O Método de Estudo da Realidade Social
por
Jacob (J.) Lumier
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Mais informação leia: A Sociologia e o Problema Sociológico da Variabilidade
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Tópicos:
Os tipos ideais weberianos
O método tipológico
Uma análise de atitudes
O pluralismo descontinuísta
As atitudes individuais e as coletivas
A leitura da revista “Dialectique” (1947)
O problema da ligação dialética/experiência
Etiquetas
Método, crítica, ciência, história, sociologia, atitudes coletivas, dialética, realidade social, tempos, pluralismo, século vinte.
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A compreensão e a explicação são apenas momentos do mesmo processus. A tipologia qualitativa não pode ser aplicada no vazio.
Os tipos ideais weberianos
Segundo G. Gurvitch, o balanço da definição oferecida por Max Weber do objeto e do método da sociologia mostra que este autor amargou alguns reveses. Eis sua definição:
A sociologia é uma ciência da cultura que investiga os tipos ideais das oportunidades das condutas individuais que têm um caráter social, das quais estuda as significações internas e as significações culturais, procedendo pela compreensão interpretativa e atingindo, desse modo, a explicação causal das suas realizações nas condutas [i].
Em seu comentário, Gurvitch concede que Max Weber descobre o método tipológico ao fazer frente à objeção de que a sociologia como ciência da cultura estaria prejudicada por agasalhar a pretensão de generalizar num domínio onde a generalização não seria viável.
Os tipos sociológicos são construídos conscientemente com base na compreensão interpretativa dos “sentidos de condutas” (donde derivam os “valores”), de início “sentidos internos”, mas que, no desdobramento, se juntam às significações culturais.
Portanto, os tipos sociológicos não são considerados nem como espécies biológicas, nem como fases do desenvolvimento histórico, nem como essências fenomenológicas. Esses tipos descobertos por Max Weber são intermediários entre a generalização e a individualização. E Gurvitch esclarece: a sua generalidade, contudo nada tem a ver com a média; a individualização derivando das significações não se identifica a uma não-repetição, sendo os “sentidos internos” ou subjetivos mais individualizados do que os sentidos culturais.
Quer dizer, os tipos ideais weberianos, como elaborações especiais caracterizando o procedimento investigativo dos sociólogos, são “imagens mentais” obtidas por “racionalizações utópicas das condutas sociais a partir das suas significações”. Tais tipos são irredutíveis uns em relação aos outros, são descontínuos e qualitativos. São estilizações conscientes e desejadas onde se acentua se elimina se exagera para atingir imagens coerentes de aspecto original que podem servir de quadros de referência operativos.
Gurvitch avalia que Max Weber deu um duplo passo em frente ao reconhecer o caráter qualitativo e descontinuísta dos tipos construídos pela sociologia e ao recusar a renúncia à explicação em favor da compreensão, de que padeceu Dilthey.
Nada obstante, os reveses de Max Weber podem ser bem apreciados nos seus fracassos seguintes: a ligação arbitrária da compreensão e da interpretação subjetiva; a impossibilidade em justificar a passagem das significações internas ou subjetivas para as significações sociais e culturais; a sua renúncia a todos os critérios objetivos que permitem construir tipos; a ligação dos critérios a um culturalismo abstrato; a dispersão e a inaptidão desses mesmos critérios para serem aplicados aos fenômenos sociais e às suas estruturas; a destruição da realidade social por um nominalismo probabilista e individualista que, dissimulado por sua imensa erudição histórica, torna Weber incapaz de apreender a sociedade, os grupos, as classes, os Nós-outros, bem como as suas obras diretas; a combinação do formalismo, do culturalismo e do psicologismo que não se sintetizam, e que permanecem desligados uns dos outros; a ausência, enfim, de qualquer orientação dialética.
O método tipológico
A crítica de Gurvitch insiste pois nestes últimos defeitos, sobretudo na ausência de orientação dialética que impediu Weber de apreender as totalidades concretas e desse modo ultrapassar a consciência fechada. Quer dizer, o impediu de chegar a ver que a compreensão e a explicação são apenas momentos do mesmo processus e que a tipologia qualitativa não pode ser aplicada no vazio.
Gurvitch não apenas se opõe ao culturalismo abstrato, mas critica a ausência de uma teoria dinâmica no próprio pensamento probabilitário em Weber, sua limitação pelo nominalismo e o individualismo, na “teoria das oportunidades das condutas individuais”.
Por contra, para estabelecer um contraste, todo o pensamento de Gurvitch baseia-se no caráter intermediário dos tipos sociológicos; na afirmação de que os tipos sociológicos “representam quadros de referência dinâmicos adaptados aos fenômenos sociais totais e chamados a promover a explicação em sociologia”.
Daí decorre a importância em distinguir entre generalização, singularização e sistematização, bem como entre repetição e descontinuidade, sem falar na distinção entre explicação e compreensão, pois estas distinções e critérios dos tipos sociológicos só podem ser utilizados numa orientação de teoria dinâmica.
Segundo Gurvitch, o método eficaz de estudo da realidade social consiste na tipologia qualitativa e descontinuísta. Essa tipologia se liga, necessariamente,
(a) – à aplicação de uma visão de conjunto recusando-se a sacrificar tanto a unidade quanto a multiplicidade; (b) – ao recurso aos procedimentos do hiperempirismo dialético, os únicos que se mostram capazes (b1) – de frustrar a tentação de mumificar os tipos e estabilizar a visão de conjunto e (b2) – fazer sobressair toda a complexidade do método da sociologia.
Gurvitch põe em relevo os pontos seguintes: que os tipos sociológicos podem repetir-se e por isso
(a) o método tipológico generaliza até certo limite, mas para fazer assinalar a especificidade do tipo, e
(b) constrói diferentes tipos em função da variedade dos quadros sociais reais e suas estruturas, como um método singularizante, mas só para reencontrar os quadros suscetíveis de se repetirem.
Da mesma maneira, o método tipológico:
(c) – utiliza os dados da história, mas só para acentuar as descontinuidades ou rupturas verificadas não apenas (c1) – entre os Nós-outros, grupos, classes, sociedades globais, por um lado, mas também, (c2) – por outro lado, entre os fenômenos sociais totais e suas estruturas.
Desta forma, são distinguidos três gêneros de tipos sociológicos: (1) os tipos microssociológicos ou tipos de ligações sociais: os Nós-outros, as relações com Outrem;
(2) os tipos de agrupamentos particulares e classes sociais;
(3) os tipos de sociedades globais.
Na sequência são distinguidas as três espécies dos tipos:
(a) – a espécie microssocial é abstrata;
(b) – a espécie dos agrupamentos particulares é abstrata concreta;
(c) – enquanto que as classes sociais e as sociedades globais são de espécie concreta, dotadas de acentuada extensão histórico-geográfica.
O segundo aspecto do método da sociologia consiste em tomar sempre em consideração todas as camadas, todas as escalas, todos os setores da realidade social ao mesmo tempo e de chofre, aplicando-lhes uma visão de conjunto – isto é, como dissemos: em ligação com os procedimentos do hiperempirismo dialético, pois que se trata de estudar o vaivém, a interpenetração e a tensão:
(a) – entre as camadas, as escalas;
(b) entre os elementos anestruturais, estruturados, estruturáveis;
(c) – entre o espontâneo e o organizado;
(d) – entre os movimentos de estruturação, de desestruturação e de reestruturação; e ainda,
(e) – entre o indivíduo e a sociedade.
Finalmente, Gurvitch sintetiza que o pluralismo hiperempírico é essencialmente a característica do método da sociologia, é a sua forma específica de aplicar a visão de conjunto, sem absorver a multiplicidade na unidade.
Uma análise de atitudes
Na raiz do pluralismo hiperempírico encontram-se algumas orientações descobertas a partir de uma análise de atitudes, em que o avanço das ciências nem sempre têm relação com o “Homo Faber” [ii].
Em sociologia não se verifica a vida social, a sociabilidade, em termos de instintos, mas, antes, como projeções de atos coletivos -cujas configurações são as atitudes– de tal sorte que os grupos sociais reais são penetrados por esses atos coletivos, os quais são apreendidos nos estados conscientes, emotivos, voluntários e intelectuais. Quer dizer, as intuições coletivas de diferentes espécies em que esses atos são apreendidos estão virtualmente presentes em qualquer manifestação da mentalidade coletiva.
À vida social real corresponde um fenômeno psíquico do todo social em que o consciente e o supra consciente não estão separados por nada mais do que pelos graus do subconsciente e reciprocamente, isto é: esses graus do subconsciente, por sua vez, não estão separados senão pelos graus de passagem do supra consciente ao consciente, não havendo nenhuma “natureza exterior” aprisionando o “psiquismo coletivo”.
Observando certos resultados de Bérgson que reconheceu e descreveu uma multiplicidade de tempos, e passando-os pela crítica em vista de apresentar o realismo temporalista, Gurvitch assinala algumas observações seguintes:
(a) – o construído das ciências, aí compreendidas as suas temporalidades conceituadas, pode basear-se sobre o vivido dessas temporalidades;
(b) – a matéria, a vida, o psíquico e o social se situam – como já foi mencionado – em diferentes graus do tempo qualitativo;
(c) – há compromisso entre o tempo qualitativo e o tempo quantitativo, entre experiência interna e experiência externa;
(d) – há possibilidade de medir indiretamente o tempo qualitativo;
(e) – a afirmação da existência de conjuntos reais é admitir a preexistência matemática do futuro no presente [iii].
Notando-se ainda que a descontinuidade e a contingência interviriam principalmente no interior de cada um desses tempos, bem como entre eles.
Nessa “leitura”, Gurvitch quer estabelecer as três escalas que estão na mesma situação de intermediação entre os contrários complementares.
Seu ponto de partida é, então, a observação de que (a) – cada esfera do real, (b) – cada gênero de determinismo (c) – cada procedimento operativo para constatá-lo “se encontra situado, não somente em outro grau de compromisso entre o qualitativo e o quantitativo, o contínuo e o descontínuo, o contingente e o coerente, mas também em outra temporalidade”.
Pretende nosso autor acentuar que cada gênero de atividade humana se afirma em um tempo particular e que o mesmo é válido para os tempos aos quais se referem as diferentes ciências. Sustenta, então, que a temporalidade científica não pode ser destacada da temporalidade real sobre a qual se funda, assim como o construído não pode ser isolado do vivido, enfatizando que assim é porque esses dois elementos se encontram ligados por uma dialética de passagem [iv] .
O pluralismo descontinuísta
Mas não é tudo. Na análise de Gurvitch este pluralismo descontinuísta aparece como desdobramento da teoria da relatividade geral de Einstein. Daí falar de vários tempos na física que mantêm diferentes relações, tanto que Bachelard dirá o seguinte: “se o tempo do físico pôde aparecer até nossos dias único e absoluto foi porque o físico se situou primeiramente num plano experimental particular. Com a relatividade, surgiu o pluralismo temporal”.
Bachelard prossegue: para a relatividade, existem vários tempos que, sem dúvida, se correspondem…, mas que não conservam duração absoluta. A duração é relativa. A concepção das durações nas doutrinas da relatividade aceita ainda a continuidade como característica evidente… o mesmo não se passa na física quântica. Todas as dificuldades que encontramos na assimilação das doutrinas provêm do fato de explicarmos uma mudança de qualidade… (por uma) mudança de lugar. Veremos que a continuidade é aqui… uma péssima hipótese… É, pois, de presumir que a física quântica implique necessariamente a concepção de durações descontínuas que não terão as propriedades de encadeamento ilustradas… por trajetórias contínuas [v].
O relevo na análise de Gurvitch é posto nos critérios pelos quais os tempos se multiplicam. Tem privilégio o fato de que a temporalidade científica não pode ser destacada da temporalidade real sobre a qual se funda, assim como o construído não pode ser isolado do vivido.
Essa constatação faz sobressair o equívoco da interpretação levando a concluir que o tempo em que são colocados os objetos das diferentes ciências, por ser na maioria dos casos um tempo mensurável e dependente de planos de referência mais ou menos artificialmente construídos para cada ciência, perderia, por isso mesmo, seu caráter específico, seu elemento particular de contingência, de qualitativo e de descontínuo.
Na análise de Gurvitch o elemento do qualitativo, do descontínuo e do contingente no tempo:
Primeiro: se fortifica gradualmente à medida que se passa sucessivamente da astronomia à macrofísica, desta à microfísica, da mecânica, mesmo quântica, à termodinâmica, desta à química, depois à biologia, enfim, à psicologia, à história e à sociologia; ao passo que,
Segundo: se fortifica gradualmente o quantitativo no percurso inverso, atrás do contínuo e do coerente.
No primeiro caso, o recurso às leis causais torna mais limitada a expressão do determinismo, enquanto no segundo caso torna-se mais propícia a aplicação dessas leis (salvo em microfísica).
De todas as maneiras, se permanece sempre na esfera do determinismo desde que:
(a) se tenha em conta o pluralismo dos determinismos como correspondentes à multiplicidade dos tempos e,
(b) se tenha em conta o fato de que lei e determinismo não se entrelaçam. Ademais, nota-se que não existe sempre correspondência entre o reforço do qualitativo e o da descontinuidade (p.ex.: o tempo na ciência da história é simultaneamente mais continuísta e mais qualitativo que em sociologia), acentuando a multiplicidade dos tempos.
Nota-se ainda que os tempos se multiplicam: (a) – segundo as acentuações variadas do presente, do passado e do porvir; de suas projeções e contatos diversos; (b) – segundo seus avanços, retardos, caráter cíclico, alternância, virtualidade de crises e de explosões, aparição e desaparição de ritmos.
Entretanto, estes diferentes critérios podem coincidir ou entrar em conflito, bem como podem ter importância e significação desiguais nas diversas esferas do real: apreendidas, conhecidas, ou conscientemente construídas pelas diferentes ciências.
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As atitudes individuais e as coletivas
A dialética sociológica de que nos fala Gurvitch funda-se nas atitudes coletivas como conjuntos ou configurações sociais (Gestalten) virtuais ou atuais que implicam ao mesmo tempo: 1) – uma mentalidade, em particular preferências e aversões afetivas; 2) – predisposições a condutas e reações; 3) – tendências a assumir papéis sociais determinados; 4) – um caráter coletivo; 5) – um quadro social em que: (a) – os símbolos sociais se manifestam, e (b) – escalas particulares de valores são aceites ou rejeitadas.
As relações dialéticas surgem da impossibilidade em opor as atitudes individuais e as atitudes coletivas, como alternativas. Elas se encontram umas vezes em relações de complementaridade, outras vezes em relações de implicação mútua; umas vezes em relações de ambiguidade, outras vezes em polarização; outras vezes, enfim, em relações de reciprocidade de perspectiva.
No estudo sociológico das relações entre as atitudes individuais e as atitudes coletivas, todas essas possibilidades de relações dialéticas devem ser consideradas.
Não basta encarar apenas umas ou outras; não basta privilegiar a complementaridade, por exemplo, em detrimento da implicação mútua, da ambiguidade, etc.
Essa exigência decorre da constatação de que:
(a) – os indivíduos mudam de atitude em função dos grupos aos quais pertencem – sendo os grupos formados exatamente com base na continuidade e no caráter ativo de uma atitude coletiva;
(b) – os papéis sociais que os indivíduos assumem, ou os personagens que eles encarnam, mudam segundo os círculos sociais diferentes a que eles pertencem [vi].
Desta sorte, um pai ou um marido muito autoritário, p.ex., pode simultaneamente desempenhar o papel de um colega particularmente atencioso, etc.;
(c) – em cada grupo um indivíduo desempenha um papel social diferente: é ajustador, vendedor, professor, etc.; por outro lado, esse mesmo indivíduo pode desempenhar nesses grupos papéis umas vezes sem brilho, outras vezes brilhante; umas vezes subordinados, outras vezes dominantes;
(d) – os mesmos indivíduos e os mesmos grupos podem, segundo estruturas e conjunturas sociais variadas, desempenhar papéis muito diferentes e até opostos (ib. p. 106-7).
Essas relações dialéticas entre as atitudes individuais e as atitudes coletivas levam a sociologia a estabelecer o que Gurvitch chama os “coeficientes de discordância” entre as opiniões exprimidas nas sondagens de opinião pública e as atitudes reais dos grupos.
Quer dizer, as atitudes coletivas permitem a experimentação. Segundo nosso autor, elas constituem, talvez, na realidade social, o nível mais paradoxal, e são ao mesmo tempo:
(a) – flutuantes e persistentes;
(b) – inesperadas e previsíveis,
(c) – elas não se podem apreender e permitem ao mesmo tempo a experimentação.
Na sociologia diferencial desenvolvida por Gurvitch são as atitudes coletivas que abrem a série das camadas em profundidade, cujo conjunto constitui o aspecto propriamente espontâneo do social. Os modelos, as práticas, os papéis sociais são intermediários em relação ao social-espontâneo.
A exigência em considerar todas as possibilidades das relações dialéticas em decorrência da definição mesma das atitudes coletivas como configurações sociais (Gestalt) confirma-se no fato de que as atitudes se manifestam nas três escalas em que se constituem os fenômenos do todo social, os “fenômenos sociais totais”, no dizer de Gurvitch, a saber: a escala dos Nós-outros, a dos grupos e classes, a das sociedades globais.
Sendo uma das manifestações de gestalten sociais, as atitudes exprimem ambientes imponderáveis (ib. p. 111). Na sociologia de Gurvitch, as atitudes são tratadas como um conceito primordialmente sociológico; precisamente, no dizer do nosso autor, um nível específico em profundidade da realidade social, que (a) – abarca um campo mais vasto de todas as ligações de papéis sociais, de todas as práticas e todos os modos mais flexíveis e, geralmente, (b) – abarca mais do que todas as condutas mais ou menos regulares e, bem entendido, (c) – mais do que todos os aparelhos organizados, servindo a todos de fundamento.
Além disso, as manifestações das atitudes coletivas refletem-se em cada um dos outros planos sobrepostos, que podem ser considerados como expressões, como produções ou realizações das atitudes coletivas.
Sublinha nosso autor que é a constatação da impossibilidade em opor as atitudes individuais e as atitudes coletivas, e o reconhecimento da exigência em considerar todas as possibilidades de relações dialéticas no estudo sociológico desse fenômeno, que conduz a uma compreensão da aplicação ampliada dos procedimentos dialéticos utilizados na física quântica.
A leitura da revista “Dialectique” (1947)
Diz-nos Gurvitch a respeito dessa compreensão que, na leitura dos diversos números da revista “Dialectique” (1947), os físicos modernos insistem no procedimento operativo da complementaridade, deixando de lado a implicação mútua, a ambiguidade, etc.
Acrescenta nosso autor ser insuficiente concluir que, se nas ciências da natureza o procedimento operativo da complementaridade dialética é o único aplicável, o mesmo raciocínio deveria valer para as ciências do homem. Lembra-nos que a realidade humana e social exige a aplicação do conjunto dos procedimentos operativos dialéticos disponíveis [vii].
Diz-nos também o seguinte: (a) – depois que Niels Bohr, Louis de Broglie, J. L. Destouches aplicaram a dialética da complementaridade às ondas e corpúsculos, (b) – Werner Heisenberg e von Newman ampliaram a aplicação dessa dialética de complementaridade até as relações entre situação e velocidade dos elétrons, (c)- F. Gonseth e seus colaboradores, por sua vez, a estenderam mais ainda, aplicando-a às relações entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno em matemáticas.
Todavia, Gurvitch sustenta que nem o sentido do termo “complementaridade”, nem a relação deste procedimento operativo com outros procedimentos de dialetização, nem, enfim, suas relações com o método dialético ele mesmo e com a realidade estudada, não foram entretanto esclarecidos e aprofundados.
Segundo Gurvitch, entendeu-se que o processamento dialético é essencialmente depuração de um conhecimento sob a pressão de uma experiência com a qual ele se defronta.
Ou ainda, na mesma revista: “o que Nós-outros denominamos dialética é uma concepção da ciência segundo a qual toda a proposição científica é em princípio revisável”.
Em conclusão, nosso autor remarca que essa introdução da dialética nas ciências exatas foi feita em relação ao seguinte:
(a) – para abrir um acesso em direção ao que é escondido, ao que é dificilmente possuível;
(b) – para renovar experiência e experimentação;
(c) – para tornar essencialmente impossível a esclerose dos quadros operativos.
Quer dizer, para Gurvitch trata-se, então, de uma dialética que não é nem uma arte de discutir e de enganar, nem um meio de fazer a apologia de posições filosóficas preconcebidas – sejam elas denominadas racionalismo, idealismo, criticismo, espiritualismo, materialismo, fenomenologia, existencialismo.
Tal a dialética experimental e relativista, recorrendo à especulação para melhor adaptar os objetos do conhecimento às profundezas do real.
O mesmo vale para um importante filósofo da cultura científica como Gaston Bachelard, quem começou a introduzir a dialética desde o ano de 1936 (ver “La Dialectique de la Durée”, op.cit.) e notou que a dialética é ligada a procedimentos operativos que tornam relativo o aparelho conceitual de toda a ciência.
A experiência da realidade social arregrada pela sociologia põe em relevo a necessidade do recurso aos procedimentos dialéticos operativos, sendo experiência do movimento dialético real, próprio ao mundo humano, bem como experiência das manifestações desse movimento nos objetos do conhecimento construídos pela sociologia.
O problema da ligação dialética/experiência
O desdobramento em vários procedimentos dialéticos examinados por Gurvitch para completar o único procedimento da complementaridade introduzido e aplicado na física contemporânea, é sustentado com os seguintes argumentos da impossibilidade:
1º) a impossibilidade de que o método dialético corresponda rigorosamente à multiplicidade dos movimentos dialéticos reais – pois se terminaria assim por espalhá-lo ao infinito;
2º) a impossibilidade de que, no caso oposto, a manutenção de um único procedimento operativo do método dialético seja aplicável a toda a multiplicidade dos movimentos dialéticos reais, diversamente orientados e às vezes irredutíveis, pois isso ensejaria uma inflação e um fetichismo das antinomias e, por seu intermédio, provocaria um retorno ao dogmatismo. Quer dizer, agravaria o erro de impulsionar a dialética como método para a polarização dos contraditórios [viii].
Note-se que o anteriormente mencionado posicionamento de Jean Paul Sartre ao classificar “dialetismo” a orientação tópica da sociologia diferencial de Gurvitch, como se nesta última a dialética não fosse mais do que a “forma mentis” da “empiria”, não passa de simplificação.
O equacionamento do problema da ligação da dialética e da experiência / experimentação vai mais longe do que a simples questão de mentalização e, constatando a relativização da oposição metodológica do vivido e do experimental, se defronta com uma variedade de graus do construído na experiência humana.
No pensamento de Gurvitch o único caminho para escapar ao dogmatismo é a distinção entre vários procedimentos operativos de dialetização ou de clarificação-purificação (“éclairage”) dialética, os quais, relevando todos do método dialético, são aplicáveis de várias maneiras, seja de maneira exclusiva, de maneira concorrente, ou de maneira conjunta, como no caso do estudo das relações entre atitudes individuais e atitudes coletivas, que exige como vimos a consideração de todas as possibilidades de relações dialéticas.
Nosso autor relaciona os cinco procedimentos operativos nos quais se manifesta o método dialético, os quais já tivemos a ocasião de mencionar e veremos logo adiante um por um, na seguinte ordem: 1º) – a complementaridade dialética, 2º) – a implicação dialética mútua, 3º) – a ambiguidade dialética, 4º) – a polarização dialética, 5º) – a reciprocidade de perspectiva.
Na descrição desses procedimentos o tópico posto em relevo é a diferença entre a disposição da experiência nas ciências da natureza, a qual visa conteúdos que neles mesmos nada têm de dialéticos, por um lado e, por outro lado, a experiência arregrada em sociologia, a qual, por sua vez, visa conteúdos que já são dialéticos, como o é a própria realidade social.
Com efeito, a praxeologia ou qualquer teoria da experiência tomando a experiência como unívoca e como servindo a uma preconcepção filosófica (sensualismo, associonismo, positivismo, pragmatismo, etc.) deforma a experiência, a estanca, destrói o imprevisível, a variedade infinita, o inesperado de seus quadros [ix] .
Em sociologia, a orientação do empirismo dialético valorizando a experiência e a experimentação, e a orientação do realismo dialético valorizando os dados existentes na realidade, baseiam-se nos mesmos caracteres da realidade social, da experiência e da dialética. Do ponto de vista sociológico, esses três âmbitos do ser, ao invés de significarem uma escala de precedências, consistem nas obras e nos atos coletivos e individuais, frequentemente interpenetrados, conforme se pode ver nas atitudes coletivas como implicando um quadro social em que escalas particulares de valores são aceites ou rejeitadas.
A experiência é o esforço dos homens, dos Nós-outros, dos grupos, das classes, das sociedades globais para se orientarem no mundo, para se adaptarem aos obstáculos, para os vencer, para se modificarem e modificar seus entornos, sendo a essa compreensão ultrapassando e englobando a racionalidade da técnica que Gurvitch refere a noção de “práxis”, como sendo de uma só vez coletiva e individual.
A experiência da realidade social arregrada pela sociologia põe em relevo a necessidade do recurso aos procedimentos dialéticos operativos, sendo experiência do movimento dialético real, próprio ao mundo humano, bem como experiência das manifestações desse movimento nos objetos do conhecimento construídos pela sociologia.
Notas
[i] Apud Gurvitch: “Tratado de Sociologia, vol. I” trad. Rui Cabeçadas, revisão: Alberto Ferreira, Porto, Iniciativas Editoriais, 1964, 2ªedição corrigida (1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1957), págs. 31-33.
[ii] Gurvitch assinala o caso da Grécia clássica, já mencionado, com as ciências em desenvolvimento e a técnica retardatária; ou o caso do Egito antigo, com as técnicas desenvolvidas e as ciências embrionárias.
[iii] Embora recusem as construções que supõem a apreensão imediata e simultânea por nosso pensamento de conjuntos infinitos, os construtivistas admitem que a atualidade do infinito e os resultados globais em teoria dos números são úteis em tão alto grau que não se pode em absoluto dispensar de apreendê-los “quase – ontologicamente“. Cf. Peccatte, Patrick: “La Consistance Rationnelle Critique de la raison démarcative“, Saint-Étienne: Aubin éditeur, 1996, Versão E-book, 188 págs. pdf, 12 Dezembro 2001. O autor reconhece que o construtivismo permanece muito presente e estimulante na filosofia contemporânea das matemáticas http://peccatte.karefil.com/CR/CR.PDF
[iv] Gurvitch, Georges (1894-1965): “Determinismos Sociais e Liberdade Humana: em direção ao estudo sociológico dos caminhos da liberdade”, trad. Heribaldo Dias, Rio de Janeiro, Forense, 1968(a), 361 pp., traduzido da 2ªedição francesa de 1963. (1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1955). Cf. pág.26.
[v] Cf. Bachelard “La Dialectique de la Durée”, pp.90-91, apud Gurvitch, “A Vocação Atual da Sociologia”, vol.II, op.cit, pp.378-9.
[vi] Cf. “A Vocação Atual da Sociologia, vol. I: Na Senda Da Sociologia Diferencial”, tradução da 4ª edição francesa de 1968 por Orlando Daniel, Lisboa, Cosmos, 1979, 587 pp. (1ª edição em Francês: Paris, PUF, 1950), pp. 109sq.
[vii] Cf.”Dialectique et Sociologie”, pp.24; pp.246sq.
[viii] Cf. Gurvitch: “Dialectique et Sociologie”, op.cit, p.238.
[ix] Cf. “Dialectique et Sociologie”, op.cit, p.242.