PSICOLOGIA COLETIVA E SOCIOLOGIA:
Os níveis da consciência alienada na
teoria do fetichismo da mercadoria em Karl Marx
por
Jacob (J.) Lumier
Extraído de “Sociologia dos Sistems Cognitivos” (a ser divulgado em breve).
Neste artigo quero pôr em relevo que o ponto de vista da sociologia é indispensável para ultrapassar o dogmatismo que se projeta sobre a suposta redução do psiquismo coletivo à consciência de classe.
A psicologia coletiva em sua vinculação à sociologia pode ser bem assinalada nas análises que levam ao desocultamento da consciência alienada como fenômeno sociológico descoberto por Karl Marx.
Como se sabe, no“Rascunho da Contribuição à Crítica da Economia Política” (“Grundrisse..”) Marx elabora sobre o problema da consciência alienada em revolta epistemológica não só contra Hegel, mas contra a Economia Política.
Dois níveis são nitidamente distinguidos nessa elaboração de tal sorte que o aspecto propriamente sociológico da consciência alienada vai surgindo da crítica à mentalidade adstrita à personificação do capital como compreendendo representações de psicologia coletiva.
Com efeito, o problema da consciência alienada descortina-se lá onde, repelindo a separação praticada pelos economistas burgueses em face da sociologia econômica como decorrente de um estado mental, Marx relaciona diretamente a própria constituição da economia política com a dominação das alienações: “os economistas burgueses estão de tal modo impregnados pelas representações características de um período particular da sociedade que a necessidade de certa objetivação das forças sociais do trabalho lhes parece inteiramente inseparável da necessidade da desfiguração desse mesmo trabalho pela projeção e pela perda de si, opostas ao trabalho vivo” [i].
O aspecto de sociologia econômica nessa formulação é bem estabelecido na distinção entre a necessidade real de certa objetivação das forças sociais do trabalho, por um lado e, por outro lado a necessidade da desfiguração desse mesmo trabalho pela projeção e pela perda de si, opostas ao trabalho vivo sob o regime do capitalismo concorrencial.
Por sua vez, Marx esclarece que a mentalidade levando à representação de uma vinculação inseparável entre objetivação e desfiguração do trabalho – que em realidade social configuram os dois níveis sociológicos constatados – é uma mentalidade que releva da psicologia coletiva porque integra-se em seu tipo às representações características de um período particular da sociedade.
Quer dizer, a representação de uma vinculação inseparável entre objetivação e desfiguração do trabalho denota uma mentalidade tipificada a partir da assimilação de uma realidade social que a sociologia pode caracterizar como um período social em que a produção e as suas relações regem o homem ao invés de serem por ele regidas (o período das sociedades arcaicas e do mito do maná estudadas dentre outros por Marcel Mauss [ii]).
Por outras palavras, trata-se de um estado mental diferenciado pela mistificação das forças materiais. E a análise sociológica da psicologia coletiva descoberta por trás dessa mentalidade é esquematizada por Marx nas seguintes formulações: (1) – “eles (os economistas) acentuam não as manifestações objetivas do trabalho, da produção, mas a sua deformação ilusória que esquece a existência dos operários para reter apenas a personificação do capital, ignorando a enorme força objetiva do trabalho que se exerce na sociedade e que está na própria origem da oposição dos seus diferentes elementos” (ib.). (2) – “Formas que demonstram, a primeira vista, pertencerem a um período social em que a produção e as suas relações regem o homem ao invés de serem por ele regidas [o período das sociedades arcaicas e do mito do maná] parecem à consciência burguesa uma necessidade muito natural” [iii].
Nessa análise torna-se claro não somente que a psicologia coletiva pertence ao âmbito da sociologia, mas que, mediante a análise sociológica, Marx descobre a psicologia que caracteriza o regime capitalista.
Tanto é assim que, nessa mesma obra “O Capital”, nota-se melhor ainda o caráter socialmente arcaico que compõe o aspecto psicológico do conceito de consciência alienada. Basta pôr em relevo as passagens referentes à análise sociológica de Marx sobre a distinção anteriormente introduzida na história do pensamento objetivo por Aristóteles, a saber: a distinção entre o valor de uso e o valor de troca.
Contrariando a este último, o qual como nos lembra Gurvitch não notara que o valor de troca de uma mercadoria depende da quantidade de trabalho socialmente necessário para produzir esta mercadoria, Marx sublinha o que caracteriza especificamente os valores de troca das mercadorias em regime capitalista como sendo exatamente o fato de que essas mercadorias se tornaram “fetiches”.
Não há dúvida que se trata do surgimento de uma psicologia coletiva descoberta mediante a análise sociológica. A seguinte formulação de Marx é conclusiva sobre o perfil mistificado da mentalidade adstrita à personificação do capital: “É (…) uma relação social determinada dos homens entre si que reveste aqui para eles a forma fantástica de uma relação das coisas entre elas. É o que podemos chamar o “fetichismo” ligado aos produtos do trabalho desde que eles se apresentem como mercadorias, fetichismo este inseparável do modo de produção que se designa por capitalismo” [iv] .
Portanto, a consciência alienada é a manifestação da sociedade capitalista no plano da produção espiritual como os valores e as idéias. Isto em razão de que a sociedade capitalista concorrencial leva ao primado das forças produtivas materiais.
Vale dizer, por fundamentar-se no fetichismo da mercadoria como objetivação da economia política e na incapacidade da estrutura social para dominar as forças produtivas que ela própria suscitou como aprendiz de feiticeiro, a sociedade capitalista leva ao primado das forças produtivas materiais.
Por sua vez, configurando um fenômeno de psicologia coletiva, a consciência burguesa como tipificada na mentalidade dos economistas estudados por Marx é uma consciência mistificada ou ideológica porque está impregnada pelas representações características de um período particular da sociedade em que a primazia cabe às forças materiais.
Mas não é tudo. Nas análises que levam ao desocultamento da consciência alienada como fenômeno sociológico descoberto por Karl Marx deve-se ter em vista o uso diferenciado da noção de objetivação.
Como se sabe, Marx insistiu contra Hegel – “e com razão” – no fato de que a objetivação é um traço da realidade sem a qual as sociedades e as civilizações não poderiam subsistir. Desta sorte, em modo algum devia confundir-se objetivação e perda de si.
Assim nota-se que o “jovem” Marx distingue a alienação nos seguintes aspectos: a objetivação; a perda de si; a medida da autonomia do social; a exteriorização do social mais ou menos cristalizada; a medida da perda de realidade ou desrealização, de que dependem, em particular, as ideologias; a projeção da sociedade e dos seus membros para fora de si próprios e a sua dissolução nessa projeção ou perda de si.
Gurvitch nos oferece ainda com perspicácia o seguinte esquema das alienações na sociologia de Marx desenvolvida em “A Ideologia Alemã” [v]: em primeiro lugar, as forças produtivas surgem como absolutamente independentes. É a alienação econômica; em segundo lugar, as “relações sociais” são alienadas porque subordinadas às relações de propriedade privada [vi] ; em terceiro lugar, esta, a propriedade privada dos meios de produção “aliena não só os homens, mas também as coisas” (é o dinheiro que desnatura particularmente a vida social); em quarto lugar, o trabalho é alienado e as condições de existência do trabalhador se tornaram insuportáveis. Esta alienação que se manifesta no próprio fato da sujeição do trabalho transformado em mercadoria torna o mesmo extremamente penoso [vii]; em quinto lugar, a alienação ameaçando sujeitar ao mesmo tempo o homem e o grupo espreita as próprias classes sociais, incluindo a classe proletária: “a classe torna-se cada vez mais independente em relação aos indivíduos que a compõe e move-se em novas correntes” [viii] .
É assim que, finalmente, os membros de uma classe “encontram as suas condições de existência predestinadas, e veem ser-lhes destinada pela classe a sua posição social e, por conseguinte, o seu desenvolvimento pessoal; eles são escravizados pela sua classe” [ix] . Gurvitch assinala que neste caso se trata de novo da projeção do humano – englobando sociedade, grupo, indivíduo – para fora dele próprio, bem como se trata da sua perda e dissolução nessa projeção. Em conseqüência há certa ambigüidade no conceito de alienação, pois não será possível aplicar a qualquer das classes em vida e em luta e muito menos ao proletariado o critério da perda de realidade (desrealização) [x] .
Ainda que as aplicações exclusivamente sociológicas dessas distinções relativas ao conceito de alienação nem sempre se diferenciem das suas aplicações em sentido político – ligadas que são em Marx à aspiração à libertação total de certos aspectos da alienação – essas distinções assim como “a dialética entre os diferentes sentidos do termo alienação” possuem um sentido sociológico muito preciso, seguinte: “trata-se dos graus de cristalização, de estruturação e de organização da vida social que podem entrar em conflito com os elementos espontâneos desta”, que acrescido pelo concurso de ideologias falazes resulta na ameaça de dominação e sujeição que pesa sobre as coletividades e os indivíduos. É assim que Marx estuda a dialética das alienações na sua análise do regime capitalista, em que como já o mencionamos o trabalho é alienado em mercadorias; o indivíduo alienado à sua classe; as relações sociais alienadas ao dinheiro, etc.[xi].
©2008 by Jacob (J.) Lumier
►NOTAS COMPLEMENTARES
A percepção clara a respeito da diferença entre os níveis ou camadas mais cristalizados da consciência coletiva e os níveis mais flutuantes faz notar que estes últimos não se deixam aprisionar na objetividade.
Com efeito, Durkheim afirma haver toda uma vida coletiva que está em liberdade: todas as espécies de correntes vão, vem, circulam em todas as direções, cruzam-se e misturam-se em mil maneiras diferentes precisamente porque estão em perpétuo estado de mobilidade e não conseguem revestir-se de uma forma objetiva (por exemplo, se hoje é um vento de tristeza e desencorajamento que se abate sobre a sociedade, amanhã, pelo contrário, um sopro de alegre confiança virá levantar os ânimos).
Ao tomar em consideração a psicologia coletiva, se constatará que os níveis ou camadas da consciência coletiva mais cristalizados, compreendendo as condutas regulares, as “instituições”, as estruturas sociais, os próprios preceitos morais e jurídicos exprimem apenas uma parte da vida subjacente da consciência coletiva, resultam dela, mas não a esgotam.
Na base da vida subjacente da consciência coletiva mais cristalizada (subjacente inclusive às consciências individuais) há sentimentos atuais e vivos que as camadas mais cristalizadas resumem, mas dos quais são apenas o invólucro superficial.
Tais camadas cristalizadas não despertariam qualquer ressonância se não correspondessem a emoções e a impressões concretas. E Durkheim sentencia: não se deve pois tomar o signo pela coisa significada.
Dentre outros aspectos, a psicologia coletiva afirma a existência de correntes coletivas que arrastam para o suicídio ou para o crime, ou se observam nos pânicos coletivos, por exemplo. Além disso, Durkheim insiste nas tendências, nos sentimentos, nas crenças, nas aspirações, nas efervescências coletivas que podem referir-se aos estados e opiniões tanto quanto aos atos mentais e funções intelectuais, mas que se opõem em todos os casos à razão universal.
Quer dizer, no aspecto da dupla existência de elementos sensíveis e de funções intelectuais há dialética entre a consciência individual e a consciência coletiva – tendência para a complementaridade, para a implicação mútua e para a reciprocidade de perspectiva – de tal sorte que esse dualismo elementos sensíveis / funções intelectuais encontra-se tanto em uma quanto na outra.
Acresce que as consciências individuais podem interpenetrar-se e fundir-se (a) – por vezes nas suas sensações e paixões, (b) – por vezes nas suas representações e nos seus sentimentos, (c) – por vezes nos seus atos, nas suas intuições e nos seus juízos – sejam estes marcados pela preponderância da inteligência, da emotividade ou da vontade.
O sociólogo afirma a evidência de que existem os elementos sensíveis da consciência coletiva, existem os sentidos coletivos de conservação e de defesa, os sentidos das paixões e das inclinações coletivas bem como, por sua vez, é evidente a existência das funções intelectuais na consciência individual (estados, opiniões, atos).
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►Para o sociólogo importa que idéias tão abstratas como as de tempo e de espaço estão a cada momento da sua história em relação íntima com a estrutura social correspondente. Da mesma maneira, se aprende com Durkheim que as categorias lógicas são sociais em segundo grau… não só a sociedade as institui, mas constituem aspectos diferentes do ser social que lhes servem de conteúdo… O ritmo da vida social é que se encontra na base da categoria do tempo; é o espaço ocupado pela sociedade que forneceu a matéria da categoria do espaço; fora a força coletiva que criou o protótipo do conceito de força eficaz, o elemento essencial da categoria de causalidade… O conceito de totalidade é, afinal, a forma abstrata do conceito de sociedade [xii] .
Não se pensa que nossa disciplina seja complicada. Basta chegar à aceitação da existência de conhecimentos coletivos para que se transponha o umbral da sociologia do conhecimento – sem qualquer exigência de esoterismo intelectual para adentrar a disciplina, embora haja condições para chegar ao umbral da mesma.
O fato é que, exercendo a reflexão mediante o diálogo e o debate em torno dos temas coletivos reais como os Nós, os grupos, as classes, as sociedades, já atualizamos em modo especial uma mentalidade coletiva, já nos encontramos em busca de colocar o conhecimento em perspectiva sociológica, já nos defrontamos com o problema sociológico do acordo ou desacordo do saber e do quadro social.
►Daí que a postura do sociólogo do conhecimento nada tem a ver com “as ilusões introspectivas” com que os epistemólogos projetam para a sociologia o “problema epistemológico” em psicologia.
Embora seja reconhecido que os quadros conceituais operativos da sociologia do conhecimento são passíveis de identificação aos quadros sociais, certos autores parecem avaliar isso negativamente e insistem em desconsiderar que essa identificação em perspectiva procede de uma dimensão mesma do conhecimento e não de alguma pretensa “estruturação ativa por parte do sociólogo”.
Tal identificação em perspectiva aos quadros sociais é como disse uma dimensão do próprio conhecimento que, todavia, além de reconhecer, o sociólogo compreende e operacionaliza como o coeficiente existencial do conhecimento, tirando daí, desta constatação de fato, seu procedimento básico de análise e interpretação.
Desta forma, a colocação do conhecimento em perspectiva sociológica favorece as ciências como atividade prática na medida em que pode certamente propiciar a diminuição da importância do coeficiente existencial do conhecimento pela tomada de consciência.
- ·Neste sentido, a sociologia é privilegiada como pesquisa das variações do saber.
O coeficiente existencial do conhecimento inclui os coeficientes humanos (aspectos pragmáticos, políticos e ideológicos) e os coeficientes sociais (variações nas relações entre quadros sociais e conhecimento).
Fala-se de coeficiente no sentido preciso do fator numérico correspondente à quantificação ou ao grau com que, neste caso, a qualidade humana subjetiva pode interferir como variável funcional na objetividade dos juízos cognitivos e na verificação das proposições científicas.
O sociólogo não inventa, mas elabora sobre a constatação de uma significação humana básica, a saber: a força de atração do mundo dos produtos e demais recursos e instrumentos que compõem a base morfológica da sociedade. Os conjuntos práticos como disse não são inertes, nem o mundo dos produtos uma “matéria exterior” absolutamente ou predominantemente heterogênea.
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Leia também:
A Ideologia e o Coeficiente humano e social do conhecimento
“Psicologia e Sociologia: O Sociólogo como Profissional das Ciências Humanas“, difundido na Web da Organización de Estados Iberoamericanos para la Educación, la Ciencia y la Cultura – OEI
[i] Marx, Karl: “Rascunho da Contribuição à Crítica da Economia Política” (“Grundrisse..”), pág. 176, apud Gurvitch, Georges: “A Vocação Actual da Sociologia –vol.II: antecedentes e perspectivas”, tradução da 3ªedição francesa de 1968 por Orlando Daniel, Lisboa, Cosmos, 1986, 567 pp. (1ªedição em francês: Paris, PUF, 1957). Cf.págs.341 sq.
[ii] Mauss, Marcel: ‘Sociologia e Antropologia – vol. I e vol. II’, São Paulo, EPU/ed. da Universidade de São Paulo EDUSP, 1974, 240 págs.e 331 págs. respectivamente (1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1950).
[iii] Marx, Karl: “Rascunho da Contribuição à Crítica da Economia Política” (“Grundrisse..”), pág. 92, apud Gurvitch, Georges: “A Vocação Actual da Sociologia – vol.II, op.cit. pág. 347. Ver também: Marx, Karl: “Le Capital, -Livre I”, traduzido em 1872 por J.Roy, apresentação Louis Althusser, Paris, Garnier-Flammarion, 1969, 699 págs. (1ªedição em Alemão : 1867), págs. 68 a 76.
[iv] Marx, Karl: “Le Capital” edição Molitor, p.85, apud Gurvitch, Georges, “A Vocação Actual da Sociologia – vol.II”, op.cit.
[v] Ver: Marx, Karl: “A Ideologia Alemã”, tradução francesa, edição Molitor – vol. VI pág. 240 sq, apud Gurvitch, op.cit.
[vi] Ibidem, vol.VII, pág.244, apud Gurvitch, op.cit.
[vii] Ibidem, vol.VII, pág.215, 220, apud Gurvitch, op.cit.
[viii] Ibidem, pág. 225, apud Gurvitch, op.cit.
[ix] Ibidem, pág. 224, apud Gurvitch, op.cit.
[x] Cf. Gurvitch, G: “A vocação Atual da Sociologia”, vol. II, op.cit.págs. 297, 298.
[xi] Cf. Gurvitch, ib. pág. 279. Ver igualmente neste ensaio o comentário Sobre o Psiquismo Coletivo da Estrutura de Classes Sociais.
[xii] Ver Gurvitch, Georges (1894-1965): “Problemas de Sociologia do Conhecimento”, In Gurvitch et Al. ”Tratado de Sociologia – Vol.2”, Trad: Ma. José Marinho, Revisão: Alberto Ferreira, Iniciativas Editoriais, Porto 1968, págs.145 a 189 (1ª edição Em Francês: PUF, Paris, 1960), op.cit.