, a fraqueza de certos grupos pode ser particularmente compensada pela intensidade dos Nós (Nosotros) que entram no seu seio; assim como a fraqueza relativa de uma sociedade global pode ser compensada pela força dos grupos que nela são integrados.

Portanto, o procedimento operativo por complementaridade dialética implicando duplo movimento de compensação, abarca praticamente o domínio da realidade social em seu conjunto.

GURVITCH nos diz que, se a realidade social se nos revela como pluridimensional, como disposta em degraus ou patamares em profundidade, constataremos que, segundo os tipos das sociedades globais, das classes, dos grupos, e segundo as conjunturas particulares, (a) – a base morfológica, os aparelhos organizados, as práticas, os modelos, os papéis, as atitudes, os símbolos, as condutas efervescentes, as idéias e valores coletivos, podem tanto se orientar todos em uma mesma direção, quanto (b) – podem mostrar consideráveis divergências e tender, então, para as compensações [20].

A IMPLICAÇÃO DIALÉTICA MÚTUA

No Estudo sociológico do procedimento operativo por implicação dialética mútua sobressai além do (a) – domínio da realidade social em seu conjunto, (b) – a ligação entre as estruturas sociais e as obras de civilização, e (c) – a descrição da imanência recíproca entre o psiquismo individual, o psiquismo interpessoal ou intergrupal (dito “social”) e o psiquismo coletivo, incluindo-se nessa descrição a comunicação social.

A implicação dialética mútua consiste em reencontrar nos elementos ou termos a primeira vista heterogêneos ou contrários, os setores por assim dizer secantes que coincidem, se contêm, se interpenetram em certo grau ou são parcialmente imanentes uns aos outros [21]; quer dizer, revela-se o procedimento imprescindível para dar precisão à ligação entre a vida psíquica e a vida social.

A imanência recíproca parcial entre esses dois termos é verificada segundo nosso autor no fato de que, não sendo reduzida às suas exteriorizações na base morfológica, nas técnicas e nas organizações, nem às suas cristalizações nas estruturas e nas obras de civilização, a realidade social porta nela tensões crescentes ou decrescentes até as reações mais ou menos espontâneas.

Reações essas as quais se manifestam em graus variados do inesperado, do flutuante, do instantâneo e do imprevisível que, no dizer de GURVITCH, correspondem ao que se chama o psíquico.

Aliás, como já o mencionamos, sendo incrustado no real que é antes de tudo a realidade social e, ao invés de ser o estado interno de uma consciência individual, o psíquico assim incrustado em realidade implica uma tripla direção para o Meu, o Teu e o Nosso, afirmados nos Nós (Nosotros), nos grupos, nas classes e nas sociedades globais.

Da mesma maneira, a implicação mútua permite dar precisão à ligação entre o psiquismo individual, o psiquismo interpessoal e o psiquismo coletivo.

A análise de GURVITCH é a seguinte: considerando que no psiquismo coletivo tem lugar uma fusão prévia das consciências (assegurando a mesma significação aos signos e aos símbolos, como, p.ex., às palavras de uma língua), nota-se que o psiquismo interpessoal ou intergrupal implica os dois outros, pois, se esse psiquismo interpessoal é afirmado em suas manifestações na comunicação, nenhuma comunicação pode ter lugar fora do psiquismo coletivo. Ao mesmo tempo, prossegue nosso autor, são os psiquismos individuais que comunicam – o que supõe sua diferenciação tanto quanto sua fusão.

A respeito desses três psiquismos observa GURVITCH que o crescimento dos graus de implicação mútua entre os mesmos conduz para a reciprocidade de perspectiva, sendo este o caso quando se passa do quadro social da Massa ao da Comunidade, e do quadro da Comunidade ao da Comunhão.

Quanto à implicação mútua entre as estruturas sociais e as obras de civilização, GURVITCH sublinha que só o estudo das estruturas sociais já exige o emprego de todos os procedimentos dialéticos disponíveis.

As estruturas são os intermediários entre os fenômenos do todo social ou “fenômenos sociais totais” e suas expressões nas regulamentações sociais. São as estruturas sociais que tornam eficazes as obras de civilização nascentes do fundo dos fenômenos sociais totais espontâneos, e são essas mesmas obras de civilização que ajudam as estruturas a se manter.

A dialética torna vã toda a separação artificial entre sociedade e civilização, correspondendo, entretanto, a situações concretas e comportando múltiplos graus de variação – observa nosso autor que certas obras podem transbordar das estruturas sociais, assim como certas estruturas podem se tornar antes beneficiárias que suportes das obras de civilização (neste ultimo caso estão as colônias que emprestam artificialmente as obras de civilização ocidentais, as quais encontram obstáculos tanto nas estruturas quanto nas obras de civilização autóctones).

Observa-se, enfim, no conjunto, a implicação mútua entre as manifestações de sociabilidade, os grupos, as classes e as sociedades globais, e as relações que se desenvolvem entre os diferentes planos seccionados da realidade social.

Quer dizer, a complementaridade por dupla compensação não é suficiente para estudar o vai-vem deles. A base morfológica, os aparelhos organizados, os modelos culturais e técnicos, as condutas mais ou menos regulares, os papéis sociais, as atitudes, os símbolos sociais, as condutas novadoras, as idéias e valores coletivos, os estados e atos mentais, se interpenetram em certo grau mesmo preservando-se tensos, sempre suscetíveis de entrar em conflito uns com os outros e de tornar-se, finalmente, antinômicos (cf.ib.p.261).

A AMBIGUIDADE DIALÉTICA

No estudo sociológico do procedimento operativo por ambiguidade dialética assinala-se na análise de GURVITCH que o domínio de aplicação da sociologia é pleno de ambigüidade: ser ligados e ficar em certa medida irredutíveis; melhor: se interpenetrar, fusionar parcialmente sem se identificar; participar nas mesmas totalidades e se combater, se revelar freqüentemente de uma só vez amigos e concorrentes, centros simultâneos de atração e de repulsão, focos de reconforto e de ameaça – domínio esse que segundo GURVITCH é a sina do homem vivendo em sociedade.

Ou seja, a sina dos Nós (Nosotros), dos grupos, das sociedades inteiras é se mover não somente na esfera da complementaridade por dupla compensação, mas é igualmente se mover na esfera da ambigüidade que se exaspera facilmente em ambivalência.

Nesse estudo sociológico, a relação entre Massa, Comunidade e Comunhão, é privilegiada. O jogo das compensações verificado entre esses três graus de intensidade dos Nós (Nosotros) toma freqüentemente um caráter de ambigüidade e até de ambivalência.

O primeiro aspecto dessa ambigüidade é verificado em torno da extensão e da intensidade de fusão. Quer dizer, como já mencionamos quanto mais o volume das fusões parciais é mais amplo menos elas são intensas.

No segundo aspecto, nota-se que a Massa, a Comunidade, e a Comunhão podem se afirmar uma por relação à outra, de uma só vez, como diminuições e como aumentos sucessivos de pressão.

Com efeito, a Massa (a fusão mais superficial) se apresenta à Comunidade (e esta à Comunhão) como um fardo e opressiva. Inversamente, a Comunhão se afirma como libertadora das pressões da Comunidade e com maior razão das pressões da Massa. Sublinha GURVITCH que isso se deve tanto aos graus da força de atração e de repulsão, exercidas por essas manifestações dos Nós (Nosotros) sobre seus membros, quanto aos graus de participação destes últimos nas primeiras.

Todavia, nosso autor admite que os focos de atração e de repulsão mudam de lugar (…). Quer dizer, a Comunhão tem tendência a estreitar não somente sua extensão, mas igualmente o conteúdo daquilo no que se comunga. Por sua vez, a Massa, sobretudo quando é de ampla envergadura, se mostra amiúde mais generosa e mais rica em conteúdos postos em jogo do que a Comunidade e sobretudo do que a Comunhão. Então, a Massa se apresenta como libertadora das pressões da Comunidade e esta como libertadora dos estreitamentos opressivos das comunhões.

No terceiro aspecto da ambigüidade dialética tocando ainda a relação entre Massa, Comunidade e Comunhão, nota-se na análise sociológica de GURVITCH que essas manifestações dão ensejo a contradições flagrantes nos juízos de valor.

Ou seja, como já o mencionamos, o que é libertação para os participantes sem reserva é ambivalência penível para os recalcitrantes e servidão para aqueles que ficam de fora – advindo daí as contradições nos juízos de valor em um conjunto macrossocial relativamente às três manifestações dos Nós (Nosotros).

O quarto exemplo refere-se à aplicação do procedimento por ambigüidade dialética no estudo das relações com outrem. Já notamos que as relações mistas são aquelas onde alguém se aproxima se distanciando e onde se distancia se aproximando.

Sob o aspecto ativo, tratam-se das trocas, relações contratuais, relações de crédito, promessas diversas. Apesar do seu caráter fundado sobre a reciprocidade nota-se segundo nosso autor certa ambigüidade nessas relações. Elas implicam de uma só vez certa harmonia de interesses quanto à validade das obrigações previstas, e um conflito de interesses quanto à interpretação de suas cláusulas materiais e dos modos de sua execução.

Essa ambigüidade se exaspera em ambivalência quando essas relações com outrem de caráter misto tomam uma forma passiva, já que os indivíduos, grupos, sociedades (os Eu e os Outrem) são de uma só vez atraídos e repelidos uns pelos outros, sem que cheguem a se dar conta da parte de elementos negativos e positivos nessas confusões.

A POLARIZAÇÃO DIALÉTICA

No estudo sociológico do procedimento operativo por polarização dialética na obra de GURVITCH, dá-se ênfase à inexistência de antinomias em si, ou antinomias que permaneceriam sempre assim em todos os tempos e em todos os lugares.

Se as tensões de diferentes graus – argumenta-se-, os conflitos, as lutas, os contrários, compreendidos em relações de complementaridade, de implicação mútua, ou de ambigüidade podem se exasperar em antinomias, eles podem também, em outros momentos, se encontrar em relações diferentes e demandar procedimentos outros que não a polarização dialética.

As classes sociais nas sociedades de capitalismo organizado não podem ter afirmado de antemão um caráter antinômico, já que se admite a possibilidade de evitar as desigualdades econômicas graças a um regime de compensações planejadas, o qual não é excluído a-priori.

Nota nosso autor, além disso, que podem surgir antagonismos entre Eu, Outrem e Nós (Nosotros), assim como entre as manifestações de sociabilidade, os grupos e as sociedades globais – quer dizer, é possível a ruptura da reciprocidade de perspectiva ou da implicação mútua a que tais elementos tendem habitualmente.

Uma mudança sobrevinda em um Nós (Nosotros) posto diante de um dilema imprevisto impulsiona certos Eu participantes seja a tornarem-se heterogêneos a esse Nós (Nosotros), seja a participarem de outros Nós (Nosotros). Ou então acontece que em um Nós (Nosotros), no lugar da Comunidade a que um Eu permanece fiel, é o elemento da Massa que se encontra acentuado.

Quanto ao confronto exacerbado atingindo grupos e sociedades globais, ou entre certas manifestações de sociabilidade e os grupos nos quais elas se encontram integradas, nota GURVITCH que o procedimento por polarização dialética se impõe, pois esses embates não só podem tornar-se o signo da reviravolta da hierarquia dos agrupamentos, da desestruturação das sociedades globais ou do desabamento de certos grupos particulares, mas também podem ser provenientes de uma defasagem ostensiva de movimentos, de tempos sociais ou de orientações.

A RECIPROCIDADE DE PERSPECTIVA (Veja Nota Complementar no final deste texto)

O quinto e último procedimento operativo por dialetização ou “clarificação dialética” distinguido na obra de GURVITCH corresponde ao estudo sociológico das totalidades humanas em marcha, e é aquele da colocação em reciprocidade de perspectiva.

Trata-se de pôr em relevo, nos elementos que não admitem nem identificação, nem separação, sua imanência recíproca – a qual se tornou tão intensa que conduz a um paralelismo ou a uma simetria entre as manifestações de tais elementos.

Segundo GURVITCH, a aplicação do procedimento por colocação em reciprocidade de perspectiva acentuando a simetria justifica-se por tratar-se de manifestações particularmente fortes das totalizações. O estudo sociológico desse procedimento compreende o seguinte: (1) – o individual e o social; (2) – as relações entre as diferentes manifestações da mentalidade coletiva e da mentalidade individual, – distinguindo as relações entre (a) – estados mentais, (b) – as manifestações das opiniões e, (c) – os atos mentais; (3) – a relação entre a contribuição coletiva e a contribuição individual às obras de civilização.

Segundo GURVITCH, a tendência para a reciprocidade de perspectiva é manifestada habitualmente pelo individual e o social em todas as suas escalas: (a) – em nível dos Nós (Nosotros), onde um paralelismo se revela entre, por um lado, as pressões exercidas pela Massa sobre a Comunidade ou por esta sobre a Comunhão e, por outro lado, as pressões que no indivíduo mesmo o participante da Massa exerce sobre o participante da Comunidade, e este ultimo sobre o participante da Comunhão; (b) – em nível dos grupos, onde à luta entre os diferentes agrupamentos aos quais o indivíduo participa corresponde a fragmentação entre os diferentes Eu do mesmo indivíduo desempenhando nesses grupos os diversos papeis sociais. (c) – em nível das classes sociais e das sociedades inteiras, que elaboram seus critérios de harmonização da personalidade humana (é o chamado problema da “personalidade de base”).

No que concerne às relações entre as diferentes manifestações da mentalidade coletiva e da mentalidade individual, nota o nosso autor que a aplicação do procedimento por colocação em reciprocidade de perspectiva não chega aos mesmos graus de paralelismo e simetria alcançados nas escalas do individual e do social.

Desta forma, (a) – Quando se trata das relações entre estados mentais, tomados como as manifestações do psíquico e do consciente que não se ultrapassam elas mesmas, e onde a tendência para a abertura característica de todo o fenômeno consciente não alcança senão um fraco grau (como as representações, a memória, as percepções, os sofrimentos, as satisfações, as atrações, as repulsas, as alegrias, as tristezas e as cóleras, as veleidades e os esforços), a reciprocidade de perspectiva entre a mentalidade coletiva e a mentalidade individual resta sumária, pois se encontra fortemente limitada pelas tensões, as defasagens e os conflitos.

(b) – Quando se trata das opiniões, tomadas como manifestações intermediárias entre estados e atos mentais, onde a consciência se entreabre mas não chega a se transcender e resta hesitante, incerta e flutuante, GURVITCH nota que a reciprocidade de perspectiva entre as opiniões coletivas e as opiniões individuais torna-se bem mais intensa do que no caso dos estados mentais, sem atingir a simetria e o paralelismo completos, habitualmente característicos dos atos mentais (os quais, como veremos a seguir, tendem a ser de uma só vez coletivos e individuais).

Os atos mentais: a aplicação do procedimento por colocação em reciprocidade de perspectiva deve levar em conta o seguinte: que os atos mentais tendem para a reciprocidade de perspectiva a mais completa sob seus aspectos coletivos e individuais; que esses atos variam quanto às suas acentuações, segundo os tipos de quadros sociais reais nos quais estão incrustados (em particular, segundo os tipos de classes sociais e de sociedades globais).

Segundo GURVITCH, a colocação em reciprocidade de perspectiva para aclarar as relações entre os atos mentais, “não é tanto uma solução quanto o é uma maneira de formular os problemas inspirada pela dialética”.

Os atos mentais são as manifestações as mais intensas do consciente que se transcendem elas mesmas na posse, no conhecimento ou na participação nos conteúdos reais, experimentados, afirmados ou moldados como heterogêneos aos atos mesmos – isto é, como heterogêneos às intuições intelectuais e aos juízos; às preferências e às repugnâncias em linha com os valores, a simpatia, o amor, o ódio,; enfim, às escolhas, às decisões e às criações.

Quanto à aplicação do procedimento por colocação em reciprocidade de perspectiva para estudar a simetria que se manifesta na relação entre a contribuição coletiva e a contribuição individual às obras de civilização, nota-se na análise sociológica de GURVITCH o seguinte: (a) – que, na religião e no Direito, a reciprocidade de perspectiva é apenas palpável, a balança pendendo nitidamente para a predominância da contribuição coletiva sobre a contribuição individual; (b) – que a reciprocidade de perspectiva admite graus infinitos nos domínios da moralidade, da educação, da arte e, enfim, do conhecimento, sendo a reciprocidade de perspectiva mais acentuada na moralidade e decrescendo nos domínios subseqüentes.

Nota nosso autor que na moralidade de aspiração e de criação a reciprocidade de perspectiva entre o individual e o coletivo é extremamente forte, e que ela é bem menos pronunciada na moralidade dos deveres e na moralidade tradicional. Já no domínio do conhecimento, nota GURVITCH, que a reciprocidade de perspectiva decresce quando se passa do conhecimento perceptivo do mundo exterior para o conhecimento de bom senso, para o conhecimento político, e, enfim, para o conhecimento científico, nos quais essa reciprocidade de perspectiva entre o individual e o coletivo é todavia mais fortemente pronunciada do que no conhecimento filosófico.

Quanto aos limites da dialética, GURVITCH observa o seguinte: (a) – se a dialética ajuda a confundir toda a dogmatização de uma situação, toda a solução de facilidade, toda a sublimação consciente ou inconsciente, todo o isolamento arbitrário, toda a parada do movimento da realidade social, ela não explica, ela não nos dá o esquema da explicação.

A dialética nos leva ao umbral da explicação em sociologia, mas não ultrapassa jamais esse umbral. A dialética nos ensina, entre outros, que os tipos sociológicos eles mesmos são apenas quadros operativos destinados a servir de pontos de reencontro para seguir os quadros sociais reais em seu perpétuo dinamismo.

(b) – a dialética empírico-realista nada pode além de colocar as questões e não dá ela mesma as respostas. A multiplicidade dos procedimentos dialéticos operativos pode apenas acentuar as nuances e refinar a descrição da realidade social, e pôr em relevo como já o assinalamos com GURVITCH a complexidade de toda a explicação válida em sociologia.

(c) – A complementaridade, a implicação mútua, a ambigüidade, a polarização das antinomias, a reciprocidade de perspectiva, apenas preparam a explicação de uma maneira particularmente intensa, já que os procedimentos propriamente explicativos – tais como as correlações funcionais, as regularidades tendenciais, os cálculos de probabilidade, a causalidade singular e a integração direta nos conjuntos – pressupõem, todos, as totalidades concretas, cujas sinuosidades são contingentes e os graus de coerência essencialmente variáveis.

***


A Dialética Sociológica, o Relativismo Científico e o Ceticismo de Sartre:

Aspectos de um debate do século XX.

Por

Jacob (J.) Lumier

Segunda Parte:

BACHELARD, GURVITCH e SARTRE.

Sem dúvida, a incoerência de SARTRE para com GURVITCH situando a este junto dos positivistas lógicos em tolerância é desconsiderar o alcance realista da dialética no sentido ontológico do termo, ligada à sociologia diferencial dos agrupamentos sociais particulares e à microssociologia.

No fundo, a pouca sensibilidade para com o realismo relativista sociológico não passa do que em sociologia se designa por “resistência à mudança social”. A perspectiva de superação da dialética que está contida na orientação que vincula dialética e experiência põe em questão velhas crenças epistemológicas.

Para J.P. SARTRE em seu racionalismo original, a dialética hiperempírica estudada por G.GURVITCH é tida como manifestação empírica em sentido restritivo ou particularista e, portanto, como não sendo dialética propriamente dita. Neste raciocínio, uma vez que as condições da experiência venham a passar por alterações a dialética sociológica também se tornaria outra, o que, supostamente, se esta pretensão fosse cabível, invalidaria sua universalidade e lhe imprimiria um caráter transitório tido previamente por indesejado.

Sem dúvida, a incoerência de SARTRE para com GURVITCH situando a este junto dos positivistas lógicos em tolerância [22] é desconsiderar o alcance realista da dialética no sentido ontológico do termo, ligada à sociologia diferencial dos agrupamentos sociais particulares e à microssociologia.

Para SARTRE, a dialética sociológica não se enquadraria na suposta racionalidade do processo histórico, muito menos a descoberta dos níveis múltiplos de realidade social, as hierarquias múltiplas e a constatação gurvitcheana de que as hierarquias específicas dos agrupamentos particulares restam não absorvidas e conflitantes com as hierarquias das classes sociais como veremos adiante, sendo que, na sociologia de GURVITCH é a partir da constatação dessa diferença específica aos agrupamentos particulares que se chega à percepção da mudança no interior das estruturas.

Além disso, tampouco pode ser classificada “positivista” a descrição e a análise gurvitcheana dos determinismos sociais como operações de integração dos fatos ou manifestações particulares nos planos de conjuntos práticos. Se os determinismos são operadores no sentido usual do termo em análise matemática, isto é, símbolos de uma operação que se efetua sobre uma variável ou sobre uma função, a qualificação “positivista” é incabível porque se trata de função dialética e não apenas lógica, como o é o esforço coletivo de unificação.

Ora, além de “esquecer” que um pensamento não se apreende no vazio, fora das probabilidades, tal posicionamento depreciativo do nível empírico do conhecimento revela o preconceito filosófico do SARTRE representativo dos intelectuais acorrentados à vertente hegeliano-marxista da dialética.

À exceção de Ernst Bloch [23], essa vertente se fixa previamente a qualquer consideração do “novo espírito científico” posto em obra na microfísica, na teoria quântica e na mecânica ondulatória já antes dos anos de 1930 e, como vertente preconceituosa corresponde à postura justamente apreciada por Gaston BACHELAR como “pensamento fechado”, obstáculo ao que este pensador chama “revolução relativista.

A retificação dos conceitos realizada pela Relatividade como disposição da cultura científica do século XX é a prova do incremento psicológico que faz avançar a história dinâmica do pensamento.

Nesta perspectiva – e compreendendo a epistemologia “não coisista” correspondente à microfísica e a seu objeto elementar como “não-sólido” – a retificação dos conceitos realizada pela Relatividade como disposição da cultura científica do século XX é a prova do incremento psicológico que faz avançar a história dinâmica do pensamento.

No dizer de BACHELARD: “é a partir do momento em que um conceito muda de sentido que ele tem mais sentido”; trata-se então de “um acontecimento da conceituação”. Não se pode crer na permanência das formas racionais, na impossibilidade de um novo método do pensamento. “O que faz a estrutura não é a acumulação. A massa dos conhecimentos imutáveis não tem a importância funcional que se supõe”. Se o pensamento científico é uma objetivação “deve-se concluir que as retificações e as extensões são dele as verdadeiras molas”.

Ao realizar o “incremento psicológico” o pensamento não-newtoniano absorve a mecânica clássica e dela se distingue; “produz uma convicção que se prova como progresso”. A perspectiva que marca o alargamento do pensamento científico é aquela que encontra “o real como um caso particular do possível”. Antes de haver desenvolvimento das antigas doutrinas – no estudo das relações epistemológicas da ciência física contemporânea e da ciência newtoniana – há muito antes o envolvimento dos antigos pensadores pelos novos, “há encaixes sucessivos[24].

Em seu comentário das análises de Werner HEISENBERG em que, considerando que “as duas imagens ‘corpúsculos e ondas’ não chegam verdadeiramente a se reunir” e que são instrutivas como “duas fontes de analogias”, BACHELARD nos lembra como sabido que “todo o estudo sobre relações que implicam a probabilidade exige uma visão de elementos muito numerosos”, visão essa que implica um espaço rico em dimensões que ele chama “espaços de configuração”, cujo número de dimensões ultrapassa o número três característico do espaço intuitivo.

Esses espaços de configuração valem para dar “um esquema de um conjunto múltiplo”, já que são “quase naturais para os estudos da probabilidade” (ib.p.296). Acresce, nestes últimos, que a “revolução do empirismo” operada pela mecânica ondulatória leva a “tornar indireto o que era direto, a encontrar o mediato no imediato, o complexo no simples[25]. Na expressão de Louis de BROGLIE, na mecânica ondulatória “não se concebe mais o ponto material como uma entidade estática só interessando uma região ínfima do espaço, mas como o centro de um fenômeno periódico inteiramente espalhado a sua volta[26].

***

O aspecto significante das análises e comentários de BACHELARD que se aplica mais diretamente nos debates interessando o pensamento probabilitário em teoria sociológica é a sua tese de que o novo espírito científico contradiz a maneira habitual de designar dogmaticamente as noções de base, as quais eram tidas -ou ainda o são- como sentenças que representam experiências e valem como os então chamados “registros ou protocolos de laboratório”, isto é, os enunciados cujo valor científico está em poderem ser testados por observação.

BACHELARD nos mostra que as noções iniciais devem ser solidarizadas numa definição orgânica, devem ser ligadas a casos complexos. Quer dizer, há uma correlação essencial das noções. Mais e mais se impõe, por exemplo, a reciprocidade entre a noção de força e a noção de energia. Na teoria quântica, nada de absoluto sustenta a idéia de força, ela não é aqui a noção primitiva. A explicação científica tende a colher em sua base elementos complexos e a não construir senão sobre elementos condicionais; a simplicidade só é admitida a título provisório e para funções bem especificadas.

Essa preocupação em preservar aberto o corpo de explicação é característica de uma psicologia científica receptiva, guardando uma espécie de dúvida recorrente aberta para o passado de conhecimentos certos (teme-se sempre que um postulado possa sutilmente se ajuntar à ciência e desdobrá-la). Cientificamente, pensa-se o verdadeiro como retificação histórica de um longo erro; pensa-se a experiência como retificação da ilusão comum e primeira [27] (ib.p.334).

Sem dúvida, essas proposições de BACHELARD apóiam-se em sua análise do problema do determinismo, isto é, a análise da confusão constante do determinismo e da causalidade, bem como do conflito entre o determinismo e o indeterminismo [28] . Nessa análise notamos a noção de determinismo topológico, que corresponde a ligações funcionais e que opera no vir a ser sobre conjuntos gerais, sendo a partir dessa noção que se esclarece a confusão do determinismo e da causalidade e, a partir desse esclarecimento, por sua vez, fica aberta a questão do conflito entre determinismo e indeterminismo. Tal a seqüência da análise psico-pedagógica dos conceitos fundamentais da epistemologia.

Com efeito, esse determinismo das ligações funcionais serve a BACHELARD para pôr em foco da sua análise a compreensão de que a correspondência dos fenômenos costuma ser e pode ser pensada ou tomada em consideração metodológica sem que as variações dessa correspondência – “todas as variações” – sejam devidamente medidas pelo cientista.

É na correspondência de sinal a sinal que o cientista encontra as lições primeiras do determinismo (e não na ligação de numero a número)”. Ou seja, essas ligações funcionais são de ordem qualitativa, assimilando o caráter muito mais geral da causalidade em relação ao determinismo como previsão, que é de ordem quantitativa (da causa ao efeito há uma ligação [29] que até certo ponto subsiste a despeito das desfigurações parciais da causa e do efeito). Além das verificações métricas muitas vezes dispersadas, portanto, há lugar para as verificações do determinismo topológico nos mostrando que um fenômeno não se desfigura numa ligeira variação dos seus traços, não se encaixa no indeterminismo senão parcialmente. Quer dizer, são as variações nas ligações funcionais que confirmam a existência do determinismo topológico.

Segundo BACHELARD, foi em assimilar a noção das leis do acaso como ligações probabilitárias dos fenômenos sem ligação real que se ocupou o pensamento científico contemporâneo, caracterizado por uma multiplicidade nas hipóteses de base.

A posse dessa compreensão permite a BACHELARD estudar a “psicologia do indeterminismo” partindo do pensamento probabilitário até chegar às conseqüências do princípio de HEISENBERG como levando à concepção de um método de individuação em que os objetos de uma lei estatística se distinguem por sua pertinência a certo grupo, superando os termos contraditórios em que, nas probabilidades estatísticas, uma propriedade é afirmada de uma classe de objetos e negada aos objetos considerados separadamente.

Para BACHELARD, quem fala de indeterminismo fala de comportamentos imprevisíveis ou imponderáveis; fala do desconhecimento sobre o tempo em que se efetuam os fenômenos de choque; fala da enorme pluralidade desses fenômenos (originariamente estudados na teoria cinética dos gases) revelando uma espécie de fenômeno geral pulverizado, onde os fenômenos elementares são estritamente independentes uns dos outros.

Ora, é justamente aí que pode intervir o cálculo das probabilidades como fundamentado na independência absoluta dos elementos (em sociologia essa independência é a característica dos fenômenos sociais totais, que no dizer de Gurvitch são completos e soberanos).

É essa independência dos elementos que define a linha de conceitos que, acima do indeterminismo de base, entronizou a probabilidade no pensamento científico, com seu componente especulativo, sua disposição em correr o risco de fracassar na explicação para realizar a obra do conhecimento.

Ou seja, se houvesse a menor dependência haveria uma perturbação na informação probabilitária e seria preciso um esforço sempre difícil para levar em conta uma interferência entre ligações de dependência real e as leis de estrita probabilidade.

Segundo BACHELARD, foi em assimilar essa noção das leis do acaso como ligações probabilitárias dos fenômenos sem ligação real, que se ocupou o pensamento científico contemporâneo, caracterizado por uma multiplicidade nas hipóteses de base, nas hipóteses em que métodos estatísticos diferentes têm uma eficácia limitada (BACHELARD nos lembra como contraditórios, mas prestantes em diferentes partes da física, os princípios da estatística de BOSE-EINSTEIN, por um lado, e por outro lado, os da estatística de FERMI).

Desse modo, “o positivismo do provável”, no dizer de BACHELARD, é bastante difícil de situar entre “o positivismo da experiência” e “o positivismo da razão”. Para este autor, ainda que “a fenomenologia probabilitária” mostre as qualidades se exprimindo umas pelas outras e mesmo supondo uma base mecânica na teoria científica, a verdadeira força explicativa reside na composição das probabilidades.

Quer dizer, é preciso sempre vir a aceitar a experiência da probabilidade, mesmo que a probabilidade se apóie sobre a ignorância das causas. Há uma grande diferença em dizer que um elétron está em qualquer parte no espaço, mas não sei onde, não posso saber onde, e dizer que todo o ponto é um lugar igualmente provável para o elétron. Esta última afirmação contém, além da primeira, a garantia de que, se executo um número muito grande de observações, os resultados serão distribuídos regularmente em todo o espaço. Tal o caráter todo positivo do conhecimento provável.

Além disso, que o provável tampouco é assimilável ao irreal, nos mostra a noção de uma “causalidade provável”: o acontecimento que possui a maior probabilidade matemática acontecerá na natureza com freqüência maior correspondente. O tempo se encarrega de realizar o provável, de tornar efetiva a probabilidade.

E BACHELARD vai mais longe ainda: “que haja coincidência da probabilidade medida é talvez a prova mais delicada, mais sutil, mais convincente da permeabilidade da natureza à razão”.

Quer dizer, a realidade auxiliada pela duração acaba sempre por incorporar o provável ao ser. Seja como for, “as formas prováveis, os objetos dotados de qualidades hierárquicas que a ciência moderna nos habituou a manejar, não têm uma permanência absoluta”. Daí que, prossegue BACHELARD, “o caminho do nosso aprendizado com a física atual nos leve mais além da ‘física dos sólidos’ e nos alimente pela instrução que poderíamos receber dos fluidos, das massas, dos aglomerados”.

É nesse caminho que BACHELARD entende situar-se com sua análise um nível acima do indeterminismo de base e, por essa via, nos levar à compreensão psico-pedagógica do determinismo topológico dos procedimentos gerais, que aceita ao mesmo tempo as flutuações e as probabilidades.

Com efeito, os fenômenos tomados em sua “indeterminação elementar” podem, portanto, ser compostos pela probabilidade e desse modo assumir “figuras de conjunto”, sendo sobre essas figuras que atua a causalidade, como ligação qualitativa subsistente.

A partir deste ponto, a análise que se lê na obra de BACHELARD pauta-se sobre a apreciação dos postulados de REICHENBACH (“La Philosophie Scientifique”, 1932), quem tivera indicado as “relações exatas” da idéia de causa e da idéia de probabilidade a partir da compreensão de que, nas leis deterministas ou predicentes estamos na impossibilidade de levar em conta todos os fatores variáveis que intervenham; se, contudo, podemos fazer excelentes previsões devemo-lo à noção de probabilidade, que exprime uma lei para os fatores não considerados no cálculo.

Em resumo: pode haver convergência da experiência com o determinismo (admitindo-se em pensamento todas as condições variáveis do fenômeno), mas “definir o determinismo de outro modo que como uma perspectiva convergente de probabilidade é cometer um erro insigne”.

Neste ponto, BACHELARD elabora em sua obra sobre a assertiva de REINCHENBACH segundo a qual “coisa alguma prova a-priori que a probabilidade de toda a espécie de fenômeno tenha necessariamente uma convergência com a unidade, isto é: corrobore previamente o determinismo”.

Daí que as leis causais podem ser reduzidas a leis estatísticas; ou que pode haver leis estatísticas sem convergência causal, as quais dariam lugar a uma física não-causal, em que pontifica HEISENBERG [30].

Desde a revolução de HEISENBERG a objeção de que noções tão fundamentais como ‘posição e velocidade’ têm sentido universal já não procede.

Segundo BACHELARD, “a revolução de HEISENBERG” – afastada a negação dogmática das teses do determinismo clássico – tende a estabelecer uma “indeterminação objetiva”, superando a independência com que os erros sobre “as variáveis independentes” eram tratados: com o princípio de incerteza se trata de uma correção objetiva dos erros.

Ou seja, para encontrar o lugar de um elétron é preciso iluminá-lo mediante um fóton. O encontro do fóton e do elétron modifica o lugar do elétron e, além disso, modifica a freqüência do fóton, de tal sorte que em microfísica não há método de observação sem a ação dos procedimentos do método sobre o objeto observado. Há, pois, uma interferência do método e do objeto que BACHELARD qualifica “interferência essencial”, corroborando sua compreensão do determinismo topológico dos procedimentos gerais.

Neste ponto, BACHELARD enfoca como decorrência a “limitação das atribuições realísticas” que pretendem empregar as palavras “posição” e “velocidade” fora do terreno em que foram definidas ou onde são definíveis (pelas relações de incerteza).

Diz-nos que, desde a revolução de HEISENBERG a objeção de que noções tão fundamentais como ‘posição e velocidade’ têm sentido universal já não procede. As qualidades geométricas incluindo a posição e a velocidade não têm direito algum a ser chamadas qualidades primeiras. Só há qualidades secundárias, uma vez que toda a qualidade é solidária de uma relação (de incerteza) que faz girar as duas intuições fundamentais: a corpuscular e a ondulatória, com o domínio da física atômica apresentando-se como “o lugar de junção das intuições contrárias”.

Nota ainda BACHELARD, seguindo a HEISENBERG, que a pretensão das atribuições realísticas no domínio epistemológico a favor de tratar as noções fundamentais como noções universais nutre-se na “confiança indevida que temos no absoluto da localização”. Confiança indevida porque essa localização, antes de constituir uma exigência propriamente epistemológica, encontra-se na base da linguagem como tal, sendo toda sintaxe de “essência topológica”.

Ou seja, “localização” é uma expressão do “pensamento falado”, sendo contra esses arroubos que deve reagir o pensamento científico. Assim o emprego do termo “na realidade”, à medida que revela essa confiança indevida no absoluto da localização, aparece a BACHELARD como uma “desinteligência da designação objetiva”, já que a comunicação se refere a um grupo de átomos, de tal sorte que é preciso falar de uma “realidade coletiva”.

Com efeito, o procedimento pelo qual cada objeto individual (cada sólido) era conhecido por sua localização no espaço e no tempo limitava esse objeto, que só podia ser objeto de uma lei mecânica, já que era concebido como entidade separada e distinta: é a individuação mecânica.

Os objetos de uma lei estatística, pelo contrário, podem ser dados por um método de individuação inteiramente diferente, no qual as qualidades individuais se definem por integração no conjunto. Seu único traço distintivo pode ser sua pertinência a certo grupo. Só se distinguem dos objetos exteriores a seu grupo, mas não se distinguem dos objetos interiores.

A lei estatística é estabelecida na suposição de que um membro do grupo é tão apropriado quanto qualquer outro para satisfazer certas condições. O indivíduo se encontra por definição como membro do grupo. E BACHELARD conclui que, no domínio epistemológico, é preciso substituir ao artigo definido o artigo indefinido e limitar-se a uma compreensão finita no objeto elementar, em relação precisamente à sua extensão bem definida (por integração no conjunto).

Atinge-se o real por sua pertinência a uma classe. É ao nível da classe ou grupo do objeto que é preciso procurar as propriedades do real. Tal é a interpretação da “perda súbita da individualidade no objeto elementar”, observada na nova física do século XX por LANGEVIN e PLANK.

E BACHELAR prossegue, nos dizendo que Marcel BOLL assinala a importância da perda súbita da individualidade no objeto elementar, nos seguintes termos: “Da mesma forma em que o conceito antropomórfico de força foi eliminado pela relatividade einsteineana, assim é preciso renunciar à noção de objeto, de coisa, pelo menos num estudo do mundo da física atômica. A individualidade é um apanágio da complexidade, e um corpúsculo isolado é simples demais para ser dotado de individualidade. Essa orientação da ciência atual em contraste com a noção de ‘coisa’ parece ajustar-se não somente à mecânica ondulatória, mas também às novas estatísticas, e ainda à teoria do campo unitário (EINSTEIN), que se esforça para sintetizar a gravitação e o eletromagnetismo[31] .

Para concluir, temos então que, no ensinamento de BACHELARD, é a própria função realista que a ciência põe em questão. “O produto instrumental” (elétron, campo, corrente, etc.) é inscrito como sujeito lógico e não mais substancial do pensamento científico. Os traços substanciais que sobram são traços a apagar; indicam um realismo ingênuo a reabsorver.

Assim há um realismo persistente que é característica essencial do pensamento humano. Mas há também o fato de que nos esforçamos para sublimar nossas noções realistas. Segundo BACHELARD, “temos necessidade de mudar o real de lugar”. É o que ocorre na ciência atual. A função realista deveria ter mais do que qualquer outra a estabilidade; a explicação substancialista deveria conservar a permanência; todavia, a função realista é cada vez mais móvel; uma mudança bem escolhida do sistema de referência suprime a gravitação, confirmando que as revoluções frutuosas do pensamento científico são crises que obrigam a uma “reclassificação profunda do realismo” [32] (ib.p.315).

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A Dialética Sociológica, o Relativismo Científico e o Ceticismo de Sartre:

Aspectos de um debate do século XX.

Por

Jacob (J.) Lumier

Terceira Parte:

GURVITCH CRÍTICO DE SARTRE

Considerando que “o lugar do real” é mudado com os diversos fenômenos sociais totais, o ponto de vista da reclassificação profunda do realismo de que se lê na obra de BACHELARD se presta para apreciar a resposta de Georges GURVITCH a Jean Paul SARTRE, acentuando os três aspectos contraditórios deste último.

Com efeito, neste último autor podemos ver uma combinação de sociologia, filosofia social e de filosofia da história ocultando no dizer de GURVITCH os preconceitos camuflados de SARTRE contra todo o conhecimento científico, inclusive as ciências humanas [33].

Nada obstante, sabemos igualmente com GURVITCH que “La Critique de la Raison Dialectique[34] é obra tipicamente representativa do pensamento dialético de todos os autores modernos que se recusam a romper completamente com a tradição hegeliana (à exceção de Ernst Bloch, como mencionado em anterior nota de rodapé), mas sabemos também que SARTRE se empenha em desdogmatizar a dialética de Marx.

Assim a leitura da “Critique…” mencionada pode ser cotejada, logo de início, com o preceito de Georges LUKACS em “Histoire et Conscience de Classe” relacionado por GURVITCH, quando o primeiro entende que a pesquisa dos “pontos de imputação” possíveis de visões de mundo não é uma explicação causal, mas uma procura de correlações funcionais com os quadros sociais [35].

Cotejo esse que nos leva, com GURVITCH, à apreciação dos aspectos da dialética em SARTRE que corroboram este preceito, tais como: (a) – que o movimento dialético é de totalização e de “destotalização”, excluindo a totalidade metafísica como substância ou ideal, de tal sorte que as totalidades humanas e suas partes se engendram reciprocamente na ação, na produção delas mesmas e das obras materiais e culturais que as envolvem. É o caráter inacabado, cheio de inesperados de toda a totalidade humana.

(b) – Que o movimento dialético como práxis humana admite uma identificação com a liberdade humana, só que em SARTRE essa liberdade é puramente negativa (representa a irredutibilidade do homem à natureza) e, diante dos obstáculos, dá lugar à inércia, introduzida tanto na praxis humana (o “prático-inerte”, muito falado nessa obra) quanto na dialética ela mesma, onde essa inércia se torna o momento anti-dialético da dialética.

Neste ponto, GURVITCH observa um ceticismo e um pessimismo exagerado levando SATRE a tratar os conjuntos práticos, a dimensão social da existência (que a sociologia descobre em estado de realidade social) como ameaçada de cair na inércia e na dispersão das séries.

Quer dizer, para SARTRE a sociedade não é um macrocosmos de agrupamentos, mas uma dispersão das séries de séries (séries de manifestações particulares, séries de fatos[36]), cuja combinação é para ele contida sob a designação de “coletivo”, de tal sorte que os grupos e as classes sociais – tidos como os primeiros focos da “práxis comum” – são eles mesmos ameaçados de dissolução nas séries.

Desse modo, posto diante de tal alargamento do “prático-inerte”, GURVITCH indaga por quais motivos SARTRE sustenta ainda seu interesse pela dialética dos conjuntos sociais e consegue compensar seus iniciais pessimismo e ceticismo.

E GURVITCH, apreciando “La Critique de la Raison Dialectique”, nos oferece uma resposta a tal indagação sobre os motivos de SARTRE, seguinte: (a) – por sua confiança na práxis, na liberdade e na dialética da existência individual. Quer dizer, para SARTRE a dialética é negativa dos conjuntos práticos e se reduz a um método demonstrando que esses conjuntos não são realidades, mas são “quase sombras” projetadas pelas existências individuais, por um lado e, por outro lado, pela história universal idêntica à razão;

(b) – pela importância concedida à “crença no todo-poderio da razão dialética” que é identificada à práxis individual e ao movimento dialético da história realizando a razão universal, com a razão dialética, porém, triunfando no fim sobre essas suas duas identificações;

(c) – pela crença na inteligibilidade perfeita da história, cuja dialética conduziria, por sua vez, à vitória da razão universal sobre todos os obstáculos (reconciliação de Descartes e Hegel).

É assim às voltas com seu individualismo fundamental, na fronteira do subjetivismo, que se constata a renúncia de SARTRE em desenvolver a dialética entre o subjetivo e o objetivo, o duplo movimento da “interiorização do exterior” e da “exteriorização do interior”.

Movimento esse que, como esclarece GURVITCH, (a) – implica no seguinte não somente em que se alcance a subjetividade pela objetividade e reciprocamente, mas (b) – implica admitir que os dois termos possuem graus múltiplos, e ainda (c) – que os dois termos só têm sentido quando recolocados em uma realidade dupla, transobjetiva e transubjetiva.

Realidade dupla esta, por sua vez, que pressupõe a concepção de consciência aberta às influências da ambiente (Gestalt) [37], tanto quanto, ao lado da subjetividade individual, afirma o reconhecimento da subjetividade coletiva (aspiração coletiva aos valores), rejeitada por SARTRE.

Quer dizer, neste ponto se constata os preconceitos contra o conhecimento científico, já que essa renúncia de SARTRE em estudar a “realidade dupla” promove a exclusão de inúmeros autores importantes.

Por contra, a respeito do pensamento de Max SCHELER, excluído por SARTRE, GURVITCH assinala tratar-se de um pensador que insistiu no fato de a cada tipo de sociedade, a cada grupo, a cada ligação social, a cada era de civilização se oferecer um setor diferente do mundo infinito dos valores e do “logos”, assim como uma ordem das realidades com particular relevo – conduzindo à necessidade da colaboração de todos os quadros sociais e de todos os indivíduos para chegar a uma visão de conjunto [38] .

Por via dessa compreensão diferencial, Max SCHELER foi levado a duas descobertas fundamentais para toda a sociologia do conhecimento: (a) – a multiplicidade dos gêneros de conhecimento e, (b) – a diferente intensidade de ligação entre esses gêneros de conhecimento e os quadros sociais.

O conhecimento que tende a ser coletivo em Max SCHELER pode definir-se como “participação de uma realidade a uma outra” sem que nesta se produza qualquer modificação (é o sujeito cognoscente que sofre alterações em virtude do conhecimento). Daí se chega à formulação propriamente sociológica de que: (a) – a relação entre quadro social e conhecimento não é geralmente uma ligação causal; (b) – não se pode afirmar nem que a sociologia do conhecimento institui a realidade social como causa e o conhecimento como efeito, nem que o conhecimento age como causa sobre os quadros sociais. E GURVITCH acrescenta: o conhecimento como fato social é tão só um aspecto, um setor do fenômeno social total de que faz parte.

Por isso a colocação do conhecimento em perspectiva sociológica nada tem a ver em si própria com a afirmação de que um conhecimento é uma projeção ou um epifenômeno de um quadro social, ou ainda que é uma superestrutura ideológica. Afinal, na perspectivação sociológica do conhecimento se trata da procura de correlações funcionais entre quadros sociais e conhecimento; trata-se de um estudo explicativo que não levanta a questão do condicionamento de uns em relação ao outro, mas limita-se a verificar seu paralelismo.

Sob esse paralelismo posto em destaque pelas correlações funcionais entre quadros sociais e conhecimento podem surgir ademais da dependência ao mesmo fenômeno social total, as relações entre o simbolizado e o simbolizante. Quer dizer, dessa dependência configurando uma realidade particularmente qualitativa e contingente em mudança decorre que a afirmação do significado em sua autonomia relativa a respeito do significante -ou do simbolizado a respeito do simbolizante- seja também a antecipação no presente de um tempo futuro, seja também “um futuro atual” [39].

Segundo GURVITCH, é exatamente por rejeitar a subjetividade coletiva que SARTRE acaba numa estranha combinação do existencialismo, de HOBBES, de HEGEL e de MARX representando um mundo humano algo imaginário, mas em todo o caso “perfeitamente abstrato”.

Apesar desse alheamento sartreano do coletivo real, GURVITCH ainda se empenha em realçar a sociologia de SARTRE (a) – como definida em termos de “momento provisório da totalização histórica”, (b) – como estudando “as formas elementares que a história totaliza”, no dizer do próprio SARTRE.

Além disso, temos que em relação à história este autor não distingue entre realidade histórica e historiografia ou saber histórico, substituindo no “termo história” as sociedades globais, das quais não reconhece a existência, isto é, as reduz ao prometeismo [40], à sua historicidade.

Sua sociologia começa, então, (a) – pelo estudo dos “conjuntos prático-inertes”, (b) – prossegue pelo estudo dos grupos de diferentes gêneros e (c) – acaba nas classes sociais, que constituem para SARTRE a passagem para a história.

GURVITCH nota que os conjuntos prático-inertes correspondem à base morfológica da vida social, a qual na linguagem de SARTRE se define como maneiras de existir fora de si, como mediação entre a matéria aberta e o humano, mediação que é ao mesmo tempo objetivação alienada, em cujo domínio SARTRE inclui a instrumentalização da realidade material com toda a aparelhagem técnica que circunda o homem e, mais amplamente, todas as expressões exteriormente perceptíveis dos produtos humanos.

Acontece que SARTRE aí inclui também os termos “serialidade” e coletividade, os quais representam, segundo o mesmo – mas não para os sociólogos -, “certas formas elementares da vida social”. Neste ponto, GURVITCH nos faz ver a confusão de SARTRE, já que este autor não percebe que o seu termo de “conjuntos prático-inertes”, por impróprio que seja, se refere ao segundo caso, à inclusão das formas elementares; e, no primeiro caso, que inclui a instrumentalização da realidade material e etc., o seu termo adequado é o dos “campos prático-inertes”.

Quanto ao termo pouco claro de “série”, GURVITCH nota a inutilidade da reunião sob este termo de três ou quatro manifestações diferentes da vida social (relações de afastamento; Massas; solidariedade mecânica no sentido durkheimiano; enfim, coleção dispersa de indivíduos seguindo o mesmo modelo). Manifesta sua inquietação quando SARTRE afirma que as “séries servem de fundamento a toda a socialidade”, de tal sorte que este autor chega facilmente à conclusão mais inquietante ainda de que “a totalidade é aqui totalização prático-inerte da série das negações concretas de toda a totalidade”.

Quer dizer, para SARTRE a dialética real não opera na sociabilidade, a qual desse modo não passaria de uma sombra. GURVITCH aproveita então para lembrar-nos que SARTRE deixa escapar: (a) – o fato de que existem as relações com outrem mistas, onde alguém se aproxima distanciando-se e se distancia aproximando-se (relações bem notadas em certas situações contratuais); (b) – que essas relações podem ser ativo-passivas ou ativas; (c) – que elas pressupõem, todas elas, a existência de Nós (Nosotros) lhes servindo de fundamento; e (d) – que as massas podem tornar-se ativas.

Neste ponto, GURVITCH não se contem em sua inquietação intelectual e nos mostra a trama dogmática que se monta em torno do desconhecimento dos problemas da microssociologia, em especial o desprezo pelos Nós (Nosotros), isto é, os Nós (Nosotros) como focos de interpenetrações das consciências e das condutas, suas fusões parciais constituindo os fenômenos de participação direta dos indivíduos nas totalidades espontâneas (essa observação deixa claro a procedência exclusivamente sociológica do conceito de Nosotros como tema coletivo real, e desqualifica as interpretações pró fenomenologia).

Segundo GURVITCH, esses Nós (Nosotros)  são precisamente compreendidos em um movimento dialético real pela simples razão de que: “se interpenetrar ou fusionar parcialmente não quer dizer em absoluto se identificar, mas quer dizer se afirmar de uma só vez irredutíveis e participantes, unidos e múltiplos”. E GURVITCH se lamenta: “é justamente aqui onde a sociologia tem pela primeira vez essencialmente carência da dialética que SARTRE a abandona à sua própria sorte” [41] .

Nota ainda nosso autor, com severidade, que SARTRE construiu artificialmente o seu termo de “séries” para exatamente evitar os problemas da microssociologia e deixar de lado que as manifestações da sociabilidade são as primeiras antíteses salutares que se opõem ao prático-inerte.

Na concepção de SARTRE os grupos e as classes seriam as primeiras antíteses salutares – em vez das manifestações de sociabilidade – que se oporiam aos conjuntos práticos inertes pelos quais, todavia os próprios grupos e classes permaneceriam ameaçados.

Segundo GURVITCH, há ainda em SARTRE um esforço desesperado para chegar aos Nós (Nosotros) sob o aspecto da comunidade. Isso é notado na sua sociologia dos grupos, já que o grupo, nessa visão, não pode ser tornado inteligível sem a dialética sartreana entre “projeto, juramento, invenção, medo”, que é tida como a fonte da “dimensão da comunidade” e, mais exatamente, a fonte do que SARTRE chama “práxis comum”, que é ao mesmo tempo uma ligação de “reciprocidade ambivalente”.

Todavia, nota-se que esse esforço de SARTRE é tornado impossível pela própria maneira com que põe o problema, terminando por reduzir “a comunidade prática” a uma destotalização perpétua mediante a formulação de uma práxis comum que não existe em lugar nenhum senão por toda a parte, ubiqüidade essa que é uma determinação prática de cada um por cada um e de cada um por todos.

E isso é feito ao mesmo tempo em que se considera as “comunidades práticas” como o que mantém a coesão relativa de um grupo na sua oposição à série. Daí prossegue GURVITCH o caráter miraculoso da dialética de SARTRE, como fonte da “práxis comum”: a dialética das existências individuais, a qual engendra a realidade dos grupos, malgrado sua impossibilidade.

Essa dialética das existências individuais não ajuda SARTRE a entrever os conflitos reais entre os aparelhos organizados, as estruturas propriamente ditas e, enfim, a vida espontânea dos grupos.

Da mesma maneira SARTRE preserva o conceito de instituição como práxis e coisa, mas desconhece a dialética dos atos e das obras, “das maneiras de ser e dos jeitos de se ver” (“controles sociais”), em que o conceito de estrutura se revela o mais dialético, com os atos não se reduzindo à objetivação nas obras de civilização.

Na apreciação de GURVITCH, J.P.SARTRE não aproveita em absoluto da dialética para estudar a realidade social e só se ocupa de um mundo social imaginário, totalmente engendrado pela “razão dialética” toda poderosa, camuflando uma filosofia preconcebida.

Ainda que SARTRE conceda um lugar provisório ao hiperempirismo dialético posto em obra por GURVITCH e que fale da experiência dialética onde segundo ele “se trata de aprender e não de reencontrar”, “onde coisa alguma é segura e é preciso prosseguir”, GURVITCH observa (a) – que SARTRE se encontra muito distante dessa afirmação de uma perpétua renovação graças à dialética e à experiência humana nos seus conteúdos ou em seus quadros de referência; (b) – que o esforço de SARTRE para sintetizar o existencialismo, Hegel e Marx na sua teoria da razão dialética fracassou, ficando frustrado o seu desejo de lançar os prolegômenos a toda a antropologia futura, incluindo a história humana, a sociologia e a etnologia [42].

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© 2008 Jacob (J.) Lumier


A Dialética Sociológica, o Relativismo Científico e o Ceticismo de Sartre:

Aspectos de um debate do século XX.

Por

Jacob (J.) Lumier

CRONOLOGIA

DATAS DE PUBLICAÇÃO DAS PRINCIPAIS OBRAS E
EVOLUÇÃO INTELECTUAL DE GEORGES GURVITCH

por

Jacob (J.) Lumier

PERFIL de GEORGES GURVITCH

Notável intelectual e sociólogo influente do século XX, com expressão em língua francesa, fundador da microssociologia e incentivador da nova sociologia do conhecimento, a orientação de Georges Gurvitch pode ser condensada na seguinte sentença de 1957 reconhecendo a multiplicidade dos tempos: “sob a influência do impressionante desenvolvimento das técnicas de comunicação passamos num abrir e fechar de olhos pelos diferentes tempos e escalas de tempos inerentes às civilizações, nações, tipos de sociedades e grupos variados“.

Suas obras são atuais, despertam amplo interesse e proveitosa aplicação sendo encontradas em inúmeros idiomas ademais das línguas internacionais, inclusive em português e castelhano.

Segundo Henri Lefébvre, Gurvitch ensina a refinada elaboração da linguagem de ciência para a sociologia como disciplina científica do século XX, sobretudo a aplicação fecunda do aspecto tridimensional [43].

Em referência ao problema da multiplicidade dos tempos sociais, a influência e o aproveitamento de sua teoria sociológica foram reconhecidos pelo notável historiador Fernand Braudel, que aproxima Gurvitch de Bachelar notadamente pela introdução da sociologia dos patamares em profundidade da realidade social, em Francês “paliers”, cuja serventia na pesquisa histórica é inegável [44].

DATAS

Veja abaixo as datas de publicação das principais obras e evolução intelectual de Georges Gurvitch.

1925– Georges Gurvitch prepara sua carreira intelectual. • Deixa a Rússia em 192O onde nasceu em 1894 trazendo o volume que já publicara na língua desse país em 1917 intitulado ‘Rousseau e a Declaração dos Direitos : a idéia de direitos inalienáveis do indivíduo na doutrina política de Rousseau’. • Chegará à França após haver lecionado em Praga de 1921 a 1924, período no qual publicou, em Alemão, ‘A Filosofia do Direito de Otto V. Gierke’ (Tubingen, 1922) e ‘A Ética Concreta de Fichte’ (Tubingen, 1924). • Na França desde 1925 faz relações com Léon Brunschvicg quem lhe assegurará cursos livres na Sorbonne consagrados à filosofia alemã. Aproxima-se de Lucien Levy-Bruhl, Jean Wahl, Marcel Mauss e Maurice Halbwacs.

1930– Publicação de ‘Les Tendences Actuelles de la Philosophie Allemand : E. Husserl,

M. Scheler, E. Lask, M. Heidegger’, Paris, Vrin, 2ªedição em 1949.

1932– Publicação das Teses de doutorado em Lettres : • ‘L’idée du Droit Social: notion et système du droit social, histoire doctrinale depuis le XVIéme siècle jusqu’à la fin du XIXéme siècle’, Paris, Librairie du Recueil Sirey. • ‘Le Temps Present et L’Idée du Droit Social’, Paris, Vrin.

1935– • Gurvitch sucede a M. Halbwacs na Universidade de Strasbourg. • Publica ‘L’Experience Juridique et la Philosophie Pluraliste du Droit’, Paris, A.Pédone.

1936– • Primeiro artigo de Gurvitch sobre Microssociologia estabelecendo as orientações fundamentais dessa disciplina : ‘Analyse Critique de quelques Classifications des formes de sociabilité’, in Archives Juridiques.

1937– • ‘Morale Théorique et Science des Moeurs : leurs possibilités, leurs conditions’, Paris, Felix Alcan ; – 3ªedição remanejada em 1961 : PUF. • Gurvitch publica novo artigo sobre Microssociologia estabelecendo as bases e os conteúdos dessa disciplina, com o seguinte título: ‘Essai d’une Classification Pluraliste des Formes de Sociabilité’, in Annales Sociologiques, serie A, fascículo III.

1938– ‘Essais de Sociologie: les formes de sociabilité, le probleme de la consciente coletive, la morale de Durkheim’, Paris, Sirey. • As versões definitivas desses ensaios reelaborados serão posteriormente inseridas nos volumes de ‘La Vocation Actuelle de la Sociologie’, inclusive os temas sobre sociedades arcaicas.

1940– ‘Eléments de Sociologie Juridique’, Paris, Aubier.

1941 a 1945– • Nos Estados Unidos, convidado pela New School for Social Reserch de New York, Georges Gurvitch contribui à fundação da École Libre des Hautes Études. Aí, em discurso comemorativo datado em 1941, expõe ‘A Teoria Sociológica de Bergson’, posteriormente inserido em ‘A Vocação Actual da Sociologia-vol.II’ • Ainda em 1941, Gurvitch divulga novo artigo sobre Microssociologia intitulado ‘Mass, Community and Communion’, publicado no The Journal of Philosophy. •Publica em 1942 sua ‘Sociology of Law’, com prefácio de Roscoe Pound: New York, reeditado em Londres, em 1947 e em 1953. • Em 1944, publica, na coleção dirigida por Jacques Maritain, ‘La Déclaration des Droits Sociaux’, edição de la Maison de France, também em New York -posteriormente publicado em Paris, chez Vrin, 1946. • Em 1945, publica seu artigo Social Control, inserido na obra coletiva ‘Twentieth Century Sociology’, que, em sua primeira experiência como diretor, Gurvitch dirige em colaboração com W.E. Moore, em New York, a qual será posteriormente divulgada em Paris, em 1947 : ‘La Sociologie au Vingtiéme Siècle’, 2vols., PUF. • Relações com Pitirim Sorokim e com J.L. Moreno.

1945– Gurvitch leciona novamente em Strasbourg.

1946– • Gurvitch funda o Centre d’Études Sociológiques. • Cria os Cahiers Internationaux de Sociologie, publicados inicialmente junto às editions du Seuil, depois, junto às Press Universitaires de France-PUF, exercendo em vida como diretor dos Cahiers desde o vol.I até o vol.XL, sendo substituído depois de Dezembro de 1965 por Georges Balandier.

1949– • Georges Gurvitch é eleito à Sorbonne. • Neste mesmo ano, assume a direção da obra coletiva ‘Industrialisation et Technocratie’, publicada em Paris, Armand Colin.

1950– • Georges Gurvitch é eleito à École Pratique des Hautes Études de onde promoverá a expansão das Ciências Sociais, seja (a)- fazendo viagens como professor convidado na América Latina, Brasil, Canadá, Japão, Europa, países do Mediterrâneo, etc.; seja (b)- desenvolvendo e dirigindo (b1) – obras sociológicas em conjunto com outros e (b2) – grupos de pesquisas como o Laboratório de Sociologia do Conhecimento, ou ainda (c)- elaborando e ensinando sobre a desdogmatização e atualização da sociologia e da dialética a partir de seus cursos sobre autores clássicos como Saint-Simon, Proudhon, Marx, Durkheim e Mauss. • Neste mesmo ano publica ‘La Vocation Actuelle de la Sociologie -tome I: vers une sociologie différentielle’, Paris, PUF, 4ª edição em 1969, considerada a primeira expressão completa de sua teoria sociológica.

1954– ‘Le Concept des Classes Sociales de Marx a nos Jours’, Paris, Centre de Documentation Universitaire-CDU -2ªedição em 1960; republicado na coleção Mediations em 1966, com o título de ‘Études sur les Classes Sociales’, Paris, Gonthier.

1955– • ‘Les Fondateurs Français de la Sociologie Contemporaine : Saint-Simon, sociologue ; P-J. Proudhon, sociologue’, Paris, CDU -2ªedição em 1961. • ‘Determinismes Sociaux et Liberté Humaine : vers l’étude sociologique des cheminements de la liberté’, Paris, PUF -2ªedition em 1963 .

1957– • Gurvitch é o diretor da obra coletiva ‘Traité de Sociologie’, em 2 volumes, publicada a Paris, PUF – o primeiro volume nesta data e o segundo volume será publicado em 1960 (a 3ª edição dessa obra completa data de 1968). • Aparece ‘La Vocation Actuelle de la Sociologie -tome II : antécedents et perspectives’, Paris, PUF. • Gurvitch tem publicado mais um de seus cursos na Sorbonne : ‘Pour le Centenaire de mort d’August Comte’, Paris, CDU -2ªedition 1961.

1961– • ‘La Sociologie de Karl Marx’, Paris, CDU – em sua versão definitiva esse curso será incluído na segunda edição do volume II de ‘La Vocation Actuelle de la Sociologie’, Paris, PUF, 1963. • ‘La Multiplicité des Temps Sociaux’, Paris, CDU – posteriormente reelaborado e incluído em ‘La Vocation Actuelle de la Sociologie – tome II’, 2ªedition.

1962– ‘Dialectique et Sociologie’, Paris, Flammarion – 2ªedition, 1972.

1965– ‘Proudhon et Karl Marx’, Paris, CDU.

1966– ‘Les Cadres Sociaux de la Connaissance’, Paris, PUF.

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Fontes:

►Gurvitch et al.: “Tratado de Sociologia – vol. 2”, trad.: Ma. José Marinho, revisão: Alberto Ferreira, Porto, Iniciativas Editoriais, 1968, (1ªedição em Francês: Paris, PUF,1960).

►Balandier, Georges: ‘Gurvitch’, Paris, PUF, 1972, col. Philosophes, 120pp.

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A Dialética Sociológica, o Relativismo Científico e o Ceticismo de Sartre:

Aspectos de um debate do século XX.

Por

Jacob (J.) Lumier

FIM

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Literatura Digital

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Nota Complementar:

Conceito relativista, a reciprocidade de perspectiva é referida pelos estudiosos da teoria da relatividade como reciprocidade de perspectiva dinâmica: (…)  lorsque j’observe une personne en mouvement par rapport à moi, je constate que son horloge tourne plus lentement que la mienne, mais pour elle, de façon totalement réciproque, c’est bien mon horloge qui tourne le  moins  vite.  Dans  cette  perspective  « dynamique », lorsque 2 personnes sont en mouvement l’une par rapport à l’autre, chacune voit l’horloge de l’autre tourner moins rapidement et prendre le même retard. Cela provient du caractère relatif et réciproque de la vitesse : si 2 personnes sont en mouvement l’une par rapport à l’autre, la première se déplace tout autant par rapport à la seconde que  la seconde de déplace par rapport à la première. (…) Une personne aperçue à l’horizon garde sa taille normale et n’est pas réduite à un point ; c’est moi qui la vois toute petite. De même : Dans une fusée que je verrais passer à une vitesse proche de celle de la lumière, le temps des cosmonautes s’écoulerait toujours de façon identique ; c’est moi observateur  terrestre,  qui  ne  le  verrait pratiquement plus s’écouler. Ainsi verrais-je les cosmonautes  se déplacer, manger, vivre de façon extrêmement lente ; il me faudrait un temps très long pour voir ce qu’ils font pendant une durée très courte mesurée à leur horloge. (…)

En résumé, la relativité restreinte nous montre que les durées ne sont pas des notions absolues mais dépendent au contraire du référentiel ; elle ne fait que généraliser au cas du mouvement, les effets de perspective auxquels nous sommes habitués dans la vie courante. Avec elle, nous passons   de   la   perspective   « statique »   (≅   photo)   à   la   perspective « dynamique » (≅ film) : Einstein nous fait passer de la « photo » newtonienne, au film. De ce fait, ce résultat relativiste place le physicien qui cherche à représenter le monde, dans une situation analogue à celle de l’artiste : si je veux décrire le monde de façon cohérente en ce qui concerne les durées, je dois attribuer aux phénomènes des durées d’autant plus courtes que je vois les objets ou les personnes correspondantes se déplacer plus rapidement. Ne pas le faire entraînerait dans ma description des distorsions, des incohérences tout à fait analogues à celles que je découvre dans un dessin naïf qui ignore la perspective.
(Fragmento extraído de uma apostila de curso de introdução à Física, da França)

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NOTAS DE FIM



[1] DAHRENDORF, Ralf: “Ensaios de Teoria da Sociedade”, trad. Regina Morel, revisão e notas Evaristo de MORAES FILHO, Rio de Janeiro, Zahar – Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), 1974, 335 pp. (1ªedição em Inglês, Stanford, EUA, 1968). Ver pág.273.

[2] POPPER, Karl: “A Lógica da Pesquisa Científica”, traduzida da edição alemã de 1973, por Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota, São Paulo, Editora Cultrix / EDUSP, 1975, 567 pp. (1ªedição em Alemão: Viena, 1934). Ver pág. 353.

[3] POPPER, Karl: ‘Conhecimento Objetivo: uma abordagem evolucionária’, tradução Milton Amado, São Paulo/Belo Horizonte, EDUSP/editora Itatiaia, 1975, 394 pp, traduzido da edição inglesa corrigida de 1973 (1ªedição em Inglês: Londres, Oxford University Press, 1972). Cf. pág. 34.

[4] GURVITCH, Georges: “Dialectique et Sociologie”, Paris, Flammarion, 1962, 312 pp., col. Science.

[5] cf.GURVITCH, Georges: A Vocação Actual da Sociologia – vol. I: na senda da sociologia diferencial, tradução da 4ª edição francesa de 1968 por Orlando Daniel, Lisboa, Cosmos, 1979, 587 pp. (1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1950) págs.109 sq.

[6] Ib.ibidem. p.106-7.

[7] Em modo simplificado, a orientação de Gurvitch pode ser aproximada a Peter Berger em sua posição de considerar “as explicações funcionalistas” como “prestidigitação teórica” e em afirmar que “uma sociologia puramente estrutural corre endemicamente o perigo de reificar os fenômenos sociais (cf. Berger, Peter e Luckmann, Thomas: “A Construção Social da Realidade: tratado de sociologia do conhecimento”, trad. Floriano Fernandes, Rio de Janeiro, editora Vozes, 1978, 4ªedição, 247 págs. [1ªedição em Inglês, New York, 1966] pág. 44) – fenômenos sociais estes que Berger e Luckmann consideram como aspectos desse “espantoso fenômeno” que é a sociedade, isto é, como parte de um mundo humano, feito pelos homens, habitado por homens por sua vez fazendo os homens” (ib.p.247) cujo fluxo em criação coletiva ultrapassa a apreensão por conceitos teoréticos ou por ideologias.

[8] GURVITCH, Georges: A Vocação Actual da Sociologia – vol. I, op.cit. pág.111.

[9] Cf . GURVITCH, Georges: “Dialectique et Sociologie”, op.cit, pp.24; pp.246 sq.

[10] Isto, no dizer do próprio F.GONSETH, in “Dialectique”, Junho 1948, p.94, apud GURVITCH, Georges: “Dialectique et Sociologie”, op.cit.

[11] BACHELARD, Gaston: “La Dialectique de la Durée”, Paris, Press Universitaire de France-PUF, 1972, 151 pp., 1ªedition 1936.

[12] O hiperempirismo dialético.

[13] Metodologia é pois assumir o risco de frustrar a explicação: tal o especulativo, o conjetural.

[14] cf. GURVITCH, Georges: “Dialectique et Sociologie”, op.cit, p.238.

[15] GURVITCH, Georges: “Dialectique et Sociologie”, op.cit p.242.

[16] GURVITCH, Georges: “Dialectique et Sociologie”, op.cit p.248.

[17] GURVITCH, Georges: “Dialectique et Sociologie”, op.cit p.249.

[18] GURVITCH, Georges: “Dialectique et Sociologie”, op.cit p. 251.

[19] GURVITCH, Georges: “Dialectique et Sociologie”, op.cit p. 255.

[20] Idem, ibidem.

[21] Idem pág.257.

[22] SARTRE, Jean Paul : ‘Critique de la Raison Dialectique – Tome I : théorie des ensambles pratiques’ (précedé de Questions de Méthode), Paris, Gallimard, 1960, 756pp. Ver págs.117 e 130.

[23] Ver: Bloch, Ernst: Héritage de ce Temps (Erbschaft dieser Zeit, Zürich, 1935), tradução de Jean Lacoste, Paris, Payot, 1978, 390 pp. Nesta obra há uma aplicação da dialética relativista à filosofia sociológica da história pela primeira vez dentre os pensadores em Ciências Humanas do século XX. Ver tb: Bloch, Ernst: “Sujet-Objet: Éclaircissements sur Hegel”, Paris, Ed. Gallimard, 1977, 498 pp.; Versão francesa por Maurice de Gandillac a partir da edição alemã de Frankfurt, editorial Surhkamp, 1962; (1ª edição em alemão:1951).

[24] BACHELARD, Gaston: “O Novo Espírito Científico”, São Paulo, ed. Abril 1974, coleção “Os Pensadores”, vol.XXXVIII, pp.247 a 338 (1ªedição em Francês, 1935). Ver págs. 274, 277.

[25] Ibid.Ibidem pág. 296.

[26] Apud Bachelar op.cit pág 291.

[27] Ibid.Ibidem pág. 334.

[28] Ver: BACHELARD, Gaston: “O Novo Espírito Científico”, São Paulo, ed. Abril 1974, coleção “Os Pensadores”, vol.XXXVIII, pp.247 a 338 (1ªedição em Francês, 1935). Op. cit págs. 302 a 312.

[29] Nessa formulação vê-se o entendimento de que a funcionalidade é sempre probabilitária.

[30] Werner Karl Heisenberg (December 5, 1901 – February 1, 1976). O Princípio de Incerteza foi apresentado em monografia datada em 1927 e incluída na obra The physical principles of the quantum theory. Chicago: University of Chicago Press. 1930. Ver: WERNER HEISENBERG: A Bibliography of His Writings, By David C. Cassidy

Link: http://engr-sci.org/history/heisenberg/bibliography/contents.htm

[31] Cf. BOLL, Marcel: “L’ Idée Génerale de la Mécanique Ondulatoire et de ses Premiéres Explications”, 1923, p.23; apud BACHELARD, op.cit. pág.312.

[32] BACHELARD, Gaston: “O Novo Espírito Científico”, São Paulo, ed. Abril 1974, coleção “Os Pensadores”, vol.XXXVIII, pp.247 a 338 (1ªedição em Francês, 1935). Op. cit pág. 315.

[33] GURVITCH, Georges: “Dialectique et Sociologie”, Paris, Flammarion, 1962, 312 pp., col. Science, op. cit.. Ver págs. 203 a 227.

[34] SARTRE, Jean Paul : ‘Critique de la Raison Dialectique – Tome I : théorie des ensambles pratiques’ (précedé de Questions de Méthode), Paris, Gallimard, 1960, 756pp. Op.cit.

[35] Gurvitch, Georges: “Problemas de Sociologia do Conhecimento”, in Gurvitch et al.: “Tratado de Sociologia-vol.2”, trad.: Ma. José Marinho, revisão: Alberto Ferreira, Porto, Iniciativas Editoriais, 1968, pp.145 a 189 (1ªedição em Francês: Paris, PUF,1960). Ver págs. 157 sq.

[36] As Séries para Sartre, compondo a sua noção de coletivo, compreendem em sua dispersão (a) – as relações de afastamento; (b) – a solidariedade mecânica no sentido durkheimiano; (a) – a coleção dispersa de indivíduos seguindo o mesmo modelo, (c) – as Massas.

[37] As teorias de consciência aberta foram desenvolvidas por Bergson, por Husserl, por Bachelarde promovidas nos meios sociológicos por Gurvitch como levando à constatação da imanência recíproca do individual e do coletivo. Ver Gurvitch, Georges: “Dialectique et Sociologie”, Flammarion, Paris 1962, 312 pp., Col. Science.

[38] Cf. GURVITCH, “Tratado de Sociologia – vol.II”,op.cit.p.157.

[39] Ibid. Ibidem pág. 168/9; Ver tb: Gurvitch, Georges: “Determinismos Sociais e Liberdade Humana: em direção ao estudo sociológico dos caminhos da liberdade”, trad. Heribaldo Dias, Rio de Janeiro, Forense, 1968, 361 pp., traduzido da 2ªedição francesa de 1963. (1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1955). Págs. 66 a 69.

[40] Percepção coletiva de que a ação concentrada pode mudar as estruturas, a efetiva consciência da liberdade como prometeísmo é qualidade de experiência humana em todos os tipos de sociedades históricas e sua aplicação em sociologia é indispensável para descrever a realidade histórica como setor privilegiado da realidade social das sociedades globais, e desta forma evitar qualquer confusão com a filosofia da história. Ver Gurvitch, Georges: “Dialectique et Sociologie”, Flammarion, Paris 1962, 312 pp., Col. Science. Op.Cit.

[41] Gurvitch, Georges: “Dialectique et Sociologie”, Flammarion, Paris 1962, 312 pp., Col. Science. Op.Cit. pág. 215.

[42] Cf. Gurvitch, Georges: “Dialectique et Sociologie”, op. Cit, p.226.

[43] LEFÉBVRE, Henri: “Psicologia das Classes Sociais“, in GURVITCH e al. : ‘Tratado de Sociologia-vol.II’, tradução Almeida Santos, revisão Alberto Ferreira, Porto, Iniciativas Editoriais, 1968, pp.505 a 538 (1ªedição em francês : Paris, PUF, 1960 ).

[44] BRAUDEL, Fernand: “História e Ciências Sociais”, tradução dos artigos originais em Francês por Carlos Braga e Inácia Canelas, Lisboa, editorial Presença, 1972, 261pp.

The author Jacob (J.) Lumier

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