O Calvário de Proust Editar esta entrada
O Calvário de Proust
Fragmento do libro “A Moral do Artista: Leitura de Proust“, por Jacob (J.) Lumier
(Uma Abordagem Inspirada em Samuel Beckett) – Ensaio
Internet, versão E-book pdf, Setembro 2010, texto: 131 págs.
Com notas, referências bibliograficas e índice analítico eletrônico (sumário).
Editor Bubok Publishing http://www.bubok.es/libros/190395/A-Moral-do-Artista-Leitura-de-Proust
Publicação do Websitio Produção Leituras do Século XX – PLSV: Literatura Digital http://www.leiturasjlumierautor.pro.br
PARTE QUARTA:
Sentimento e Individuação – Sob A Visão de Albertine
A filosofia estética do sentimento como Expressão da individuação.
A análise desenvolvida sobre a cena do primeiro contato em Balbec nos mostra um narrador às voltas com a multiplicidade pictórica de Albertine convertendo-se em uma multiplicidade plástica.
A Multiplicidade Plástica
Nesse desenvolvimento do pictórico ao plástico a visão de Albertine antes e depois do primeiro contato se altera muito mais do que um simples efeito do ângulo de enfoque do observador, desembocando em um tumulto de contradições objetivas e imanentes, sobre as quais o sujeito carece de controle.
O narrador vê Albertine pela primeira vez incorporada ao brilho do pequeno bando de moças em bicicletas contrastadas pelo mar. Grupo pictórico este que, em sua adoração invejosa, o narrador simbolizará nas Bacantes.
Albertine lhe parece carecer de individualidade e, nessa imaginação pictórica, está como envolta em um casulo: “uma crisálida delicada e quase abstrata”, em tal modo que “só o mistério do bando orgiástico de Bacantes” envolvendo-a num “cerco de rosas que rompe as linhas das ondas” será a única imagem válida, e permanecerá nas referências posteriores do narrador.
Em outro dia, ela o fita na praia e Beckett nos reproduz a frase desse relato retrospectivo, escrita pelo narrador então já fascinado pelo desejo de possuí-la e pressentindo a impossibilidade desse sentimento: “soube que não possuiria a jovem ciclista se não conseguisse possuir o que havia em seus olhos” – ele ainda não consegue vê-la dissociada do mistério das bacantes em bicicleta.
O contato com ela lhe é proporcionado pelo pintor Elstir que lha apresenta, e ele “começa a conhecê-la através de uma série de subterfúgios” em que cada fragmento de sua fantasia e seu desejo é substituído por um conceito bastante menos preciso.
Criar-se-á então a Albertine da multiplicidade plástica, cujas expressões são equiparáveis a um caleidoscópio.
Empenha-se em observá-la em todas as oportunidades. Observa-a nas relações dela com Mme. Bontemps; nas primeiras ambigüidades entre ele e ela; no reflexo de um luar em seu queixo; na maneira em que emprega o advérbio ‘perfeitamente’ no lugar de ‘inteiramente’; na inflamação no canto de seu olho interferindo nas suas feições e, dessas observações, encontra a aparência dela como a passar da superfície mansa e polida a “um estado quase fluido de alegria translúcida, uma congestão febril”.
Quando ousou seu primeiro gesto impreciso de aproximação, é repelido com frieza, levando-o a concluir que, em modo contrário à sua fantasiosa hipótese pictórica inicial, de ser ela a possível amante de um corredor ciclista ou de um campeão de Box, Albertine era honesta e fora falsa sua apreciação sobre o caráter dela.
Todavia essa nova impressão é plástica e cambiará. O esquema da tragédia de Albertine se complica e altera o estado do narrador nas suas relações em Paris. Há certa perplexidade em face da própria incapacidade dele para encontrar um denominador comum, interligando a nova Albertine ou a nova multiplicidade dessa nova Albertine agora tomada em seus braços.
A configuração poética já não tem apenas uma base visual, fosse pictórica ou plástica.
O objeto do desejo que ela parece simbolizar – a mulher e o mar –, acentuando no plano espiritual o prazer desfrutado dos favores dela, sofisticada, para ele já iniciada, esse objeto ou esse composto, através do hábito dela, leva a formar um segundo composto, desta vez com os ciúmes.
De fato, Beckett acentua que as simbolizações de Balbec e seu mar vêm a ser restituídas através do hábito de Albertine, como amálgama do humano e do marinho em um estímulo do coração, exatamente através dos ciúmes.
A visão de Albertine espantando o narrador e escapando a toda a composição de unidade mostra não só a Albertine de sua imaginação, a apaixonada e irreal da praia; a Albertine real e aparentemente virginal, revelada a ele no final de sua estadia em Balbec; mas também lhe mostra esta terceira Albertine que, no dizer de Beckett, “cumpre a promessa da primeira na realidade da segunda”.
Mas essa nova Albertine é múltipla e o narrador vê claramente a dificuldade em viver com ela, melhor: vê a ameaça aos seus sentimentos, tanto que, depois de sua primeira visita à Princesa de Guermantes, quando sentado em seu quarto esperando-a que não chega, sente como essa “não-chegada” exalta uma simples irritação física convertendo-se em chama de angústia espiritual.
Beckett faz sobressair nesta narrativa de Proust o modo como, muito mais que o ouvido ou a mente, o narrador é todo o coração ao atentar para os passos dela ou para a chamada sublime do telefone.
Destaca-se ainda a necessidade, a carência com que o narrador relacionou o consolo outrora obtido pelo carinho de sua mãe à esperada chegada de Albertine, causando-lhe ademais uma inquietação suplementar a consciência de haver visto nesta Albertine comum “uma fonte de consolo e salvação que milagre algum poderia substituir”.
Tal a impressão da impossibilidade em possuir o outro que então o narrador formula na seguinte frase: “só se ama aquilo que não se possui, só se ama aquilo no qual se busca o inacessível”.
Será a este e a outros semelhantes pensamentos do narrador que, como veremos, Beckett se refere ao afirmar que, em Proust, o amor é uma função da tristeza, comportando o sentimento de que nessa matéria não há escolha ruim, mas o fato mesmo de ter havido uma escolha implica que tenha sido ruim.
A solidificação do perfil de Albertine só acontecerá na segunda visita a Balbec, o que não significa o encerramento da dúvida do narrador sobre esse capítulo da relação entre ele e ela.
Pelo contrário, “a transformação de uma criatura de superfície em uma criatura com profundidade” tem início no momento em que o Dr. Cottard vê Albertine dançando com Andrée, uma das suas amigas do bando em bicicleta, e insinua tratar-se de intimidade sexual, dando lugar ao tormento recíproco na relação entre o narrador e ela.
Em meio a mentiras e contra-mentiras, perseguição e evasão, ele vivencia um amor por Albertine “cuja intensidade está em relação direta com o êxito dos seus enganos” – nos dirá Beckett .
E isso tanto mais significativo, quanto, – a exemplo dos que se consideram amados, e mais ainda do que estes –, Albertine é uma embusteira nata, porém neutraliza e acalma os ciúmes e a sensação de impotência do narrador.
Ou seja, no perfil dessa nova criatura descoberta por ele “tranqüiliza-o a docilidade de uma Albertine sempre a sua disposição”.
Mas não é tudo. Neste ponto Beckett seleciona e nos comenta um trecho considerado de alta significação para a brusca mudança de sentimento do narrador em relação à indiferença que, em sua docilidade, Albertine já lhe chegava a suscitar.
De fato, o narrador estava decidido a romper sua relação sentimental. Havia até comunicado a sua mãe tal decisão quando, durante o trajeto em que regressavam de uma recepção em La Raspalière, uma fala de Albertine dizendo sua amizade com Mlle. Vinteuil e amiga, a atriz Léa, associadas pelo narrador como lesbianas a saborearem seu prazer em um ato de teatro sadista, lhe provoca uma impressão tão forte que os ciúmes elevados ao paroxismo juntam-se aos remorsos sofridos ante as lembranças das “maldades” cometidas a sua avó.
Remorsos provocados pelo fato de que, igual a sua avó, estar M. Vintueil falecido há um tempo, e assim também exposto aos maus pensamentos que então indiretamente lhe atingiam [1].
O Tormento Recíproco
Deste modo se esclarece para nós, leitores, o significado da expressão “tormento recíproco” qualificando como vimos os sentimentos na relação entre o narrador e Albertine, sobretudo aquela “proporção direta” entre o amor dele e o êxito dos seus enganos.
Trata-se de um paroxismo de ciúmes: a Albertine “tão alheada e desprendida do seu coração um momento antes”, a suscitar-lhe a indiferença, agora, um instante depois, não é somente uma obsessão, mas é parte dele mesmo, dentro dele.
Tal o episódio classificado por Beckett como “visão do Montjouvain”, a encerrar o verão, tornando inexistentes a praia e as ondas.
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