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O Ardil do Voto Obrigatório: Notas Sobre a Produção do Mal-Estar

In Bem-estar, cidadania, Democracia, dialectics, direitos humanos, history, laicidad, portuguese blogs, sociologia, twentieth century on October 20, 2008 at 10:21 pm

O ARDIL DO VOTO OBRIGATÓRIO:
NOTAS SOBRE A PRODUÇÃO DO MAL-ESTAR
Por
Jacob (J.) Lumier

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Nota Complementar sobre a função domesticadora do voto obrigatório como fator de reforço da hegemonia burguesa: o Complexo de Impotência.

Texto modificado pelo autor em 24 de Outubro de 2014

 

Preliminares

Trata-se de um estudo sobre a participação eleitoral no qual se examina o problema do voto obrigatório sob o aspecto subjetivo. O foco do estudo é o constrangimento da liberdade individual como sensação de mal-estar decorrente da situação do indivíduo diante dos procedimentos obrigatórios de votação. Neste marco, desenvolve-se a compreensão de que a eficácia da obrigatoriedade implica em obediência, no sentido de que a aceitação desse regime é conseguida não por consentimento e sua racionalidade de benefício (“me submeto à lei porque meu direito é reconhecido” e “porque posso ter uma chance”), mas, ao contrário, por obediência social, cujo modelo tem muito a ver com o caráter nostálgico de que Saint-Simon fez a crítica ao examinar a situação do Ancien Régime. Daí o caráter falso do suposto alcance educativo que muitos pretendem atribuir ao voto obrigatório. O ensaio põe em evidência que, em lugar de educativa, a obediência exercida deve ser explicada como função domesticadora e compreendida em sua inserção no contexto histórico da hegemonia burguesa, a partir do que é aplicado o modelo de análise crítica que explica a sensação de mal-estar em referência do complexo de impotência segregado pela indústria cultural. O texto que segue é a versão provisória e esquemática dessa orientação sociológica.

 

Roteiro

Sumário

Imbróglio da obrigatoriedade. 1

Falso caráter educativo. 2

A função domesticadora. 3

O caso do analfabeto participativo. 4

O problema existencial 5

O sentimento de impotência. 5

Reforço da hegemonia burguesa. 6

Crítica da ideologia do futurismo. 6

Complexo de Impotência e dessubjetivação. 7

Impotência e Condicionamento. 8

A arcaica iloquacidade. 8

 

 

Imbróglio da obrigatoriedade

 

É restritivo compreender a participação eleitoral precipuamente sob o aspecto demográfico (quantidade massiva de população votante), pois isto significa valorizar a docilidade e tentar acomodar a democracia às desigualdades sociais, sem ter em conta as experiências históricas do eleitorado contrárias à obrigatoriedade, nem sua atitude previamente crítica à função domesticadora   do voto obrigatório como fator de reforço da hegemonia burguesa, que se exerce mediante a indevida imposição da obediência (cidadania permitida).

O voto obrigatório é prejudicial porque dá prevalência ao valor cultural da obediência sobre o ideal de aperfeiçoamento da democracia.

►Em primeiro lugar, a hegemonia burguesa (acumulação do capital para o capital, ou primado do sistema financeiro sem controle social [i]) é notadamente um fenômeno cultural. Implica educação em matéria de obediência, é imposta sobre a tendência para a domesticação das classes subalternas.

O regime do voto obrigatório forçado revela-se um aspecto de hegemonia da classe burguesa, não somente em função do caráter vigilantista sobre as classes subalternas, projetado no desprovido antiabsenteísmo do voto sob ameaça, ou “sob pena de…”, propalado pelos neoliberais, mas, notadamente, em razão da instituição imprópria do valor cultural da obediência, com prevalência sobre o ideal político (aperfeiçoamento da democracia), e isto em detrimento da soberania social exercida nos grandiosos atos coletivos da inesquecível campanha das Diretas Já (1983-1984).

 

O eleitor brasileiro atual formou-se, e afirmou sua consciência democrática, ao participar na campanha das Diretas já, nos oitenta.

 

Daí, desse imbróglio da obrigatoriedade, decorre a injustiça histórica, posto que, em virtude do objeto enfocado naqueles atos coletivos dos anos oitenta (integrados em uma corrente global que impulsionou a reconfiguração do mundo político e revitalizou o ideal do aperfeiçoamento coletivo da democracia, para além dos “muros”), a participação nas “Diretas já” aglutinou as diversas classes da sociedade e os variados setores da população não em suas reivindicações particulares, mas, especialmente, unindo-as como sujeitos da democracia eleitoral, sob a condição de eleitores.

Quer dizer, com independência e negando qualquer obediência, o eleitor brasileiro atual formou-se, e afirmou sua consciência democrática com seu posicionamento prévio contrário à obrigatoriedade do voto, demonstrando inegável capacidade política e maturidade cívica.

Em consequência, em nossa democracia eleitoral, não há negar o caráter abusivo da imposição atual do voto obrigatório, que não passa de um fator restritivo, há muito sem razão de ser, a projetar sua impropriedade sobre a educação nacional.

 

O regime draconiano do voto obrigatório reproduz o sistema cartorial[ii] na democracia eleitoral brasileira, e projeta sua impropriedade sobre a educação nacional.

 

Falso caráter educativo

 

►Em segundo lugar, já é tempo de ultrapassar a falsa crença de que a sustentação de um regime democrático incumbe unicamente aos representantes políticos, simples corolário da ideologia dos neoliberais, que, inadvertidamente (!), reduzem a participação democrática à representação de interesses.

Daí decorre a posição subordinada dos eleitores, a quem, mediante a imposição do voto obrigatório, não é reconhecida função nenhuma na sustentação de um regime democrático.

Simultaneamente, aplicam o ponto de vista da formação em valores, para situar e compreender o grande número dos eleitores no contexto real das desigualdades sociais, uma vez estabelecida sua ausência de função.

 

O voto facultativo sem restrições vem a ser pressuposto de toda a ação para levar até o fim a superação do modelo tradicional de educação.

 

Ou seja, os eleitores devem aprender a votar, devem aprender que o voto é importante e que não podem deixar de votar, seja lá o que isto signifique além de escrever ou teclar um nome e inseri-lo na urna. Não podem alcançar o voto facultativo sem restrições porque é necessário certo nível de escolaridade, ainda não alcançado por um grande número de eleitores que, se supõe, dificilmente o alcançarão em um tempo razoável, perpetuando assim o voto obrigatório.

Tornados desta forma eternos aprendizes, e mediante a perpétua imposição do voto obrigatório, os eleitores são, então, subordinados à hierarquia dos cartórios eleitorais, perante os quais devem obediência legal para seu aprendizado.

A ordem dos cartórios eleitorais adquire deste modo um falso caráter educativo, e, por exigirem a obediência a suas disposições, passam os mesmos a valer como se fossem instâncias transmissoras de valores hierárquicos para a docilidade, estabelecendo, nos deveres de comprovação (dever de dar prova para punição sobre si mesmo) e justificação, as condutas abusivamente instituídas na democracia eleitoral brasileira[iii].

►A educação em matéria de obediência, que sustenta a hegemonia burguesa, tem paralelo no modelo da escola tradicional, como instância transmissora de valores hierárquicos, baseada na posição de subordinação dos aprendizes.

Quer dizer, tendo em conta que os valores hierárquicos são regidos pelo princípio de eficácia subordinante dos poderes constituídos, no regime do voto obrigatório, em nível do conjunto dos cartórios eleitorais, se reproduz uma instância transmissora de valores hierárquicos, e aos eleitores, reduzidos ao dever de obediência, corresponde à posição de subordinação.

Desta forma, evidencia a relação de complementaridade entre os dois modelos tradicionais, o da escola e o dos cartórios eleitorais. A mudança do regime para a democracia com o voto facultativo sem restrições vem a ser pressuposto de toda a ação para levar até o fim a superação do modelo tradicional de educação, e vice-versa.

 

A função domesticadora

 A falsa crença de que o voto obrigatório deve ser mantido porque seria um fator do desenvolvimento já não encontra sustentação na tendência renovadora da consciência coletiva democrática e participativa, que atualmente se afirma em direção contrária ao domínio dos sistemas financeiros sem controle social.

É restritivo compreender a participação eleitoral precipuamente sob o aspecto demográfico (quantidade massiva de população votante), pois isto significa valorizar a docilidade [Docilidade para o eleitor significa cumprir os supostos deveres de comprovação (dever de dar prova para punição sobre si mesmo e justificação perante os cartórios], e tentar acomodar a democracia às desigualdades sociais, sem ter em conta as experiências históricas do eleitorado contrárias à obrigatoriedade, nem sua atitude previamente crítica à função domesticadora   do voto obrigatório como fator de reforço da hegemonia burguesa, que se exerce mediante a indevida imposição da obediência (cidadania permitida).

Notem que a domesticação no mais alto grau corresponderia ao estado em que, como filhos da sociedade no sentido mais literal, os homens coincidiriam substancialmente com ela, tornados dóceis expoentes da totalidade coletiva e estando condicionados socialmente, isto é, não simplesmente equiparados ao sistema dominante por um desenvolvimento posterior, mas numa relação eternizada em nível biológico. De que observou T. W. Adorno ao situar essa matéria em seus comentários sobre o “complexo de impotência” [iv].

 

Cada vez mais se afirma a percepção de que o voto obrigatório traz mal-estar

Além disso, cada vez mais se afirma a percepção de que o voto obrigatório traz mal-estar. Até mesmo os estudos sobre desenvolvimento político, desde o ano 2000, já incluíram dentre seus critérios o mal-estar causado pela obrigatoriedade do voto.

De fato, podem ler em um artigo especializado, elaborado com base em pesquisa de opinião pública, a ponderação que atribui ao “efeito de liberdade” a razão da suposta apatia entre a população em geral.

Toma-se um ambiente hipotético sem obrigatoriedade de voto e se confronta as respostas que declaram não votar na suposição de voto voluntário. A conjetura compreende, nessas atitudes contrárias ao livre comparecimento, que os sujeitos podem estar informando, em algum nível, seu “mal-estar” com a obrigatoriedade do voto, e não sua indiferença quanto aos resultados políticos.

Quer dizer, os indivíduos pesquisados preferem retomar plenamente sua liberdade pelo não comparecimento, mesmo diante do voto voluntário. Uma vez que, mudado o modelo e sendo declarada, tal atitude repele a indiferença do “não sei” (para o quesito “você votaria no regime de voto facultativo”?), trata-se, então, por exclusão, de um indicador preciso do mal-estar com o voto obrigatório.

 

O caso do analfabeto participativo

 

Essa conjetura nutre-se na projeção do caso chamado do “analfabeto participativo”, lembrando que se trata de uma categoria que não está sujeita a obrigatoriedade do alistamento eleitoral nem do voto.

Assim, os que se incomodaram em retirar o título de eleitor são tidos como mais motivados comparados ao restante da população registrada. Daí a classificação de analfabetos especialmente participativos. A retirada da obrigatoriedade torna a ação mais atrativa, e os pesquisados “liberados” podem expressar uma disposição maior em engajar-se na atividade do que aqueles que estão sob a obrigatoriedade.

A inclusão da variável mal-estar foi então contemplada diante da seguinte constatação: Se os não escolarizados são especialmente participativos devido a seu sentimento positivo quanto ao voto (obrigatório, mas adotado por motivação), a aplicação na pesquisa do novo modelo conjetural de comparecimento voluntário deveria mostrar um maior efeito positivo para a educação ou para os mais escolarizados. Como tal alternativa esperada não se verificou, os pesquisadores admitiram que nenhuma outra variável explicativa completava melhor que a experiência do mal-estar com o voto obrigatório. Ou seja, o “efeito de liberdade” alterou significativamente o comparecimento voluntário.

 

O mal-estar tem início no momento em que cada um de nós sente ser necessário estar consciente dessa obrigatoriedade constrangedora.

 

O problema existencial

►Mas não é tudo. O problema existencial com o voto obrigatório é que no mínimo ele é dois: há o constrangimento no ato de votar e há o constrangimento em comparecer aos locais de votação.

Se no ato de votar cada um de nós é obrigado a comprovar que votou nas eleições anteriores para poder acessar a urna, no comparecimento aos locais de votação, por sua vez, cada um de nós é obrigado a aceitar a obrigatoriedade de ir votar, isto é, deve estar ciente e consciente de que pode comprovar seu comparecimento às eleições anteriores.

O mal-estar tem início no momento em que cada um de nós sente ser necessário estar consciente dessa obrigatoriedade constrangedora.

Como se sabe, o mal-estar se faz sentir na experiência de cada um lá onde a subordinação do outro penetra na formação das mentalidades. Quer dizer, sempre que os amparos à afirmação do indivíduo, notadamente a psicologia, deixam de vigorar ou simplesmente mudam de função e, ao invés de suscitá-la, passam a reprimir a afirmação individual positiva e mais ou menos consciente da liberdade pode-se constatar o mal-estar – seja como decaimento ou falta de vitalidade, seja como inquietação moral.

Objetivamente, o mal-estar faz parte do processus em que, por um desenvolvimento posterior, os indivíduos se tornam socialmente constrangidos, e se encontram equiparados ao sistema dominante na ambiência em que tomam parte. É esse processus geral de subordinação que se observa no regime do voto obrigatório, em tal modo que o argumento oficialista da “obrigatoriedade / absenteísmo” vem a ter eco nos indivíduos, tornando-se um standard da mentalidade desse sistema.

E não há exagero nisto. Basta lembrar que, datando de 1965 [v], a lei instituidora das cominações de sanções sobre os eleitores releva do autoritarismo tecnoburocrático, e foi concebida exatamente para cercear previamente qualquer tentativa de boicote das eleições indiretas então estabelecidas. Daí o suposto combate ao pretenso absenteísmo eleitoral como característica do establishment.

 

***

 

O sentimento de impotência

Como lugar psicológico da ideologia do antiabsenteísmo eleitoral

 

► O mal-estar se agrava, torna-se consciente quando cada um de nós-outros [veja Nota Complementar] é provocado a refletir sobre a relação que mantém com o voto obrigatório, formar sua opinião a respeito de si como eleitor. É quando o sentimento de impotência fala mais alto: posso me opor à ordem? Tal o lugar psicológico da ideologia da obrigatoriedade como mistificação da impotência.

De fato, o mito do antiabsenteísmo só toma corpo como “argumento do povo ausente” porque cada um padece o sentimento da impotência ante a obrigatoriedade constrangedora e, então, faz eco à representação de que “o voto deve ser obrigatório porque o povo precisa aprender a votar”.

E isso é assim porque há uma inversão no lugar psicológico da ideologia. Basta lembrar que, como cidadão da República Federativa, o eleitor brasileiro nasceu felizmente antes da ideologia da obrigatoriedade constrangedora!

Vale dizer, a obrigatoriedade como imposição legal não é um instrumento originalmente inserido pela República para sua defesa contra uma reação do regime antigo, como pudera haver ocorrido em outras sociedades neocoloniais. Por sua vez, em nossa história democrática, o voto obrigatório tampouco surgiu como ideologia draconiana e punitiva aos eleitores faltosos, mas como simples instrumento de defesa da cidadania ampliada com adoção do voto da mulher, proclamado na Constituição de 1934.

Daí que é difícil compreender a vigência da atual obrigatoriedade constrangedora normativa sem levar em conta, na extensão do conformismo costumeiro próprio às condutas políticas (o favor pessoal, as recomendações, as indicações), a existência do estado de impotência do eleitor que lhe dá o suporte. É porque o eleitor encontrou-se impotente para exercer seu voto em liberdade de expressão, com o prolongamento sem crítica de uma legislação originária do regime de exceção (o atual Código Eleitoral data do autoritarismo burocrático militar), que passou a fazer eco à representação anti-absenteísta e, por esta via de recorrência, submeteu-se, subordinou-se, configurando uma psicologia da obediência na base do sistema do voto obrigatório com sanções legais [vi].

Daí o agravamento do mal-estar: constrangimento no ato, constrangimento na presença, constrangimento na aceitação reflexiva do… constrangimento!

 

Reforço da hegemonia burguesa

No regime do voto obrigatório, em que o argumento oficialista da “obrigatoriedade versus absenteísmo” vem a ter eco nos indivíduos e se torna um standard da mentalidade desse sistema, cabe pôr em relevo que o mal-estar experimentado no processus geral de subordinação assim estabelecido é um dado de liberdade bem mais profundo do que mera exaltação individualista.

Neste sentido, cabe comentar a interpretação do mal-estar no quadro crítico da história do século vinte, especialmente em relação à estreita vinculação entre hegemonia burguesa, por um lado, e complexo de impotência, por outro lado.

 

Crítica da ideologia do futurismo

Com efeito, em modo contrário ao que se diz por aí, o complexo de impotência ultrapassa o psiquismo individual, tem dimensão coletiva. É um fenômeno não redutível aos transtornos da libido por si só, como nos estudos sob o complexo de Édipo, mas combina-se a certos efeitos de um ambiente com símbolos estandardizados e condutas cristalizadas, implicando notadamente a domesticação, como docilidade na obediência.

A descrição do complexo de impotência passa inexoravelmente pela crítica da ideologia do futurismo [vii] que nada mais consegue do que figurar os prolongamentos de linhas já existentes na civilização técnica, compondo, então, nesses prolongamentos do Sempre Igual da produção em massa, uma montagem que se afirma inseparável da utopia negativa – um futuro onde o déjà-vu coletivo se prolonga indefinidamente.

De fato, o mundo da comunicação, a reprodução do Sempre Igual, a que corresponde a ideologia do futurismo, veio a ser imposto sobre a vida social em correlações com os mecanismos da autorregulação do capitalismo organizado, predominante desde os anos quarenta, quando se constata o fim definitivo da economia de mercado liberal e tem lugar a hegemonia burguesa que aí está.

Lembrem que, desde os anos 40/50, deixou de existir definitivamente o mercado da economia liberal, que cedeu lugar ao papel regulador do Estado através de políticas econômicas, inclusive com políticas de incentivo ao investimento (“Livre Mercado”), associadas ao fortalecimento de organismos multilaterais de cooperação comercial, a exemplo da OCDE.

Quando se fala em regulação do capitalismo em sentido geral consideram os esforços para evitar agravamento das crises: política fiscal (keynesianismo), política cambiária, sistema e regulação financeira, sistema de bancos centrais (política monetária), basicamente. O Federal Reserve Bank, dos EUA, primeiro Banco Central, foi criado em 1913, na sequência da crise de 1907 – semelhante à grande depressão dos anos de 1930 –, dando início ao Federal Reserve System, foco da política monetária das nações, que, na mencionada década de quarenta, possibilitou a reconstrução mundial.

Além disso, o culto do instrumento tomado como separado de toda a destinação objetiva – incluindo a afecção fetichista em possuir perfeitos equipamentos de toda a natureza – , no âmbito da civilização técnica como a universal analogia de todo o produzido massivamente, coisas e homens, levou ao desaparecimento da contraposição de espírito, no sentido dos bens culturais da tradição, por um lado e, por outro lado, a natureza como paisagem, isto é, criação sem dominar mais além da sociedade, termos esses dos quais se concebia, em maneira mítica, a suprema reconciliação [viii].

 

 

Complexo de Impotência e dessubjetivação

 

 

Em consonância com o desaparecimento daquele tema central, desponta o esquema de uma dessubjetivação pura, a que se identificam os sujeitos-objetos (a) em sua incapacidade para perceber e pensar o que não é como eles mesmos; (b) em sua autossuficiência cega de sua própria existência; (c) em sua imposição da pura utilidade subjetiva.

Observam-se, dessa maneira, certas involuções já existentes no cotidiano da civilização técnica e da sociedade em regime avançado do capitalismo organizado, que tendem a se converter em disposições com que a cultura de massa organiza o tempo livre para fazer deste um Standard do decoro infantil. Tal é a analogia de coisas e homens afirmada na produção em massa.

 

A cultura de massa organiza o tempo livre para fazer deste um standard do decoro infantil.

 

  1. W. Adorno aí redescobre que essa equiparação se estende até a produção da consciência estandardizada de inúmeros homens pela communication industry: o mundo da ideologia futurista assenta-se na tríade “Community, Identity, Stability”. Seus truques respectivos são: (a) todo o indivíduo está incondicionalmente subordinado ao funcionamento do todo, com o “World Controller” operando no sentido de que seja impossível a alguém defrontar-se com uma questão problemática; (b) as diferenças individuais têm sua anulação garantida pela Identity combinada à (c) Stability, como o final de toda a dinâmica social.

Estendendo a estandardização à total pré-formação do homem, o mundo estático da negativa ideologia do futurismo assenta-se no “World Controller” e na tríade Community, Identity, Stability.

A panacéia que efetua essa garantia de estática social observada sociologicamente como estandardização é o Conditioning.

 

Neste ponto é alcançado o elemento central da descrição do complexo de impotência como alguma coisa que é produzida.

 

Tal “condicionamento” visa à produção de determinados reflexos, ou modos de comportamento por modificações planejadas no mundo circundante, mediante o controle técnico das chamadas condições de vida.

A ideologia do futurismo estende o controle à total pré-formação do homem, desde a geração artificial dos embriões e a direção técnica da consciência e do inconsciente, nos primeiros estágios da vida, até o “death conditioning”, isto é, um training que suprime das crianças o medo da morte, com o procedimento de fazê-las contemplar agonias, ao mesmo tempo em que se as faz degustar doces, para que sempre associem a ideia de morte aos mesmos.

Na utopia negativa desse mundo gerado no Conditioning, T. W. Adorno põe em relevo os seguintes aspectos que se aplicam à domesticação como produção da docilidade na obediência:

(a) O efeito final do Conditioning, como adaptação sobre si mesmo, é a interiorização e a aprovação da pressão e da opressão sociais por cima da tradição: “os homens se submetem a amar o que têm de fazer sem sequer saberem que isso é submissão” – assim se assegura subjetivamente sua felicidade e se preserva a ordem;

(b) A penetração dessa ordem torna ultrapassadas todas as ideias de que a influência da sociedade no indivíduo seja uma influência mediada pela família doméstica e a psicologia;

(c) Como filhos da sociedade no sentido mais literal, os homens coincidem substancialmente com ela, tornados dóceis expoentes da totalidade coletiva e estando condicionados socialmente (no sentido em que os behavioristas exerciam a domesticação pela manipulação dos instintos), isto é, não simplesmente equiparados ao sistema dominante por um desenvolvimento posterior, mas em uma relação eternizada em nível biológico. Daí o complexo de impotência.

A interpretação crítica é de que a ideologia do futurismo indica que a reprodução da estupidez, anteriormente realizada inconscientemente no ditame da mera miséria vital, está nas mãos da triunfal cultura de massa, uma vez eliminada aquela miséria.

 

Impotência e Condicionamento

 

Desta sorte, a miséria e a pobreza em geral, como fixação racional da irracional relação de classes que o complexo de impotência ressente, anuncia a superfluidade dessa relação mesma, a superação de seu caráter natural como ilusão na história descontrolada da humanidade, ficando a subsistência de classes para a diferenciação administrativa na distribuição do produto social.

Tal é a imagem da utopia negativa ao manter os embriões e as crianças pequenas das castas inferiores em uma atmosfera rarefeita em oxigênio, como se os mantivesse na mesma atmosfera dos bairros de barracos, só que construídos artificialmente.

 

A arcaica iloquacidade

Ou seja, o complexo de impotência se revela no disparate em que, deixada seu caráter supostamente “natural” para constar como dado na distribuição do produto social, a situação de miséria passa a ser reproduzida por mero condicionamento, na fixação racional da irracional relação de classes.

Desta forma, o complexo de impotência se estende na classe superior: a consciência daqueles que desfrutam sua própria individuação está submetida à estandardização por causa de sua identificação com o in-group, isto é, por uma sorte de identificação heteropática que, ao invés de um sujeito projetado para fora sobre os conteúdos da consciência coletiva, levam aos juízos pelo condicionamento (conditioning), estando o grupo constituído sobre a virtude de não entender, sobre o vazio de significação (o déjà vu se experimenta lá onde há ausência de significação). Tal é o circuito incivilizado da hegemonia burguesa, que aponta unicamente a degradação da fala, a decadência do dom de exprimir o pensamento pela palavra.

***

 

Nota Complementar sobre o termo < Nós-outros >:

Para designar a forma mais complexa de sociabilidade, usamos a expressão clássica verificada inclusive em “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freire, < Nós-outros >, e não somente a designação < Nós > desse pronome, mais comum, a fim de pôr em relevo o fato de que, em os Nós, encontra-se incluída a sociabilidade por relações com outrem e que essa designação complexa e essa compreensão não são invenções do sociólogo, mas uma compreensão afirmada na própria língua portuguesa, uma realidade social.

***

 

 

NOTAS DE FIM

 

[i] O movimento pelo controle social do sistema financeiro tem centro na proposta de taxação promovida pela ATTAC- Association pour la Taxation des Transactions pour l’Aide aux Citoyens.

[ii] Cartorialismo, na origem, é o regime de propriedade centrada no Estado (sem as certidões não tinham reconhecimento nem valor as propriedades nem se autorizavam as empresas) modelo de subordinação cristalizado na Lei de Terras de 1850, fórmula definitiva desenhada no Segundo Reinado.

[iii] Tudo indica que, depois das mobilizações históricas dos eleitores nos anos oitenta, a atuação vigilantista e punitiva dos cartórios eleitorais contra os eleitores e, notadamente, contra os supostamente faltosos, enseja um desvio de finalidade.

[iv] Adorno, Theodor W. (1903 – 1969): “Prismas: la Critica de la Cultura y la Sociedad”, tradução de Manuel Sacristán, Barcelona, Ariel, 1962, 292 págs. – (em Alemão: Prismen. Kulturkritik und Gesellschaft, Berlin, Frankfurt A.M. 1955).

[v] Será somente após o 2º Código Eleitoral de 1935, sancionado por Getúlio Vargas, com a projeção da mentalidade draconiana e punitiva, que será configurada a imposição de sanções cominadas contra aquele que deixar de votar. Retomada, tal legislação foi estabelecida com sanções agravadas somente em 1965, quando quatro das cinco possibilidades de penas legais que a Constituição prevê serão aplicadas ao eleitor, a saber: (a) privação ou restrição de liberdade (sem passaporte, a liberdade de ir e vir é restringida); (b) perda de bens (não poderá receber vencimentos nem participar de licitações); (c) multa; (d) suspensão ou interdição de direitos.

[vi] De um ponto de vista mais compreensivo e menos crítico, poder-se-á dizer que a recorrência do voto obrigatório com sanções cominadas representa um artifício de compensação encontrado pela elite política em face da modernização globalizada, para equilibrar, com a institucionalização da obediência, o desgaste dos simbolismos ligados ao conformismo costumeiro das condutas políticas, supondo que tal desgaste motivacional houvera levado ao absenteísmo eleitoral (“não vou votar porque não ganho nada com isso! ”)

[vii] Nada a ver com futurologia, mas a ideologia do futurismo implica uma corrente artística e literária que cedeu espaço à ficção desdobrada com a indústria cultural, de que o romance “Brave New World”, de Aldous Huxley, desenvolveu a projeção ideológica. Veja Adorno, Theodor W. (1903 – 1969): “Prismas: la Critica de la Cultura y la Sociedad”, tradução de Manuel Sacristán, Barcelona, Ariel, 1962, 292 págs. – (em Alemão: Prismen. Kulturkritik und Gesellschaft, Berlin, Frankfurt A.M. 1955), págs. 102, 103 sq.

[viii] Tema central da filosofia burguesa, a unidade de natureza e espírito, foi concebida na especulação idealista como a suprema reconciliação.

 

***

Este artigo é complementar ao ensaio O Eleitor, a Democracia e o Voto Obrigatório no Brasil

Mais informação:

http://jus.com.br/artigos/32612/desenvolvimento-e-democracia-real-no-brasil

http://www.bubok.es/libros/231051/A-Democracia-Eleitoral-no-Brasil

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